Cidade sabia que a menina fora servida a marginais
‘Se delegada pôs e juíza manteve, denunciar pra quem?’
Marlene Bergamo/Folha
Nada diz mais sobre o Estado brasileiro do que o estado a que chegou o Estado brasileiro. Encontra-se afundado num pântano de normalidade. E não se dá conta da falta que lhe faz o anormal.
Em 1988, alvorecer dos “novos” tempos, Ulysses Guimarães batizou a atual Constituição de ``cidadã``. Poderia tê-la chamado onírica. Constituição dos sonhos. Ou, por outra, Constituição dos pesadelos.
``...O direito à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária...`` Estamos perpassando o Brasil do artigo 227 da Constituição, onde crianças e adolescentes estão ``a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência e opressão``.
Corta para o Brasil extra-constitucional de Abaetetuba, cidade paraense assentada a 130 km de Belém. De uma das ruas, avista-se a carceragem, um galpão de 80 metros quadrados. Ali, a menina L., 15 anos, atarracada em seus menos de 1,40 m, corpo mal recoberto pela sainha curta e pela blusinha que prenunciava os seios adolescentes, foi jogada num calabouço junto com três dezenas de homens. O inferno de L. durou cerca de 20 dias.
Um detalhe confere ao inaceitável um quê de inacreditável. A menina foi aviltada nas dependências de um Estado gerido por uma mulher, Ana Júlia Carepa. Quem a mandou para a cela foi outra mulher, a delegada Flávia Verônica Pereira. A decisão recebeu o endosso de uma terceira mulher, a juíza Clarice Maria de Andrade.
As repórteres Laura Capriglione e Marlene Bergamo estiveram em Abaetetuba. Descobriram que o inaceitável, depois de autorizado pelo inacreditável, ganhou ares de intolerável. Ninguém na cidade ignorava que os marmanjos delinqüentes usavam e abusavam da menina no interior da cadeia.
"Era um show isso daqui. Todo mundo sabia que a menina estava lá no meio daqueles homens todos, mas ninguém falava nada", relatou uma mulher às repórteres. "Antes de comer, os presos se serviam dela", lembrou outra moradora. “Ela gritava e pedia comida para quem passava, chamava a atenção para si, e, como ela era conhecida por aqui, não dava para ignorar", aditou uma terceira habitante de Abaetetuba.
E por que ninguém fez nada? A tia de um dos presos que dividiram a cela com L. responde: "Medo de morrer. Aqui todo mundo tem medo. Se a delegada põe uma menina na cela com os homens, e a juíza mantém ela lá, quem sou eu pra denunciar. Aliás, denunciar para quem?"
Como se vê, o que envenena o Brasil é a incômoda normalidade que impregna o ar. Algo de profundamente anormal precisa acontecer para que o país seja salvo. Até que a anormalidade nos alcance, estamos todos condenados a viver entre o Brasil onírico da Constituição de 88 e o Brasil cruel que assassinou a alma da menina L.. Há entre os dois brasis um Estado omisso e uma sociedade entorpecida. Ambos são inocentes culpados. Ou, se preferir, culpados inocentes.
PS.: Por uma dessas ironias que transformam os meios promocionais em algo ferramenta de eficácia demoníaca, o boletim “Em Questão”, editado pela presidência da República, alardeia que, neste domingo (25), festeja-se o Dia Internacional da Não-Violência contra as Mulheres.