As imagens que nos alimentam são as imagens que se alimentam de nós
Resenha do livro
A ERA DA ICONOFAGIA
Norval Baitello Junior
Hacker Editores, São Paulo, 2005, 124 páginas
Por Luiz Carlos Assis IASBECK
Vivemos num mundo de imagens. Somos devoradores de ícones e o fazemos ferozmente da mesma forma como somos devorados por eles. É em torno dessa hipótese, habilmente transformada em tese, que o estudioso de semiótica da cultura e professor Dr. Norval Baitello Júnior nos conduz ao terrível e desafior mundo da que ele denomina como da “iconofagia”.
A iconofagia é um fenômeno não tão moderno assim, mas fortemente impulsionado pela indústria da comunicação de massa . Ininterrupto, não poupa quem esteja submetido aos paradigmas dessa nova indústria cultural, uma empresa que não mais nos oferece apenas informação, cultura e entretenimento, mas trambém nos subjuga ditatorialmente aos seus caprichos estéticos e interesses econômicos.
A iconofagia surge da mediação. As imagens se devoram umas às outras, devorando-nos a nos mesmos, veículos, produtores e consumidores dessa profusão infinita de formas, cores, movimentos e ruídos.
Sem dúvida, uma visão apocalíptica, não fosse a esperança de que nas pontas de todo esse processo está o ser humano, que pode e deve, no exercício de sua consciência crítica, adestrar tal universo de imagens, domando-as, avaliando-as, controlando-as.
As idéias de Norval Baittelo Junior, lúcida e condensadas, nos conduzem a uma dimensão pouco explorada das relações humanas, porque sempre focada nas tecnologias e nas estratégias de comunicação. Interessa ao autor uma releitura desses processos, à qual ele competentemente nos conduz, através de um caminho pouco habitual, porque reconstruído em textos produzidos em diferentes situações e com diferentes interesses.
Dividido em duas partes, o livro nos traz, primeiramente, uma visão da comunicação indissoluvelmente ligada à vida humana, naquilo que ela possui de mais íntimo e próprio: o corpo. Aqui, esse corpo é visto sob vários prismas.
Já no primeiro texto, que tem por título “A Ocidentalização”, Norval nos faz deparar com um grande dilema, aquele que justifica todos os demais textos do livro: encontramo-nos encarcerados, perdidos, temerosos, fatigados, iludidos e condenados a um olhar vazio, que não é capaz de nos nutrir dos ingredientes mínimos para a sobrevivência psicológica ativa. Esse mundo, que se nos oferece farto em atrações, reproduz intensamente imagens desprovidas de objetos, referências últimas e primeiras, essências que lhes dão sustentação e lhes determinam a operacionalização. E, então, nos chama a atenção para o fato de que “o que nos atrai e nos captura nas imagens é justamente sua face profunda, seu lado invisível, seu passado de sombra, em suma, seu teor de medo, sua dolorosa lembrança de separação do mundo dos objetos, dos corpos”.
Esse mundo de imagens vazias é o ambiente no qual o autor trata a questão da violência, aqui concebida como fenômeno sutil e insinuante, diferentemente da embalagem bruta e estúpida que a mídia criou para nos viciar ao consumo. Para Norval, a nova violência se dá de forma leve, mas indelével, nos padrões informacionais e comportamentais adultos. Não é de outro modo que ele explica dois fenômenos paradoxais e interdependentes: a juvenilização do adulto (tema tratado anteriormente por Edgard Morin) e a senilização do jovem, acelerada pela ansiedade dos adultos em proverem seus filhos de competências para o “mercado” da vida. É aqui que Norval nos apresenta pensadores pouco conhecidos do público brasileiro, como o etólogo Frans de Waal, e o estudioso da comunicação Vicente Romano, espanhol que desenvolveu as idéias do alemão Harry Pross, além das contribuições importantes do jornalista e comunicólogo Dominik Klenk sobre o “aproveitamento” do tempo de vida.
