O corpo está apertado por uma camisa em tecido tipo tela com símbolo da bandeira do Brasil e por uma minissaia curtíssima, em jeans desgastado. A meia arrastão revela uma coxa rija, forte e bem torneada. Equilibrada numa bota de couro preta e cintilante, com 15 centímetros de altura, Thânya Tulmuto está chocante. A peruca negra, de fios de náilon, cheia de adereços coloridos, tem aspecto falso no melhor do estilo trash. O batom, em tom vermelho cintilante, é retocado várias vezes durante a transformação. O resto da maquiagem é pesadíssimo, com sombras nos tons verde, azul, vermelho, branco, preto e amarelo fosforescente (importada da Alemanha); o rosto cheio de pancake é como um reboco que deixa a pintura intacta e perfeita a noite inteira. O ritual que faz nascer a drag queen chega ao fim, depois de duas horas de preparação no banheiro da boate Metrópole, reduto GLBTS (gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e simpatizantes), no bairro da Boa Vista.
A artista Thânya Tulmuto - na verdade Rafael Silva, 23 anos - nasceu no dia primeiro de outubro de 2004, há um ano e sete meses. Quem vê o rapaz calmo, de gestos delicados e fala mansa não consegue imaginar o furacão que sai do banheiro depois da longa transformação. A personagem surgiu por causa de uma brincadeira de outra drag queen, Nadarc Fashion Camaleoa, que o chamou para fazer a propaganda eleitoral do então candidato a prefeito Cadoca. “Eu e meu primo, também costumávamos nos montar para ter acesso à boate Metrópole de graça. Quando a gente entrava lá, trocava de roupa e curtia a noite. Essa minha segunda personalidade surgiu de forma espontânea, e continua no pedaço, até hoje, trabalhando”, afirma.
Rafael sempre teve uma vida sacrificada. Ele veio de Petrolina para o Recife e trabalha desde os nove anos de idade. “Eu comecei ajudando no bar da minha mãe, depois fiz serviços num lava-jato e já vendi até pamonha na rua. Hoje, eu administro uma loja de informática e sou designer gráfico”, diz.
O menino tímido, gentil, tranqüilo e caseiro é a antítese de Thânya, definida por ele como “uma explosão, cujo resíduo fica no ar e não pára; um luxo só”. Rafael, durante toda entrevista se referiu a personagem como sendo outra pessoa, não concebendo eles como um só e afirmando que existem dois egos paralelos que não se cruzam. A drag queen é uma catarse, para liberação de loucuras e superação da timidez. “Ela é muito diferente de mim, quando assume o ponto eu vou para bolsa, é o momento dela; é meio esquizofrênico” , diz. A criação de outra persona através da maquiagem, roupa e peruca também funciona para vivência da feminilidade. “Eu aproveito para desmunhecar bem muito a mão, para soltar a voz e a mulher que tem dentro de mim”, completa.
Rafael afirma que idealizou a personagem sozinho e que a adapta de acordo com o local onde se apresenta. “Faço um tipo lerdo, bobinho, inocente e infantil quando me apresento nos shoppings ou na rua; as crianças adoram. Eu já levo chocolate e uma bolinha pensando nisso”, explica. Segundo ele, a drag queen não tinha nome nos primeiros 15 dias de existência, depois foi batizada por seu primo de Thânya Tulmuto, com grafia errada de propósito para marcar, e se tornou um grande sucesso.
A ligação de Rafael com o mundo das artes cênicas já é antiga. Ele fazia teatro amador e participava da noite de terror do play center. “Eu me considero um artista, porque Thânya é uma atuação para mim. Na minha cabeça, estão muito bem divididas as minhas duas personalidades”, diz. Mas para o homem comum que vê aquele ser gigante, espalhafatoso, e cintilante, falando alto e distribuindo alegria, de forma natural, não dá para conceber a composição da personagem de forma tão fria e objetiva. O que me afligiu o tempo todo nessa reportagem foi o fato de não conseguir chamá-lo durante toda entrevista pelo nome verdadeiro ou de “ele”; sempre me vinha à mente aquela figura exótica. Tenho absoluta certeza de que não estive diante de uma drag queen comum.
Dentro do submundo do centro do Recife, definido por Rafael como “decadente e iluminado por prostitutas e travestis”, a pessoa precisa ser muito objetiva para trabalhar. “Eu não fumo, não bebo e detesto drogas. Nesse meio, você está muito vulnerável a essas coisas, precisa ter uma cabeça muito legal para não se envolver”, afirma. Esse é outro aspecto que dá a Thânya Tulmuto um caráter de drag queen singular.
Rafael parece um pouco constrangido e tenso quando questionado sobre sexo. Ele diz que se sente “um extraterrestre, um ser assexuado”, mas que como já teve experiências sexuais com homens e mulheres pode se definir como bissexual. “Há um ano atrás, eu saí com um garoto e achei muito louco. Meu último namoro foi com uma menina que era psicóloga, mas acho que ela gostava mais de Thânya do que de mim, porque só queria me agarrar quando eu estava montado. Eu ainda estou me encontrando na área sexual”, explica.
