PRESENÇA DE VOZES FEMININAS E CAMINHO ECUMÊNICO EM CASTELO INTERIOR E MORADAS, DE HELOÍSA MARANHÃO
Por: Acácio Luiz Santos
Em 1974, por iniciativa das Edições Porta de Livraria, saía a 1a. edição de Castelo interior e moradas, de Heloísa Maranhão, contendo os três primeiros Livros. Vindo a público numa forma que — sabemos agora — não era ainda definitiva, já se podia entretanto perceber com nitidez suas principais forças motrizes. Conforme bem observou Antonio Olinto no prefácio, o poema apontava "para uma renovação que é também respeito ao passado" [1]. O mesmo crítico observara antes, por outro lado, o caráter ecumênico da feitura do poema. Com efeito, embora ainda não seja mencionado o nome da mística espanhola Tereza d`Ávila, sua presença já é manifesta a partir do próprio título do poema, e na interiorização dos vários "eus" líricos, que aponta para um clima de intimidade na relação com Deus e é reforçado diretamente em vários versos, por exemplo: "os sete degraus/ do re mi fa sol la si/ os graus da oração/ mas que é das moradas?" [2]
Será entretanto pela publicação do texto definitivo em 1978, pelas Edições Quíron, em convênio com o INL, com sete "moradas", que Castelo interior e moradas aprofunda pela intertextualidade, e como um todo orgânico, o que ainda era tão somente entrevisto na edição anterior, a começar, por Teresa d`Ávila. Em seu livro Castelo interior, conta-nos Frei Patrício Sciadini, O. C. D., "estando Teresa em oração, mostrou-lhe Deus um grande globo que tinha a forma de um castelo, dividido em sete moradas. Na sétima morada, situada no centro do castelo, mora o rei, que é Deus. A alma, atravessando todas as moradas, tenta chegar ao centro." [3] O texto de Heloísa Maranhão passa a apresentar sete Livros, agora intitulados "moradas", e ordenados em espanhol: moradas "primeras", "segundas", "terceras", e assim por diante. Os livros passam a ser precedidos de epígrafes "teresinas", inclusive a famosa "nada te turbe, nada te espante, todo se pasa". Surge um "eu" lírico identificado como Teresa. Finalmente, surge a dedicatória do poema a Teresa d`Ávila. Assim, se o texto se reconhece inicialmente como diálogo intertextual com um dos pilares da mística religiosa, por outro lado, será a partir de todo esse caminho ecumênico de auto-reconhecimento que revelar-se-ão, em nosso ver, algumas das principais características de seu universo poético, que iremos a seguir comentar.
Para tratarmos dessas características é mister, contudo, indagarmo-nos o seguinte: o que fundamenta este caminho e por que ele é de natureza ecumênica? Uma primeira leitura do livro, mesmo que rápida, dá-nos conta de um sem-número de "eus" líricos emotiva e referencialmente apresentados, em sua quase totalidade, no gênero feminino. O substrato lingüístico do poema, por seu turno, é amplo, percorrendo os diversos registros de uma lingua no tempo (português arcaico e moderno) e atingindo mesmo outro sistema lingüístico (o espanhol). O processo de intertextualidade lida com as cantigas de amigo medievais galaico-portuguesas e outras fontes da mesma época, remete-nos ao período clássico e seu resgate da mitologia greco-romana, chega a Teresa d`Ávila e converge finalmente para pesquisas formais próprias da poética novecentista, tendo como base a semiótica e a metalinguagem, aparecendo finalmente um próprio "eu" lírico identificado como Eloísa.
A presença maciça de vozes femininas, por seu lado, fornece-nos alguns elementos importantes para esclarecer nossa primeira indagação, referente aos fundamentos do caminho poético seguido pela escritora. Em outro trabalho, afirmamos que "identificar os paradigmas veiculados pela sociedade contemporânea é simultaneamente identificar os espaços onde se articulam as principais questões do universo romanesco contemporâneo, e as formas de realização deste mesmo universo." [4] Se o mesmo for válido em relação ao universo lírico, uma questão a ser examinada é a das relações homem/ mulher e o papel desta na sociedade ocidental contemporânea.