Os efeitos do consumo da mídia são medidos – como em toda a obra – no corpo, “mídia primária da cultura”, no entender de Pross, reforçado por Vicente Romano. Esse corpo, juvenilizado, senilizado é também “sedado” para que não processe criticamente as imagens que percebe no mundo midiatizado. “O que não deciframos, nos devora”, afirma Norval, numa citação clara do enigma da esfinge em Édipo Rei, de Sófocles, e que - no livro - explica as conseqüências nefastas do tempo acelerado. Esse tempo não mais nos permite o exercício lento da contemplação, da perenização; assim, “no momento em que não as deciframos, não nos apropriamos delas e elas nos devoram”.
A posição do corpo é decisiva para tal devoração. O famoso chavão “parar para pensar”, que utilizamos sem parar e sem pensar, é aqui retrabalhado como estratégia de sedação. A “anulação do espaço” introduzida pela mídia elétrica/eletrônica com a aceleração do tempo de processamento, gera um processo de alienação que passa pela “perda do presente” e conseqüentemente pela “perda da corporalidade”.Um delicado e feroz tirocínio que nos compele ao estranho desafio de sair do lugar comum, onde menos imaginávamos que ele estivesse.
As perdas do presente e da propriocepção são tratadas, em seguida, de forma integrada e conseqüente: a rarefação do corpo nos processos comunicativos esgarça os vínculos e nos faz perder a referência ao outro. Nessa perspectiva, perdermos-nos a nós mesmos numa auto-referência vazia, transformamo-nos de “indivíduos para divíduos”, num processo quase irreversível de entomização (divisão, partição, separação). Norval conversa aqui com os filósofos alemães Günther Andrés e Dietmar Kamper, uma conversa pontuada pelas preocupações que outrora assolaram Walter Benjamim e que o levaram a refletir/prenunciar um futuro sombrio para a obra de arte num mundo em que a tecnologia não se inibe diante das possibilidades de reprodutibilidade técnica. Uma preocupação, de resto, renovada e evocada a todo momento como marco histórico decisivo para polemizar a multiplicação das imagens, recurso de que a mídia irá se valer à exaustão. Aqui, especificamente, as imagens da mídia comparecem como berço de uma nova ecologia que substitui o “oikós” pelo eco, num processo incessante de redundância, provocando o sumiço acelerado dos significados. Ecos sem “oikós” são ocos!
A era da iconofagia começa a se delinear quando “ao consumir imagens, já não as consumimos por sua função janela (kamper), mas pela sua função biombo (Flusser)”. É aqui que Norval Baitello Junior nos faz deparar com o obscuro mundo das imagens sem referências, das imagens sem objetos, das imagens de imagens de imagens ... ao nada. Isso porque, ao devorar imagens anteriores, toda imagem se presta a ser devorada pelas imagens futuras, impedindo-nos de alcançar-lhes um fundamento, um alicerce sustentável de significação.
O “canibalismo pós-civilizatório”, que Günther Anders utiliza para definir o estágio correspondente à terceira Revolução Industrial, é aqui a mais contundente explicação que o autor nos dá para que entendamos os processos que “desprivatizam o espaço da individualidade”. E tudo isso, que pode até parecer etéreo a um leitor pouco acostumado a inquietações do gênero, soa dramático no texto seguinte, “O Corpo em Quiasma”.
Visto e revisto como pura linguagem, portador e produto de linguagens, o corpo é apresentado como lugar de equívocos históricos e histéricos. O corpo é o lugar de uma síntese por vezes impossível pois que “é movimento, tempo e memória ... abstrato e fugaz ... possui materialidade e (também) ... constrói-se em abstrações”. Imagem e semelhança dos deuses, o corpo revela (e se rebela) como o lugar da diferença do humano e, portanto, da imperfeição. A partir de tais pressupostos, o autor escancara os corpos modernos (corpo-bomba, corpo-química, corpo-máquina) em pluralidades bi-uni e nulodimensionais, mostrando-nos as possibilidades e as impossibilidades de criarmos, a partir do corpo, os vínculos que são o motivo maior da comunicação humana.
Sem dúvida, um passeio inusitado por lugares pouco freqüentados do saber manjado, constituído pela tradição nas áreas da comunicação, da psicologia, da antropologia e da sociologia, sobretudo.
E tudo isso comparece no primeiro capítulo, porque o segundo vai se debruçar sobre o processo da comunicação, atando, reatando e desatando nós (e, por que não dizer “nós” todos?) nos quais se dão os vínculos, motivações ontológicas para a comunicação humana.
Num mundo densamente informatizado, a troca de informações vai muito além do necessário ou suficiente para a manutenção da vida biológica ou social. A comunicação busca alargar espectros e horizontes da dimensão psicológica da vida humana, esforço aqui traduzido na re-significação do espaço e do tempo. O que se busca é uma espécie de consolo para uma situação apenas contornável simbolicamente: a solidão ontológica que nos aparece à consciência no nascimento e jamais nos abandonará, pelo fato de sabermos, com antecipação, que um dia iremos morrer.
E para não concentrar tudo em exclusivas razões humanas, Norval parte em busca novas possibilidades. Assim, encontra no comunicólogo Harry Pross, no etólogo de Waal, no biólogo H. F. Harlow, nos trabalhos do grupo do pesquisador alemão Eibl-Eibesfeldt fundamentos necessários para nos convencer a deixar de lado o antropocentrismo que reina nos estudos da comunicação, estimulando-nos a caminhar na compreensão de outros sistemas comunicativos não-humanos.
Os sistemas humanos da escrita, as inovações tecnológicas advindas do uso da descoberta e domesticação da eletricidade – que permitiram a evolução sem precedentes da chamada mídia terciária, aquelas cuja mediação se dá por máquinas – aliadas às lógicas precedentes da magia, das medições arcaicas nas quais partes do corpo eram a “medida de todas as coisas” constituem estratégias nas quais o autor se apóia para municiar-nos com dados contundentes na busca de novos sentidos e na explicação da perda de antigos e tradicionais modos de buscar sentidos para a vida.
Daí em diante, o corpo é assumido como mídia primária e prioritária da cultura. O excesso de visibilidade cega a percepção do homem para o corpo real e o leva a assumir um corpo virtual que prima pela distancia e pela assepsia do contato com o real; uma realidade demasiadamente humana para um mundo tecnologicamente em superação constante.
As quatro devorações, de indiscutível inspiração oswaldiana, tratam de processos múltiplos de canibalismo supra e infra-humanos, nos quais corpos devoram corpos, corpos devoram imagens e imagens devoram imagens que são, por sua vez, devoradas por outros corpos. Uma alegoria autofágica tal como a de uma cobra que come a si mesma pela cauda sendo, ao mesmo tempo, a forme a comida.
No texto seguinte, “A Cultura do Ouvir”, Norval faz um passeio semiótico pelo mundo dos sentidos, buscando entender nossos drives de entrada como equipamentos sensíveis a muito mais informações do que podemos ainda processar. Montagu, Sacks, Kamper dialogam o tempo todo num texto altamente denso e condensado que nos indica diferentes caminhos de pesquisa, ao tempo em que nos incita a uma reflexão, estranhamente deslocada mas curiosamente adequada, para entendermos algumas debilidades e deficiências corporais como fenômenos da cultura.
Não há determinismo pessimista nem otimismo fácil nas fecundas e inteligentes articulações que compõem A Era da Iconofagia.. A “polivalência instigante” sugerida nesse neologismo nos abre flancos múltiplos de reflexão, oferecendo-se a nós como um poliedro multifacetado a exigir decifração.
Um desafio, de resto, sem sua contrapartida mitológica: afinal, já participamos – todos nós e há muito - do imenso cardápio desse banquete iconofágico.