Já disse e escreveu tanta-tanta coisa sobre a origem do Fado. Diz-se que veio dali, escreve-se que nasceu acolá, algo de parecido como a mão-cheia de incertezas que pairam sobre a verídica data de nascimento do nosso vate-mor. Ora, escrevendo-se mais uma singela hipótese, não será por isso que a polémica confrontante mais se adensará.
Quem ignora que a hidra abordada pela Bíblia - o mostrengo de sete cabeças ao qual Hércules por mais cabeças que cortasse mais cabeças apareciam - somos nós, o conjunto que constitui a humanidade?
Quem ignora que o portuguesíssimo Fado, desabafante lamento cantado, advem da intensa luta que os portugueses, há cerca de dois séculos, travavam com esse "é a vida", expressão-súmula que considera todas as inevitáveis vicissitudes que as pessoas, queiram ou não queiram, têm de atravessar no decurso da sua existência?
Coloco-me a matutar sobre a origem da exígua cena fadista que percorreu o tempo, a guitarra portuguesa de um lado, viola do outro e ao meio de ambas a cantadeira, a Severa, e o cantador, o Chico do Cachiné, espécie de descoberta espiritual que constatou que a tristeza cantada conforta e consola a alma a ponto de até dar prazer.
Recuo meio-século na memória e recordo-me dos momentos em que festejava eventos pessoais com os meus amigos. Comíamos, bebíamos e discursávamos. Dado que entre os convivas não havia pelo menos um músico e um instrumento, uns cantavam, outros imitivam a música com a boca e outros ainda batiam com os talheres e as mãos sobre a mesa.
Interrogo-me então: não teria porventura o primeiro pendor fadista surgido em canto-lamento acompanhado por tamborilação sobre uma mesa? Implantado o hábito, logo que os trabalhadores suados regressavam à noitinha das fainas e se reuniam nas tascas para bebericar, conviver e cantar, terá surgido alguém a irmanar-se com um instrumento de cordas - guitarra portuguesa - que começou a dedilhar a contento. Em seguida ao bis-a-bis que se espalhou entre as gentes vizinhas, não tardou que acorresse um tocador de viola a completar o trângulo ideal que estabeleceu e fundamentou enfim o Fado.
Fico-me por aqui neste breve apontamento cogitante, pequeníssima coisinha que verte em raciocínio simples, do tipo das naturais evidências que iluminaram Colombo perante o ovo e Newton em face da maçã.
Deixo entretanto mais um Fado. Venha a música, a cantadeira ou o cantador: