Desde os primeiros anos de idade que o Jornal de Notícias faz parte da minha existência, espécie de cartilha quotidiana que, além da leitura, me tem sido factualmente útil em muitíssimas e diversificadas coisas. Com ele fiz bolas de futebol, bibaques militares, aviões e estrelas, embrulhos, caderno de apontamentos e, enfim, claro e óbvio está o que mais fiz.
Meu tio Marcelino ensinou-me também a fazer, através de umas quantas simétricas tesouradas, fascinantes enfeites que eu, muito orgulhoso, oferecia a minha avó para colocar nas prateleiras da benquista cozinha mindelense. O fumo da lareira batia-lhes e elas balouçavam tal qual como eu em meu banlancé pendurado num galho de uma robusta figueira.
Os Leitores decerto estão ao corrente do "cisma intelectual" a que o JN esteve votado ao longo de décadas. Os presumidos sabichões, exactamente igualzinhos à versão hodierna que se exibe na televisão, chamavam-lhe o "jornal das sopeiras", porque era - e é - um jornal exclusivamente elaborado para o povo ler e entender quanto possível o que lia.
Como os tempos mudaram, pois. Mudaram?!...
Há uns meses a esta parte, após um breve relance pela página frontal, começo a ler o JN pelo fim. Lá vem, sob um rectangulozinho castanto com foto do autor, a crónica diária de Manuel António Pina (MAP), um pedacinho de literatura que me bate no centro do alvo encefálico e me proporciona uma mais âmpla lobrigação sobre a complexa amálgama da humanidade decorrente.
Desta feita estou a referir-me ao conteúdo que aborda a vinda a Portugal da primatóloga Jane Goodall, uma daquelas excepcionais pessoas, hoje com 71 anos, que consagram a vida à investigação da evidência natural que nos rodeia, que se mete pelos nossos olhos adentro, mas nós não vemos nem aplicamos uma nesga de tempo a tentar ver.
A Jane, quiçá assim baptizada por causa do John Weissmuller, há 40 anos que se dedica ao estudo sobre o comportamento de chimpanzés - donde a Cheta era oriunda - no Lago Tanganica. Sociabilidade, raciocínio, sentimentos, humanas coisinhas que o maior dos predadores em pleno 2006, divinizado, considera só suas, "dominado ainda pelas formas mais alarves de antropocentrismo", como exemplarmente designa MAP.
Em conclusão, a corajosa Jane, entre um sorriso a todo o rosto, firme e convicto, assegura-nos "quão ténue é a linha que separa o homem dos outros organismos vivos, animais e plantas".
MAP, termina com o sequente rigor a sua saborosa crónica "A linha estreita": "Num país onde os abusos sobre os animais (e, em geral, sobre os mais fracos, as crianças, as mulheres, os excluídos) são a regra, isto é não só uma lição de humildade mas corre o risco de parecer um escândalo".
Há mais ou menos 40 anos (também!!!), porque escrevi, inserida na letra de uma canção, a quadrazinha que já adiante apresento, o chefão de uma editora discográfica considetou o arroubo uma "desconexidade", exprimiu-se. Uma pedra, uma flor,
o mais pequeno ser vivo,
um pedacinho de amor,
tudo-tudo é relativo.
As "pedras", caro Leitor, estão todos os dias aí: umas calçando o chão e outras a passarem por cima delas.
De resto, bem, de resto, reapreciando o que acabo de escrever, dá-me ideia que sou oriundo da engraxadoria do Café Imperial no decurso dos anos 50/60. Está ou não está um par de sapatos muitíssimo bem polido?!...
António Torre da Guia |