As comemorações do qüinquagésimo aniversário de descobrimento do Brasil trouxeram à tona algo mais que uma milionária festa binacional. Algo mais que uma festa das aristocracias luso-brasileiras. Trouxe, também, e mais uma vez, o ranço da colonização e submissão de um aos dobrões de outrem. Mas, no caso específico, os dobrões citados não são somente os da coroa lusitana, mas de outras coroas americanas e européias.
Para os festejos comemorativos foram convidados representantes de todas as nações amigas e, velada e diplomaticamente, até de nações não tão amigas. Fizeram-se representados os mais importantes líderes internacionais. Vieram quase todos. Hospedaram-se em luxuosos hotéis. Comeram e beberam do melhor. Festejaram como sua, a nossa (?) festa. Compareceram a todas as atividades programadas, tendo obtido passe livre por onde necessitassem transitar. Sem barreiras e com direito a batedores em potentes automóveis e armamentos.
Os chefes de nação convidados estranharam, mas nem tanto, a falta dos nativos à festa. “Não se descrevia os índios na carta daquele navegador (como era mesmo o nome dele)?” perguntavam uns. “Cadê os índios peladões?” questionavam algumas madames mais saidinhas, fazendo coro a alguns senhores diplomatas europeus. Quanto aos ´peladões`... Desses, só apareceram uns poucos. Bem remunerados ou bem empregados no Governo, evidentemente. Mas, para decepção de muitos dos presentes, estes índios apareceram; e apareceram com suas vergonhas cobertas. Muitos senhores da história, teóricos e brasilianistas, entre tantos outros, em geral freqüentadores de pubs gls em seus países, consideraram o fato das vergonhas cobertas uma afronta à representatividade plástica e cênica que o momento histórico e festivo exigia.
Houve rumores entre os convidados dando conta de que os índios não estariam muito satisfeitos com a festa, que pensavam organizada para comemorar a tomada de suas terras, o extermínio de seus ancestrais, a proliferação da aids, etc., e que estariam preparando uma revolta contra o governo brasileiro, que se iniciaria ali mesmo, nas terras da comemoração. Foi um rebuliço. Cogitou-se, até, a hipótese deles estarem se armando, a exemplo do que ocorre com outros índios, em outro país terceiromundista, que plantam cocaína, maconha, comprimidos ou coisa parecida, que haviam deflagrado um movimento nacional em defesa do livre viver e do livre plantar (ou algo parecido, também). Na televisão alguém viu o pau quebrar entre a polícia e os índios brasileiros que não foram convidados para a festa e que também não poderiam entrar de penetra nem que estivessem fantasiados de índios. Ficou um clima pesado. Baixou ares de ressaca na festa que, afinal de contas, nem havia começado direito e já estava naquele insustentável estágio de louça quebrada e roupa suja. E aventou-se, ainda, entre os convidados almofadinhas, a idéia de que alguém dentre eles tivesse que chegar ao ponto de ter que tomar partido na confusão, afim de permitir ou não a entrada daqueles indigestos penetras. Mas, para alívio geral, o cerimonial conseguiu levar todos os convidados para outro recinto da casa, bem afastado da porta de entrada e do bafafá que já adentrava o salão principal.
Ao final da festa, garçons desalinhados, conseguiram salvar alguns intactos litros de uísque, muitos comes, alguns penachos, escalpes variados, pares de smokings cuidadosamente pendurados em cabides nas fechaduras das portas dos quartos de hotéis e muito mais. O grosso da sujeira estava mesmo era no quintal. Espalhados pelos cantos haviam cartuchos de grossos calibres, estilhaços variados e muita, muita sujeira. Mas a sujeira que mais chamava atenção era a de uma poça avermelhada, estranha, viscosa, misturada a tinta de urucum, penas de gavião, palhas de coqueiro e contas e miçangas de cores sem brilho. A poça era de sangue. De sangue de índio. De índio da terra. Da terra brasilis.
Aquilo era o claro sinal de que a festa não havia sido somente alegria e deslumbramento. O balanço da festa mostrava que o excelentíssimo senhor anfitrião havia fechado no vermelho. O débito apontado no balanço geral foi estrondoso. E não somente para o anfitrião, mas para todos os que participaram ou estiveram presentes à festa. O melhor que fizeram foi pagar a conta do buffet, pagar os cachês dos discursistas, dos índios “bons” e dos artistas católicos, acertar as diárias dos hotéis credenciados e botar todo mundo para correr, “sem alarde e sem violência”, como solicitou o chefe do cerimonial. “Deixa com nós” responderam os seguranças. E saíram a finalizar a festa. E a festa acabou assim, acabando.
O dia da partida dos convivas foi marcado pelo silêncio. Marcado por aeroporto vazio e cemitério lotado. Cemitério em que acontecia o enterro do filho dos ancestrais donos dessas terras. O enterro do índio que deixou aquela poça de sangue misturado com a tinta do urucum na porta daquela festa. O enterro sim, tinha muitos convidados e caberiam muito mais penetras. Não foi exigido traje a rigor, mas os amigos do índio compareceram à caráter. Vestidos de muita vergonha, de lágrimas centenárias e de extrema dor. Enquanto isso, os convidados daquela outra festa fitavam a cena ao longe. Tristes. Com seus cotovelos apoiados nas janelas altas dos hotéis de luxo. E calaram-se todos. E toda a cidade se calou. A involuntariedade do momento foi extremamente constrangedora. Na verdade a ´festa` parecia encerrada fazia anos. Aos turistas, que afluíram às comemorações, sobrou a impressão de estarem na cidade errada e na hora errada, e mais latente, com a impressão de estarem sempre atrasados para partir.
O silêncio dos que deixavam a cidade era cortante. Cabisbaixos e sonolentos todos seguiam na fila do check-in. Só se conseguia ouvir bocejos e o tilintar, em uma ou outra mala mais vazia, de talheres surrupiados nos restaurantes dos hotéis. Ninguém comentava a morte do índio. Os jornalistas, muito envergonhados também, acompanhavam com respeito a despedida calada dos convidados. Nada perguntavam e nada comentavam. Estavam ali por puro dever profissional, ou sabe-se lá, porque devessem aguardar alguma notícia que se sobrepusesse ao ocorrido durante as comemorações. Algo como o desembarque de alguma autoridade do Planalto Central para tomar a frente no processo decorrente dos graves fatos acontecidos por daqueles dias. Mas o que marcou o dia foi mesmo o marasmo e a preguiça causada pela quentura de mais um dia em Porto Seguro. Um dia quente, porém, sem disposição para praia. Sem vontade de festa ou praia. Todos os nativos do lugar, daquele continente descoberto a 500 anos, preferiram tirar o dia para refletir sobre como remodelar o contato com os ex-donos da terra, como rebatizar conceitos de solidariedade, de bem-estar e de cidadania, e como redescobrir-se cidadão em sua própria pátria-mãe-gentil.