Com efeito, a razão lógico-discursiva do iluminismo, imposta e mantida hodiernamente a serviço de uma sociedade tecnocrata, outorgou-se a si própria ser intermediadora das relações homem/ mulher: o ser humano só se reconhece coniugans em função de seu modus operandi, que deverá estar concorde com os da razão, sob pena de não aceitação social. Sirva-nos de exemplo A mão e a luva, de Machado de Assis, que nos apresenta um casal como duas ambições que "ajustavam-se ambas, como se aquela luva tivesse sido feita para aquela mão." [5] Mesmo os movimentos feministas deste século limitaram-se, porém, a reivindicar maior participação ativa segundo os pressupostos dessa razão. Um novo modus operandi para a mulher passou a ser concebido e valorizado, porém a integração do Homem e da Mulher permaneceu mediada. A insatisfação conjugal, problemática mascarada ou mal-interpretada nos dias de hoje, permanece como questão primordial de nossa vivência. "Compartilhar o jugo" ganha aqui significado angustiante, deveras…
Por seu turno, a linguagem sob os pressupostos da razão lógico-discursiva não oferece elementos para uma solução. Mas se o iluminismo não mostra capaz de resolver um impasse criado pela aceitação de seus próprios termos é porque, em seu percurso, homem e mulher perderam algo de primordial; perdeu-se um diálogo i-/mediado em prol de uma relação inter-/mediada por interesses comuns. Possibilidade que se abre, por sua vez, é a de re-/conhecer o percurso até então, até onde a relação homem/ mulher fundia-se à natureza e Deus. Porém o sujeito que, indagando o presente, lança-se ao passado para renovar-se criticamente perante a tradição herdada, necessita valer-se constantemente de um processo de identificação com o outro, incorporar os processos particulares deste à sua própria vivência. Por outro lado, sendo a aventura da idade moderna um projeto eminentemente masculino, reconhecer a fala feminina como o testemunho mesmo do outro equivale simultaneamente a retomá-la sob a perspectiva de um diálogo dinâmico que perpassa cronologicamente toda a idade moderna e contemporânea, quando a idealização do amor à distância (própria, por sua vez, das cantigas de amor medievais — voz masculina) torna-se predominante e afasta seu outro dialético, o da realização cotidiana incrustrada na percepção anímica (própria, entretanto, das cantigas de amigo medievais — voz feminina).
A natureza ecumênica do caminho não somente fornece-lhe unidade como lhe dá a garantia mesma de sentido. O discurso místico é dinâmico enquanto se reconhece como mudança de rumos. Estes rumos, que visam a Deus, estarão, por seu turno, de acordo com a própria natureza. O universo lírico recupera assim, pelo re-/conhecimento poético, a essencialidade da relação homem/ mulher, nomeando o outro do percurso no sentido do diálogo e não da polêmica. No dizer de Frei Patrício Sciadini, "o homem de hoje busca a Deus. Ele percorre, porém, caminhos que levam a diálogos vazios e inúteis. Errar caminho é perigoso, mas é sempre menos perigoso que ficar parado na vida." [6]
Observado isso, tentaremos verificar em que medida o livro de Heloísa Maranhão, como um todo orgânico, aponta para este caminho através das formas de re-/conhecimento poético por ele privilegiadas. O Livro Um, propriamente intitulado Cantigas, abre assim:
Cantigas d`antanho
aqueste sofrer
verdadeiro falso
m(EU)s feridos talhos
que vou amostrar
son perdidas trovas
r
e
som re sou re
palavras perdudas
cobras de pastor
em & 361;u tromentoso
sofrido verg(EU)
(p.3) [7]
O primeiro verso já nos anuncia a fonte onde a escritora vai buscar inspiração e erigir sua forma poética: as cantigas do passado. A seguir, anuncia-se o tema: o sofrer, a dor, re-/tomado em seu percurso pelas "perdidas trovas" da "pastor" em um "tromentoso, sofrido vergeu". Nesta abertura podemos observar ainda a ênfase dada à união íntima entre o "eu" lírico e o tema que o move ("m(EU)s feridos talhos") e o espaço que ele percorre ("verg(EU)"), espaço este que ganha em importância enquanto inclusão do "Eu" no fluxo poético de natureza. Será, pois, deste jardim poético, como vemos logo em seguida, que a escritora retira sua própria matéria poética:
& 361;u escrito verso
tecido com rosas
(p.3)
Os versos utilizados pela escritora neste Livro, por sua vez, serão predominante redondilhos, menores e maiores, acentuando simultaneamente seu vínculo com as cantigas de amigo medievais e o caráter popular e, portanto, comunicativo de seu canto. Definidos entretanto tema, forma, registro e espaço, o "eu" lírico lança-se à sua busca abrindo-se a outras vozes, a outros cantos, sem abdicar, contudo, de seu vínculo espiritual:
oí eu & 361;a pastor cantar
em qualquer parte questeys
in nomine patris filii
et spiritum sancti
clamavi ad te Domino
(p.4)
Após a invocação, o "eu", com seu "lindo rostro/ ante aquele espelho d`aigua/ aa beyra do rryo", desdobrar-se-á em imagens de si até então insuspeitadas. Pela palavra poética surgirão outros "eus" combinando-se dialogando entre si, estranhando-se, até o ponto em que o "Eu" lírico será compreendido não por sua linearidade, mas por sua multiplicidade. Multiplicidade esta que não significa aleatoridade, mas uma unidade rigorosamente construída, observada em sua complexidade, como notamos nos versos que servem de motivo ao Livro, e que se enriquecem a cada volta:
aa beyra do rryo caminho
deus onde está ele?
