A ESTÓRIA DO CAROCHÃO
Mamar ou não mamar... Eis a questão!...Dantes, a dona de casa, sempre que varria a cozinha, encontrava defronte ao piaçaba da vassoura a carochinha, a qual, logo que se escapulia, proporcionava à gigantesca senhora a descoberta de uma bela moeda de ouro. Dantes, no tempo salazarento, há mais ou menos três-quartos de século, numa altura em que os animais ainda não tinha perdido a fala.
Também, naquela cinzentíssima época, logo que retirassem o apetitoso biberão aos bebés - coitadinhos deles - sentiam-se logo aflitíssimos e choravam muito. Desde então, tudo-tudo mudou para melhor. Inclusivé até se pode roubar à grande e à brasileira impunemente. Só não mudou, pois-pois, foi o hábito dos mamõezinhos, aliás, piorou imenso: basta apenas insinuar (salazarar) que se lhes pode retirar a privilegiadíssima mamadeira e o choro antigo, entre o berreiro que se instaura, fica de imediato a perder de ouvido. Shakespeare é imutável e alastra em todos os pressupostos: mamar ou não mamar, eis a questão!...
Que pretendo eu equacionar com este infantil e adulto enunciado? Tão-só, chamem lá ao fascismo prática mortal e à democracia balsamo espiritual, afirmar sem hipótese alguma de desmentido que, apesar de todos os progressos e melhorias, a situação de carência da maioria dos portugueses piorou. A carocinha transformou-se em corachão, os pobres são cada vez mais pobres, emparedados nas cidades e seus arredores, e os ricos são cada vez mais ricos, fruindo deliciados os verdes prados, onde podem, se quiserem, cultivar uma couvitas e criar um porquinho..
O Salazar está safo e mais do que safo. Livrou-se oportunamente, por alta decisão da benquista natureza, de uma cambada que não há meio de bem saber repartir os ossos entre si. Há quem tenha o convencimento científico de que seria uma tragédia libertar por completo o consumo da carne, da chicha com apaladado nervo e sem osso duro de roer...
Agora, a dona de casa, sempre que aspira a cozinha, encontra defronte à boca do tubo do aspirador o carochão, o qual, douradinho a todo o dorso, é num ápice apanhado pela gigantesca mulher, não vá o gigantesco marido ver, matutar e descobrir a ponta da meada à estória do progresso alante.
Quem é pois que tem (ou finge ter) medo do honestíssimo Salazar? Haverá alguma razão para esse temor? Há, há sim senhor: então não é uma irreparável chatice perder-se de um momento para o outro um opíparo biberão dourado, sempre quentinho, pronto a usar e é só mamar? Depois, nem todos têm o condão de segurar a consciência impassivelmente. De resto - e os Leitores por favor não riam - eu sou muito mais perigoso do que o Salazar. No entanto, parece que estou a brincar, pois parece?...
Continue-se pois a atacar estupidamente de olhos bem abertos o fantasma de quem em sua existência, afrontando uma época convulsionada pela guerra na Europa, foi rigorosamente isento e deixe-se passar de olhos amplamente absortos a ladroagem que não cessa de mexer a caneta a assinar cheques-boomerang. Seria um enormíssimo e imperdoável crime meter tipos destes a curtir a brasa solar no Tarrafal. Os portugueses, quiçá, estão a dar-lhes "todo o tempo do mundo" para tomarem juízo...
António Torre da Guia |