Há pouco tempo, por ter afirmado em sala de aula, num curso de Metodologia da Pesquisa Científica, para a pós-graduação, que a dialética, enquanto método e lógica já assumiu o papel de condutora do pensamento científico contemporâneo nas ciências humanas e sociais, ouvi de um desses alunos, inquietos intelectualmente e com certa bagagem de leitura: - professor, é difícil concordar com o senhor, uma vez que estamos vivendo a morte da história e a derrocada do pensamento e da filosofia marxistas que fizeram da dialética seu método de conhecer a realidade e de transformar o mundo. Respondi-lhe lendo nota de pé-de-página dos originais de meu livro "A maravilhosa incerteza", agora já editado com lançamento daqui a alguns dias em BH e que passo a reproduzir:
“A estranheza é típica de quem julga realmente que, por causa da derrota do socialismo científico na ex-União Soviética, a queda do Muro de Berlim e as mudanças políticas radicais na China, foi a dialética banida do estatuto das ciências humanas e sociais. No meu entender faz-se aqui ilação a partir de fatos históricos com o objetivo de sustentar grande falácia. Independente do que está ocorrendo no mundo contemporâneo, em termos sobretudo de neoliberalismo e globalização, onde o enfoque e as preocupações enfatizam apenas aspectos econômicos, com destaque para o monetarismo e o especulativismo, sob a enganosa defesa do mercado livre, o acompanhamento de todos os movimentos identificados como políticos e sociais possibilita-nos considerar que a visão dialética da realidade (a mesma que embasou o marxismo) impregnou de tal forma as ciências e as pesquisas sociais que é impossível negar ser o pensamento contemporâneo eminentemente problematizador. Ninguém pode negar que isso se deve à dialética, desde Hegel é verdade, mas, sobretudo, a partir da contribuição de Marx, ao inverter o processo dialético idealista de Hegel e transformá-lo em processo dialético - materialista - histórico. Com o objetivo não só de compreender e explicar o social, como, sobretudo, de intervir na sociedade para transformá-la”.1
Constitui a maior sandice de nossos dias afirmar que a história morreu, que a dialética morreu, porque foram liquidadas pelo “triunfo” do capitalismo travestido de neoliberalismo! Leandro Konder, propondo estudar o porquê do ‘fracasso’ dos movimentos de esquerda no Brasil, quase todos originados no marxismo e por ele sempre alimentados, concluiu, em sua tese de doutorado, com afirmação que pode ser aplicada aos movimentos de esquerda no mundo inteiro: “Por dura que seja, no entanto, uma derrota é apenas uma derrota: não é a morte. E as derrotas da dialética podem sempre vir a ser, dialeticamente, aproveitadas pelos dialéticos. Walter Benjamim já escreveu, uma vez, que a vitória pode engendrar facilmente uma ideologia triunfalista que entorpece o espírito autocrítico e leva o pensamento a se instalar num carro blindado. A derrota, ao contrário, nos desafia a nos revitalizarmos e pode nos dar uma preciosa ocasião para nos renovarmos; com a derrota podemos aprender todas as fintas da ascensão e podemos nos banhar na vergonha como no sangue de um dragão”2. Prefiro mil vezes o epíteto de demodé, por sustentar a vitalidade e eficácia da dialética e a visão marxista do processo histórico para interpretar a realidade e entender os fatos sociais, a aderir (como tantos fizeram, inclusive os marxistas arrepen-didos) ao ecletismo ideológico e político, sobretudo este que impregna a falsa social-democracia de certos políticos.
E por falar neste tipo de ecletismo, a que se recorre por oportunismo, nos dias atuais, vale lembrar Lefebvre, também citado em meu texto: “Essa idéia do compromisso eclético impeliu politicamente a democracia para a crise que iria causar sua perda. A esperança de compromisso entre o fascismo e a democracia – com intenção de misturar certos aspectos do fascismo com certos princípios da democracia - foi, no plano ideológico e filosófico uma razão da não resistência à Alemanha hitlerista por parte de muitos democratas amantes do ecletismo político”(Lógica formal/lógica dialética, 1975, p.229).
Mutatis mutandis, estas palavras servem de reflexão quando deparamos com este ecletismo ideológico e político no poder, na conjuntura atual brasileira (“socialismo” com social-democracia com neoliberalismo!). Se os ecléticos franceses se entregaram ao fascismo, os nossos ecléticos tupiniquins estão nos entregando de corpo e alma à hegemonia norte-americana. Entrega por entrega, não sei qual a pior!
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1 SALOMON, Délcio Vieira. A maravilhosa incerteza. São Paulo : Martins Fontes, 2000, p. 154
2 KONDER, Leandro. A derrota da dialética: a recepção das idéias de Marx, no Brasil até o começo dos anos 30. São Paulo : Campus, 1988, , p. 206-7.