Rafael afirma que tenta não planejar muito o futuro e procura viver um dia de cada vez. Contudo, ainda tem o sonho da fama em São Paulo, definido por ele “como o berço das drags”, ou de viajar para Europa. “A única coisa que quero no momento é ter minha casa e fazer faculdade, porque só tenho segundo grau. Eu procuro ter os pés no chão, e não ficar pensando muito sobre uma vida que só existe na imaginação”.
Thânya Tulmuto trabalha como hostess (anfitriã), na boate Metrópole, e faz telegramas animados e shows em festas e eventos. Cada apresentação tem duração de 40 minutos à uma hora, e o cachê cobrado é de R$ 100, mais o transporte . Rafael afirma que os gastos com a caracterização também são muitos: roupa, maquiagem, peruca. “Eu investi, no começo, R$ 700; hoje esse trabalho se tornou um ganha pão legal. Eu sou um gigolô da drag, é ela que me sustenta e ajuda a pagar minhas contas”,diz.
Preconceito - Os redutos e guetos GBTS, onde se escondem homossexuais, travestis e prostitutas sempre assustaram Rafael - menino simples que veio de Petrolina. Ele afirma que abominava as drag queens, antes de conhecer melhor esse universo. “O preconceito começou em mim, eu achava que nesse meio só tinha meretriz e drogado. Depois que comecei a freqüentar boates gays, fui conhecendo melhor o trabalho nesses lugares. Hoje estou pagando minha língua”, diz.
Rafael afirma que a relação com a mãe é tensa, pois nunca houve aceitação da sua profissão por parte dela, que sempre fazia analogias com homossexualismo e prostituição. “Eu nunca escondi nada de ninguém, mas ela é matuta, cabeça dura; já queimou roupa minha e me colocou para fora de casa. Como sou uma pessoa independente, segui minha vida”, explica.
Segundo Rafael, ele nunca passou por nenhum constrangimento na Metrópole, mas afirma que isso ocorre por ele se apresentar numa boate de elite e pelo seu profissionalismo. “Se eu trabalhasse numa casa freqüentada pelas classes C e D com certeza o tratamento seria diferente, mas nunca houve nenhum tipo de agressão.”, diz.
Um fator que incomoda Rafael é a confusão feita entre a profissão de drag queen e a prostituição. “Eu estava na festa de uma empresária muito conhecida daqui, e um amigo dela disse que pagaria meu cachê dobrado para que saísse com ele; aí falei ‘estou com roupa de mulher mas não deixo de ser homem, me respeite!’. Eu recebo muita proposta indecente”, diz.
Quem observa aquele rapaz de pele morena e barba já grande não imagina a máscara que a maquiagem vai criar e as distorções que serão geradas a partir disso.O que mais irrita Rafael na profissão é ser confundido com travestis e transexuais por conta da transformação que passa; as pessoas que não são do meio GLBTS não levam o seu trabalho a sério. “Gosto de mim como sou. Nunca quis virar mulher, Thânya tem sua hora de chegar e ir embora. Quando ela não está encarnada no meu corpo me comporto como um homem comum.”, diz.
Entre a fama e os flashes
Entre os flashes das máquinas fotográficas, os abraços, beijos e aplausos Thânya Tulmuto circula com tranqüilidade pela boate. Depois de cantar algumas músicas em estilo dance ela dá atenção e conversa com todos os fãs. “O artista tem que ter simpatia, educação e humildade. Muitas drags se deslumbram com a fama e quando descem do palco fazem cara de abuso”, afirma.
Thânya Tulmuto também está tentando concretizar a carreira como cantora. Ela já gravou um cd, e vai lançar o segundo disco este mês. “Também escrevi, durante algum tempo, sobre a noite recifense no site Gay Nordeste. Eu tento investir em outros ramos da carreira artística para consolidar meu nome”, diz.
Com quase mil amigos no site de encontros Orkut, mais de 300 fãs e uma comunidade com 230 pessoas, Rafael diz não saber lidar com o sucesso da personagem. “Eu tento responder todos os e-mails dos fãs; ela tem um site oficial e outro de fotos. Quando entro no MSN como Thânya é uma loucura, o computador trava”, afirma
O sucesso de Thânya Tulmuto já transcende os limites da cidade do Recife. Ela já se apresentou em boates nas noites de João Pessoa e Natal. A drag queen ficou em segundo lugar, como artista revelação do Brasil, no concurso Abalo, que premia as figuras que mais se destacaram na cena GLBTS do país, e em terceira colocação como melhor hostess. “Essas premiações foram importantes porque divulgaram meu nome em São Paulo”, diz.
A competição no mundo das drags é forte, segundo Rafael a concorrência para ver quem tem a melhor roupa e maquiagem é intensa. “Elas são amigas e inimigas, ao mesmo tempo, sempre que podem dão uma apunhalada pelas costas”. Ele afirma que nunca se deslumbrou com o mundo da fama e dos holofotes e que tenta manter a simplicidade através do contato corpo a corpo com o público. “Essa coisa de virar estrela é algo que não me enche os olhos, eu continuo sendo a mesma pessoa”, completa.