Meus avós, António e Maria, que viviam numa casa do cruzamento de Mindelo, foram progenitores de 13 filhos, 4 raparigas e 9 rapazes. Pelos meus 5/6 anos de idade, o meu avô, o José e o Manuel já tinham falecido. No Brasil viviam o Joaquim e o Albino, na França o António e o Narcizo, em Mindelo a Balbina, o Marcelino, o Guilherme e o Valentim, em Lisboa a Sofia, na Senhora da Hora a Laurinda e a Maria, minha mãe, vivia no Porto.
Os que viviam no Brasil e na França só muito espaçadamente pelo Verão vinham visitar e passar um ou dois meses com a família. Os outros, pelo Natal e pela Páscoa estavam sempre presentes, com esposas, maridos e filhos, ao redor da mãe e na casa onde todos nasceram. Lembro-me perfeitamente de ver minha avó atarefada à volta da masseira e do forno a confeccionar o bolo de Páscoa. Dizia-me ela então que estava a fazer um bolinho especial só para mim.
No Domingo de festa, logo que se ouvia a sineta do Compasso a anunciar-lhe a chegada, toda a gente se reunia na âmpla sala para beijar a cruz. Avó, tias, tios e primos, éramos ao todo cerca de cinquenta pessoas. Finda a curta cerimónia, tomava-se lugar numa comprida mesa ao ar livre, posta sob uma verdejante ramada americana, onde fruíamos um lauto e alegre almoço.
Não sei porque não posso deter as lágrimas neste momento e sequer dominar a comoção que me toma, algo de dor e de prazer, algo de nada e de tudo, sentimento irreparável em busca da conformação inconsolável com que tenho de afrontar os meus derradeiros dias. Por mais que me esforce em alegrar-me, perante o vazio deixado pelos meus entes queridos, a tristeza, no Natal ou na Páscoa, só se me alivia quando logro distrair-me com outros motivos. Todos os de mais interesses caem por terra em face da separação familiar aberta como se fosse um abismo no meu raciocínio.
Há quem diga que tudo tem consolo. Há quem afirme que tudo pode esquecer-se com preseverança. Há quem se atreva até a exigir de outrem a diluíção de sentimentos e pendores íntimos. Há quem sobretudo, quanto a mim, não sinta o que diz, só fale por falar e até inclusive sequer reconheça que se ignora e muito mal se avalia a si mesmo.
O estendal de incompreensão, entre aqueles que se assumem até às raias do egoísmo, é babélico, remonta ao fundo dos milénios e surge impante na hodiernidade. Este efeito, para quem bem conhece as causas sociológicas que lhe dão permanente alimento, surpreende e faz quedar o almejo da razoabilidade num beco sem saída. As religiões soçobram a par das políticas e não há senão a opção de entregar aos ciclos da guerra e da paz a solução dos diferendos entre as gentes É entretanto o tempo, o melhor e maior dos mestres silenciosos, a sábia batuta regente do apaziguamento.
Assim, porque escrevo para este Fórum, ao evocar a família que já não tenho, praza que todos, aquém ou além das miudezas da vida em que presumam grandezas, nunca deixem de encimar a célula-mor da humanidade, a Família legítima que medeia entre avós e netos. É só aí que está e reside o oásis da existência. De resto - acreditem - as crianças e os velhos ficam sem defesa, à deriva entre os escombros onde as lágrimas secam e se extinguem, autómatos, malogros humanos em face da supremacia exuberante da inteligência.
Boa e Feliz Páscoa.
António Torre da Guia
Porto - Portugal
Som = Adelaide Ferreira em «Dava Tudo» |