eu miro no espelho d`aigua
o meu lindo rostro
(p.11)
A cada mirada re-/aparecem "eus" líricos femininos identificados igualmente com a busca do amor. Conforme bem conta-nos o prefaciador anônimo da edição definitiva, "mulheres que, segundo a Tradição, morreram de amor ou foram imoladas por causa dele." [8] Porém, sem entrega não há amor. Para re-/cobrar essas mulheres, a instância lírica com-/partilha do mais próprio de si:
non quero mais sser ssandeu
e já desd`aguora
que leixo todo o meu eu
(p.6)
Mesmo essa entrega, por seu turno, não é fácil sem compreensão. As próprias definições geram indefinições. Os diversos "eus", Violante, Orraca, Isabel etc. substituem-se em rápidos flagrantes. A dificuldade do percurso conduz o "eu" que retoma as cantigas de "antanho" à dúvida de sua própria identificação com as imagens:
pod-aqueste sser
aflita pregunto
confusa com o que vejo
qual das duas eu sõo?
entom pardeos qual das duas?
(p.10)
E à insegurança de refazer continuamente, neste processo, o ciclo identificação/ estranhamento:
vejo mem grande periguo
estorea muy cruel
nem posso viver comyguo
nem posso fogir
deus onde está ele?
nem posso fogir de mim?
(p.14)
Contudo, ao amor, compreendido em seu dinamismo, opõe-se a morte, no sentido de estagnação, embate último dos "eus" em seu percurso, gerador primário de dúvida e insegurança:
poys deus quer que eu morra?
(p.21)
Por outro lado, a própria dificuldade do percurso, da parte do "eu" primário, conduz à percepção de seu outro dialético, e aonde este se faz presente:
aguora jam fugyrya
de mym se de mym pudesse
eu sey que traguo comiguo
de mym hum imiguo
(p.22)
A persistência na busca ("pregunta sem ira/ deus onde está ele?") e a confiança no amor/ ser-amado ("o mar é tão forte/ mas Omar é mais"), motivações profundas para o auto-reconhecimento do "Eu", conduzem, de sua vez, a uma aceitação serena de si mesma pelo "eu" lírico primário:
digo que posso viver
que posso viver comigo
e non val fogir de mym
(p.30)
Aceitação de si conduz à aceitação do outro dialético e à apropriação deste pelo discurso. Esse outro aparece como a própria moura torta do folclore transmutada poeticamente pela escritora:
eu sõo moura vejo
lá no espelho d`aigua
meu retrato vejo
veejo doos retratos
& 361;u de bela moça
pela cor de leite
& 361;u de feiticeira
cor da negra noite
quando meu amigo
vier me buscar
qual vai escolher?
infinco alfinete
na bela ela avoa
virou meiga rola
chegou meu amigo
que logo preguntou
eras branca per que stás
estás tã escura?
eu num respondo docíssimo
SOL MI o sol me queimou
amigo se demorou
(p.33)
Ainda no trecho acima, observamos o rico jogo poético de multiplicação/embate das imagens formadas no "espelho d`aigua" e a presença no Livro Um, e pela primeira vez na obra, das notas musicais que se interpenetram na própria feitura dos versos, apontando para a unidade canto/poesia, procedimento que perpassará todo o resto do texto. A apropriação do outro dialético leva, por seu turno, à superação deste:
ahora chegou a hora?
entom eu la moura
amarrada vou morrer?
atadas nos rabos
valha-me Boelzebuth
de dous burros bravos
e lascada pelo meio?
