Dezembro de 1970. Já havia passado dois anos da assinatura do crudelíssimo AI-5 pelo não menos cruel Garrastazu Médice. Entre nós, os jovens, havia uma pilhéria: “a burrice do Costa e Silva não se media, mas a do Garrastazu mede-se”. Pessoas eram presas em massa. A polícia fascista não se importava mais em torturar cidadãos em plena rua. Era uma diversão para eles. O medo estava estampado no rosto das pessoas por toda São Paulo. Gritos ouvíamos quando passávamos nas calçadas do DOPS. Lembro-me do dia em que “eles” – em quatro viaturas com aproximadamente doze a quinze soldados e uma “autoridade” civil – entraram num bar na rua da Mooca. Era uma tarde de sexta-feira, dia 19 de dezembro de 1970. Empunhando metralhadoras mandaram que colocássemos as mãos na parede do lado de fora do bar. Éramos umas quinze pessoas. Fazia muito calor e algumas delas estavam sem camisas e por causa disso apanharam bastante. Os cassetetes de madeira “debulhavam o milho” no dizer atual. Fazia um ruído semelhante aos tambores quando atingiam as costas dos trabalhadores. Carteiras de trabalho sem registro davam prisão imediata. Ordens e gritos pedindo documentos soavam por todos os lados bem como os gritos de piedade dos trabalhadores que apanhavam.
Quando chegou minha vez ficaram curiosos porque estava bem vestido. Naquela tarde comemorava meu último dia de solteiro juntamente com cinco amigos da empresa aonde trabalhava. Estava com passagem de ônibus comprada para Jaú, onde no dia seguinte celebraria meu casamento na matriz do Patrocínio. Um dos policiais me perguntou:
-Tem passagem?
Respondi-lhe que sim e que ela estava dentro da carteira na mão dele. O brutamontes achou ser brincadeira, ou uma notória oferta de propina e zangou-se. Ao empunhar o cassetete minha carteira caiu. O dinheiro espalhou-se pelo chão junto com a passagem. Um sujeito com pinta de delegado aproximou-se bem no momento em que minhas costas pareciam ter levado uma marretada quando me abaixei para pegar meus pertences. Logo em seguida o mesmo policial – um abrutalhado – acertou um murro no meu rosto. O sangue desceu pelo pescoço e uma mancha carmesim destacou-se em minha camisa branca de mangas longas. O tal sujeito à paisana disse ao policial que me batera:
-Deixe o rapaz!
Livre da surra que iria levar peguei meu dinheiro, minha passagem e a carteira. O sujeito de terno pediu-me a passagem.
-Você mora em Jaú? – Indagou-me ao examinar a papeleta.
-Não – respondi enquanto limpava o sangue com um lenço – vou até lá para o meu casamento amanhã às três horas da tarde. Estou morando aqui em São Paulo, na Vila Zelina.
-Este sujeito vai se enforcar! Liberem ele e os amigos dele! – afirmou o suposto delegado, enquanto alguns policiais gargalharam.
Quatro pessoas, entretanto foram levadas não se sabe pra onde. Uma delas estava com a perna direita quebrada em razão das porradas de enormes cassetetes de madeira e ainda assim continuava apanhando dos policiais. Choros e gritos de “pelo amor de Deus!” continuavam. Voltei para o bar com meus amigos. Mas, o que era uma comemoração acabou se transformando numa espécie de velório tal era o silêncio. Claro que o bar se esvaziara. Só ficaram dois amigos e eu com minha triste despedida de solteiro semelhante a uma eterna despedida das liberdades civis. Olhei para o estandarte verde-amarelo, o qual, naquele ano da copa do México a gente via em toda parte e tive a sensação de que ele parecia sorrir de nosso destino trágico, cruel e sem nenhuma luz no final daquele imenso túnel. Senti raiva, medo e vergonha de ser brasileiro. Porém, o que me salvou mesmo foi o casamento no dia seguinte, apesar das dores nas costas e um dente que me deu muito trabalho. Dias antes, através de contatos, estava prestes a entrar nos subterrâneos da luta armada. Entre uma vida difícil de guerrilha urbana e o casamento, escolhi o melhor para mim e minha família. Hoje, todos nós temos direito de manifestarmos nossas opiniões. Contudo, se isto acontece é porque muitos e muitos jovens sofreram e morreram no passado, lutando contra a truculência de uma odiosa ditadura militar. É uma gigantesca ingratidão de todos nós não honrarmos aqueles moços e moças, que padeceram e morreram sob terríveis torturas no propósito de sermos hoje cidadãos livres. Não há amor maior do que o gesto daqueles inesquecíveis jovens.
(esta matéria será publicada no jornal "Comércio do Jahu" de terça-feira dia 5 de junho)