FRANCISCO MIGUEL DE MOURA: DO LADO DE DENTRO, A POESIA
R. Leontino Filho(1)
“toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início”
Torquato Neto
A linguagem descarnada, aparada em suas mínimas reentrâncias; a linguagem como morada do signo máximo da concisão; a linguagem desossada, cozida com os condimentos substantivos da arte; a linguagem como olhar estético e expressão social, sem arestas, muito menos adornos que dizem menos quanto mais se espicham; a linguagem como síntese verbal dos sentidos, fio esticado no exato compasso da invenção e do rigor; a linguagem concentrada na construtiva contenção do intelecto, catalisada na informação ética, densamente fincada no trabalho, no esforço, na pesquisa e na experimentação; a linguagem que instaura minimundos de vastos viços e expande microcosmos verbais; a linguagem em si mesma, per se, miragem de palavras outras, arte em combustão. Poesia, linguagem posta em palavra-arte. A poesia, assim, plástica concreção de vozes, descobre a liberdade significante do existir: é música e silêncio fundando, mediante a medula do ser, a vivência do real.
A linguagem extensamente transitiva do encantatório enunciado poético, aquele que vai direto ao tema e que sem firulas rema para praias de densos significados; sem pudores, despe a imaginação, inteira, dos ornamentos lingüísticos que apenas adiam o encontro com a radicalidade de uma memória que não se rende, em momento algum, à estética dos artifícios retóricos. A princípio, esta pode ser uma das muitas portas de entrada para se compreender e fruir a arte de Francisco Miguel de Moura. Dentro do projeto artístico do autor, a poesia não necessita de volutas verbais que servem somente para consubstanciar o falso percurso revestido pelo manto de um pedantismo lírico esvaziado de substância humana. Nesse universo de precisão poética, a palavra não deixa rastros, muito menos sombras; com isso, nada sobra, tudo está, despojadamente, ajustado na conformidade entre aparência e essência.
Francisco Miguel de Moura, com sua Antologia – poemas escolhidos pelo autor –, reveste cada palavra de uma profunda reflexão filosófica entretecida de aproximações metalingüísticas franqueadas no convívio das descobertas do cotidiano. Cada palavra, assim, nesse repertório de tecelagem poética, encontra-se sob medida, adequadamente posta. Cada linha é em si mesma um artefato composicional preciso de intensa poesia, a requerer outro verso que por si só comporta outros sons e, quando desse modo o faz, cobra novos ritmos, transmutando-se em outros tons. Sem enfeites, a poesia entrega-se inteira em seu lastro de concisos e atraentes encantos. Uma Antologia sem arestas, ampla em seu universo de alumbramentos, é o que é no justo espaço em que se concretiza como palavra-arte, aquela que se faz necessária sem ceder ao receituário das facilidades mercantis do verso ruim, que em má hora propaga-se como peste, ceifando os derradeiros ecos da beleza. Palavra-arte, eis o caminho arduamente trilhado por Francisco Miguel de Moura ao longo de seu trajeto com a literatura, uma travessia de muitas andanças e de vigorosos frutos, alguns deles replantados na peregrina colheita desta fecunda Antologia de fulgurações e epifanias costuradas por uma força criadora singular.
A escolha dos poemas pelo autor, uma seleção comemorativa de 40 anos de poesia, não poderia ser mais significativa. As muitas vertentes do poeta Francisco Miguel de Moura deságuam na transparência da vida, gerando prazeres e emoções incandescentes. A crítica, a autocrítica, o humor, a musicalidade, as referências intertextuais, a índole metalingüística, o universo com sua gama de indagações, o sopro do tempo, o rumor do destino, o equilíbrio das horas, a potência imaginativa, a singela grandeza de versos arrebatadoramente humanos, a composição rigorosa (metros, ritmos, timbres, jogos de pensamento, fecundas notações vocabulares), a eroticidade, a espiritualidade, a cultura do povo, o alto poder evocativo da linguagem, tudo isso, além de outros elementos característicos da poesia valiosa de um grande poeta, pode ser observado nesta Antologia que, mais do que símbolos, traz a linguagem da vida para o espaço-tempo dos homens. Francisco Miguel de Moura, sem artifícios e sem malabarismos, oferta com parcimônia aos amantes da poesia, um emblemático memorial de crepúsculos e auroras repleto de palavra-arte. Mario Faustino escreveu em sua magnífica Poesia-Experiência “que a verdadeira poesia é feita com palavras vivas, com palavras coisas, e não apenas, e muito menos, com conceitos, impressões, confissões...” Francisco Miguel de Moura, com sua poesia, captura os instantes do ser por meio de palavras vivas onde o território da linguagem é a própria amplidão da beleza, traduzida pelos poros da maravilhosa inocência do viver. Um poeta pleno, em sua Antologia total, entregue à grandeza da poesia, do lado de dentro da verdadeira e necessária arte da palavra viva.
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(1) R. Leontino Filho poeta e ensaísta brasileiro.