(p.34)
A dissolução das imagens e da auto-imagem ("mas que é de meu rostro?/ eu nem tenho rostro…") na natureza conduz ao despertar do sonho e ao reencontro com o amado em vigília. Um sonho sonhado no jardim. A superação de uma etapa conduz entretanto irrevogavelmente a outra. A novo canto:
canto de Violante
LA tem um belo fim
ahora polo rryo vou
SI canto outro canto
que começa assy
DO RE MI FA SOL LA SI
LA SI
SOL
DO R
DO R
DO R
(p.39)
Observamos novamente aqui a unidade canto/poesia que, a partir do uso gráfico dos significantes, remete-nos ao tema inicial, a DOR, re-/transmudada poeticamente. Neste primeiro Livro já aparece a convivência dialética de recursos poéticos medievais e novecentistas contemporâneos, instaurando uma série de diálogos: antigo/moderno, eu/outro, feminino/masculino, canto/poesia. Nestes, e em função destes, forma-se o poético.
No Livro Dois, intitulado Arco-íris, o "eu" lírico identificado como Eloisa desdobra seus significantes tal como prisma, gerando novos significados ("EUS" possíveis): Lea, Elsa, Sila etc. Aprofundando as conquistas técnicas do Livro Um, por seu turno, a escritora aprofunda sua própria busca individual, confrontando desejo e desespero:
deus onde está ele?
ele o eu? meu eu…
desespero
de
se r
e o
per
dese o
e o
se r
(p.50)
A invocação, em sucessivos flagrantes, de personagens e situações da cultura greco-romana, além de reafirmar os diálogos já instaurados, abre a porta para se penetrar no próprio castelo interior do texto pela subversão da matéria submetida ao poético:
castelo interior
moradas selvagens
fora de seu eixo
já se move a terra
cortadas suspensas
leis da natureza
alma voa pro céu
o corpo erguido do chão
domínio de espírito
derruba a matéria
e forma organismo
segundo aquel`outr`imagem
(p.53)
A aventura dionisíaca da instauração do caos para obtenção do poético jamais legitima este caos, entretanto. A suspensão das "leis da natureza" conduz à percepção de Deus, nunca à Sua negação:
dionisio quem disse
que d(eu)s está morto?
eu canto há risos
m(EU) Cristo desce da cruz
(p.57)
Esta percepção de Deus conduz ao próprio despertar do homem entrevisto no Livro Três, intitulado A rosa. Sempre vinculado à unidade do texto, este é o Livro da aceitação do desafio, com todos os seus riscos. Livro das dialéticas sono/vigília, noite/dia, sempre caminhando para a luz, pelo discernimento das "coisas divisíveis e indivisíveis":
coisas divisíveis
se podem partir
partir em porções
cada qual formando
um todo real
real e distinto
(p.73-4)
O despontar da luz conduz ao "eu" uno porém complexo, consciente de sua unidade e multiplicidade, aberto à busca, à "viagem do sonho", não alienante feito as drogas, mas como garantia desta mesma consciência:
longa foi a noite
o dia desponta há SOL…
alegria lea lia
se consideram por lei
as ordenações do reino
bens indivisíveis
alegria e dor
dois lados da vida
e convencionado
digesto lei boa razão
vontade das partes
SOL ficou fiquei
fiquei uma só
(p.78)
A consciência da formação dessa unidade, por sua vez, perpassa todo o Livro Quatro, A pera, o maior da obra. Definindo-se desde o princípio como "canção do ovo", estrutura-se em três partes, de natureza dinâmica: a primeira trata das gerações em geral e de seu ordenamento pelas linhagens; a segunda trata da representação histórica das linhagens e da significação essencial da incubação; finalmente, a terceira trata do processo da gestação, desde a concepção até o nascimento. O ciclo formado por essas três partes, pois, unifica-se graças ao universo poético. Na primeira parte, "narração de vida", vemos a palavra ser transmudada pelo universo poético assim como o isolamento do indivíduo o é pelo amor:
acha que g(ente)
é ilha cercada
por todos os LA DO s?
s er DO r viver?
há o amor!
