(Este artigo foi originalmente publicado no Observatório da Imprensa)
A notícia, amplamente divulgada pela imprensa nos primeiros dias de outubro, parecia mais uma das tais piadas prontas, sob medida para humoristas e chargistas. Mas a publicação no diário oficial do Distrito Federal confirmou. Não é brincadeira. É um decreto do governador do DF que demite o gerúndio. O verbo no gerúndio não será aceito internamente, especialmente se usado para desculpar a ineficiência. Tudo bem, o gerúndio não costuma ser bem-vindo nos meios onde se cultivam as boas técnicas de comunicação. Quando redator, tive alguns mestres e superiores que primavam pelo bom estilo e relutavam em aceitar um gerúndio no texto. Um dos colegas até evitava chamar pelo nome o coitado do Armando, competente e brilhante, mas que trazia no peito o crachá com o "ndo" que os superiores questionavam... Realmente, o gerúndio tem-se prestado mais a ambigüidades, dissimulações e enrolações do que à concisão, clareza e precisão. Também se presta a modismos e abusos de mau gosto, sobretudo entre telefonistas e atendentes, com seus inesgotáveis "vou estar anotando o recado... vou estar ligando para a recepção... vou estar falando com o segurança... " e outras péssimas manias do gênero. Mas proibi-lo por decreto, chamando para si atribuições típicas das instituições a quem cabe aperfeiçoar a língua? Ainda que as tivesse, deveria combater o gerundismo, não o gerúndio. E ainda que quisesse inovar a administração pública com a demissão do gerundismo, mais inovaria se demitisse o funcionário improdutivo. Nada contra o atual governador do DF, que, aliás, vem mostrando boas intenções e propostas muito bem-vindas desde que assumiu o Governo. Na verdade, poderá realizar uma revolução saudável no DF e dar um bom exemplo a outros estados, se efetivamente fizer as mudanças com as quais vem acenando. Particularmente no caso do gerúndio, o governador mostra uma preocupação com a eficiência, a transparência nas relações internas e manda um recado a funcionários acostumados a esconder a ineficiência sob a imprecisão e a burocracia da linguagem. Mas será que uma mudança na forma de empregar o verbo ou de construir uma frase vai mudar o resultado do serviço público ou introduzir novo indicador de desempenho? Não creio que eficiência em administração pública se meça pelo estilo da linguagem. Agora, publicar um decreto no Diário Oficial? Como artifício para causar impacto e fazer um pouco de marketing, a medida até faz sentido. Mas vista como ato administrativo de Governo, pode ser um exagero tão ou mais descabido do que o próprio gerundismo. É o tipo da decisão que pode servir mais ao repertório de piadas do que à melhoria do serviço público. Outra coisa: durante as próximas entrevistas com o governador, como se comportarão os repórteres? Policiar o gerúndio ou dele abusar, a título de chiste? Enfim, essa história vai render, com certeza. Mas não traz em si nenhuma conseqüência que mereça maiores preocupações, exceto por uma analogia distante, já que a medida em questão lembra a tal síndrome do extremo oposto. Talvez seja esse o aspecto que realmente mereça análise. Infelizmente, a síndrome do extremo oposto costuma ser um dos traços presentes no autoritarismo, no totalitarismo, na intolerância levada ao extremo e, em alguns casos, um indício de fraqueza e impotência. No passado, teria existido um poderoso que decretou a morte de todas os recém-nascidos para eliminar especificamente uma criança, anunciada pelos profetas e temida pelos palácios. Tempos depois, para combater os supostos pecados dos indivíduos, pecavam as instituições, com suas fogueiras humanas e outros extremismos. Por aqui, até há alguns anos, para combater a inflação se adotavam medidas econômicas que paralisavam a estrutura produtiva. Agora, sob o argumento de fazer justiça a um grupo racial tido como discriminado no acesso ao ensino, instala-se por decreto a discriminação contra as demais raças (como é o caso da cota para negros na Universidade). Óbvio que o decreto do gerúndio é outra história. Mas parece fruto de um padrão de resposta que fere a sensatez e esbarra em nossa aversão pelas reações extremas.