A crônica é a modalidade escrita que, pela própria origem da palavra, do grego Krónos, acompanha a sucessão dos fatos no tempo e se conforma às exigências do conteúdo e da função a que se presta em uma dada situação. Como um gênero literário híbrido, ela transita entre a literatura e o jornalismo, ora acompanhando os fatos no tempo presente, ora resgatando-os do passado pelas reminiscências do escritor.
No início da era cristã, a crônica se limitava aos anais, registro dos eventos, sem caráter interpretativo. Na Idade Média, adquiriu o cunho de documento, mas, a partir do Renascimento, os assuntos nela tratados passaram da mera descrição, ou da narração objetiva, para a reflexão que o cronista, com sua análise e julgamento, faz sobre o fato, o que fez também com que a crônica ganhasse foros de história.
A significação moderna do termo surgiu no século XIX e deu o estatuto de literatura aos textos que “só longinqüamente se vinculam à primitiva crônica”. Nas palavras de crítico Massaud Moisés (1998, p.131), esses textos “ostentam, agora, estrita personalidade literária”. O autor classifica, como sendo de feição moderna, a crônica híbrida publicada em jornal. Para ele, essa modalidade é sujeita ao transitório e à leveza do jornalismo, mas sobrevive quando “logra desentranhar o perene de sucessão anódina de acontecimentos diários”.
A efemeridade própria às matérias dos jornais tende a fazer da crônica jornalística um gênero também efêmero, devido à relação imediata entre o evento narrado e o tempo da escrita. No entanto, sendo o gênero cronístico livre das normas dos gêneros jornalísticos de opinião, o cronista dá ao evento narrado o tratamento que lhe convém ao espírito, comunicando sem a pretensão de fazê-lo, documentando sem a obrigatoriedade do método, construindo juízo de valor sem a “intenção” de doutrinar.
Davi Arrigucci (1987, p.64), declara que “a crônica é a forma complexa e única de uma relação do eu com o mundo (...) uma arte narrativa, cotidiana e simples, enroscada em torno do fato fugaz, mas liberta no ar, para dizer a poesia do perecível”. E nessa possibilidade de perecimento, a crônica se aproxima do gênero jornalístico.
Todavia, há que observar que as narrativas que o sujeito faz das experiências do cotidiano, embora as elabore da forma mais conveniente a si próprio, são representações da memória social. E nelas não se pode especificar o verdadeiro ou o falso senão através do que é dado pelo sujeito, uma vez que estando o fato situado no passado não há como reconstruí-lo objetivamente.
O documento, configurado nesse tipo de narrativa, contém as implicações e expressões de uma determinada época e local, podendo configurar-se em monumento, que é uma herança social do passado por representar um testemunho da história.
O historiador francês Jacques Le Goff defende o documento como um monumento que, por expressar muito mais do que seu conteúdo superficial, é preservado com a intenção de fazer chegar às gerações futuras parte a memória histórica, ainda que esta possa estar “podada” pelos agentes do poder, que determinam o que deve ou não ser preservado, de qual forma e com quais recursos essa memória deve permanecer para a posteridade.
Dentre os monumentos de preservação do passado e marcos identitários, citam-se os documentos escritos, tidos como lugares de memória que mantêm viva a idéia de pertencimento a determinado lugar e a uma dada cultura pelo indivíduo, como defende Nestor Canclini (1997)
A crônica dos jornais impressos, mesmo apresentando uma visão recortada da realidade presente, é um documento de valor histórico para a sociedade. A memória jornalística, ainda fazendo uso das idéias de Le Goff, surge como “a entrada em cena da opinião pública ... que constrói também a sua própria história” (Le Goff, 1994, p.461). Assim é que as crônicas jornalísticas configuram-se como um lugar de memória diretamente relacionada com o meio social onde o indivíduo se encontra.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARRIGUCI JR., Davi, "Fragmentos sobre a crônica", Enigma e comentário. Ensaios sobre literatura e experiência, São Paulo, Companhia das Letras, 1987, pp. 51-66.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. 3. ed. São Paulo, Edusp, 2000
LE GOFF, Jacques. História e Memória (Trad. Bernardo Leitão). 5 ed. Campinas, São Paulo, Editora da UNICAMP, 2003.
LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. História: novos problemas (Trad. De Theo Santiago) 2. ed. Rio De Janeiro, Francisco Alves,1979.