Em miúdo, pelo Natal e pela Páscoa, ia do Porto para Mindelo com os meus pais passar três emotivos dias na casa de minha avó materna, entre tios, tias e primos que lá se reuniam naquelas quadras festivas.
Alinhadas na parede do fundo da sala principal, imediatamente acima de um venerável sacrário envidraçado no interior do qual se via um pungente Cristo ensanguentado, pendiam, em molduras de castanho torneado, as poses oficiais de D. Maria II, D.Pedro V, D.Luís, D. Carlos, D. Manuel II, Teófilo Braga, Manuel de Arriaga, Bernardino Machado e Sidónio Pais.
Só uma vintena de anos adiante compreendi porque Sidónio Pais era o último da sucessiva plêiade. Desde que meu avô faleceu, um tipo de profundo olhar negro e bigodaça à mexicano, nunca mais alguém cuidou de registar naquela parede quem mandava em Portugal. Meu avô, pescador e lavrador mindelense, morrera antes de eu nascer. Também compreendi a política que o meu antepassado cultivava: servia e sentia-se orgulhoso de quem Deus colocava à testa da nação.
No Porto, na casa onde eu habitualmente habitava, na Travessa de Serpa Pinto, a tradição político-cristã era muito mais leve. Nos quartos de cama havia apenas pequenos Cristos sobre as cabeceiras dos leitos e na sala de jantar a Ceia, permanecendo discretamente sobre o móvel onde se guardavam pratos, copos e talheres um pequeno busto em vidro de Salazar.
Em 1952 a que mais se havia pois de aspirar com a Europa ainda a refazer-se e a limpar-se dos escombros da II Guerra Mundial?...
Mais tarde, teria eu 18 anos, lembro-me perfeitamente da inopinada cena em que minha mãe correu comigo da mesa, atirando-me com quanto havia em cima e em redor. Em debate religioso, eu dissera-lhe que o Cristo do quarto dela, enquanto meu pai me produzia, deveria ter-se contorcido imenso ao contemplar o esplêndido enlace. Até o Salazar veio atrás de mim...