Em meados de Fevereiro de 1979, com uma carta-convocatória do JN, apresentei-me num prédio da rua Barão de Nova Sintra para fazer um exame de admissão a jornalista. Entre cerca de meia-centena de candidatas e de candidatos seleccionados pelo afecto a escrever, fui simpaticamente conduzido a uma mesinha-escolar por um discreto senhor de óculos e baixote que me explicou em pormenor o que havia para satisfazer num dossier que já estava sobre a mesma.
Mais ou menos decorrida meia-hora de prova, ia eu embrenhado numas curtas traduções e retroversões em inglês e francês, o senhor de óculos e baixote, dirigindo-se à sala, anunciou que haveria uma especial consideração para quem fizesse com algum mérito um suscinto texto sobre a Constituíção Portuguesa que em breve iria ser promulgada. A solicitação pareceu-me entusiasmada e advinda de empenhado almejo. Só muito mais tarde vim a saber que se tratava de Manuel Ramos, na altura director do Jornal de Notícias.
Três meses adiante, estava já eu impelido noutro destino em França, recebi uma carta de minha mãe com um envelope do JN anexo. Era uma convocação, assinada por Manuel Ramos, marcando dia e hora para uma entrevista em redor da prova que eu havia prestado. Ao conferir a situação, verifiquei que estava a pouco mais de 48 horas da data estabelecida. Palavra que estive tentado em deslocar-me propositadamente de Paris ao Porto, mas, em face de compromissos inadiáveis que então assumia, constatei que me era impossível satisfazer o impulso íntimo que senti.
Fiz mal em não ter acorrido à chamada? Seria eu agora um garboso jornalista JN reformado? Não sei. Na altura a vida estava a correr bastante mal entre os portugueses e as coisas em França predispunham-se-me de feição. Por consequência, como quem não arrisca não petisca, quem não se aventura não apura.
É evidente que este episódio ficou-me no ego e, à distância, fui seguindo com algum interesse o que a público surgia sobre Manuel Ramos. Senti aplausos íntimos quando foi nomeado Vice-Governador Civil do Porto. De resto, discretíssimo como deveras era, do tipo muito mais formiga que sabe ouvir a cigarra, Manuel Ramos não foi pessoa de feitio protagonista exuberante. Companheiro de António Macedo e dos irmãos Cal Brandão, com Vital Moreira, entre outros reputados constitucionalistas, foi redactor da Lei Fundamental que resultou do 25 de Abril. Sem alardes, a sua acção nos domínios cívico e político estendeu-se pelas mais diversas instituições e organismos portuenses, o que lhe valeu o reconhecimento oficial com a Medalha de Honra da Cidade.
Nos escassos pareceres que sobre Manuel Ramos tenho lido, não estou de acordo com os arrivantes termos políticos que se lhe aplicam e que, quanto a mim, intencionando elogiá-lo, o apoucam, descaracterizam e lhe dão tom conspirativo. Manuel Ramos foi sobretudo um jornalista "comm il faut" durante quase meio século, experimentado e afinado nos diversos degraus ascendentes da lide que sensata e sapientemente desenvolveu, como revisor, repórter da cidade, redactor, chefe de redacção e enfim director daquele que é sem lisonjeado favor o maior jornal português de todos os tempos, percurso que desde logo lhe confere a qualificação de homem vertical e cidadão íntegro sem mais delongas. Foi sobretudo um Jornalista do Porto e constituiu-se com seu devotadíssimo saber num exemplar baluarte humano do edifício que se ergue sobre a Trindade, arauto-mor das invictas-tradições entre o épico debate das religiões e das políticas, nunca alheio ao interlace das virtudes e dos defeitos da sociedade com quem se identificou e através da qual naturalmente se foi edificando.
António Torre da Guia
Som = Rui Veloso em "Porto Sentido" |