(p.85-6)
Novamente a escritora aponta para a dificuldade do caminho, em sua árdua tarefa de resgate:
difícil o RE(verso)
ida e vinda
sulcos
m(EU) campo ara (DO) r
tarefa dura
amor
ser onde houve
ie
tanta DO r
(p.88)
Reafirma-se a dialética dinâmico/estático. amor/dor, vida/morte, movimento universal este que revela a própria graça divina, que o "eu" lírico certifica pelo discurso poético:
SER ti fico
RE vem DO em m(EU)
poder
D
O
o livro
de apontamentos
encontrei
AH! (SOL) SI na LA DO
que
Deo gratias
graças
DO amor
surgiram DO caos
o c(EU) a terra
o mar a noite
que engendrou o sono
o inferno
a morte
a vingança
o destino
FIM
(p.106)
Esta graça, de outro lado, fundamenta a própria esperança do "eu" lírico, esperança esta "sorridente", diferente", que a palavra poética funda e para a qual ela converge. A segunda parte, "livro da genealogia", ao abordar as linhagens, trata do ovo e de seu desdobramento em outros significados, ovo sempre associado à origem da vida. "Aranha tem ovo?", pergunta-se o "eu" lírico. "A aranha tem ab DO men", responde-se. A aranha de si tece sua teia. Como o ovo extrai de si a vida que é necessário tecer:
a vida
ida foi tecida
com fé e paz
ciência
(p.117)
Fiar o fio da vida, ciência primordial, perante a qual todos os outros desafios tornam-se menores:
Ivan DO ma leão
você sabia sabiá
que eu aranha
fian DO
co`o fi o delica DO
apo
fiar
RE quereu mais ciência
DO que a sua ciência
Ivan
para DO mar leão?
(p.120)
O discurso poético, identificado com essa ciência, sacia a fome primordial pelo re-/conhecimento poético:
eu canto
sonho com estrelas
servas da noite
eu grito
na terra é lugar
de gente
FA minta de amor
eu FA brico
um boi
um trigo
um pão
acabo co`a fome
(p.121-2)
Entretanto, a fome primordial é manifesta tão logo há vida no útero, "o ovo", "a gruta", "a pera". De fato, desde o processo da gestação, esta fome se instaura:
já na primeira
semana
meu tamanho
é de um ovo
de pomba
e eu vagamente
sonho com uma boca
SO(l) minha
por onde
eu possa gritar
ar
ar
" NA TERRA
O QUE OS HOMENS
QUEREM É SO(l)
SI AMAR "
Chegado o momento de nascimento, de saída da gruta, é dado à luz o ser feito à imagem e semelhança de Deus, sempre apto, pois, a re-/encontrar Sua graça, desde que se disponha a tanto:
deusa LU SI NA
empunhe SI eu FA cho
emblema da vida
MI entregue
hum papel carimba DO
assina DO
DO RE
DOR
o sinal
e prova
de que sou
SER co`a figura Humana
en Fim
(p.138)
No Livro Cinco, A carta, aparece o "eu" lírico identificado como Tereza, que em seu castelo escreve uma carta ao SOL:
aunque com cierto desaliño
evoé Dionisios
esta carta
de amor
muito aten SI osamente
venho sauda-lo
a-lo de luz
SOL
(p.142)
Pelo trecho citado acima, notamos ainda a confluência dos pólos apolíneo e dionisíaco, em alegre exaltação à vida. O "eu" lírico canta os "sete maravilhosos presentes" que ganhou do SOL. O primeiro é a pele, "belo/ elo perfeito/da cor morena", que configura a própria forma humana. O segundo são os pés "magníficos", através dos quais o "eu" dança "a dança/ de Baco":
co`a taça na mão
beba comigo
eu FA ço tu DO
que eu quero
no meu castelo
não há leis
a cumprir
(p.145)
Ao restituir, pela voz feminina, a viabilidade e a dignidade do diálogo homem/mulher, fora da orientação tecnocrática, a escritora aponta, simultaneamente, para a restituição, pelo discurso poético, da vitalidade desse diálogo e para a reavaliação de seu percurso histórico a partir de uma ética de conduta, profundamente interiorizada. Com efeito, segundo a perspectiva mística, a graça divina é tão participante da essência humana que amar a Deus é afirmar essa própria natureza, sem a necessidade de leis para legitimação.
O terceiro presente são os olhos, que "brilham muito mais/ que as estrelas". Os olhos permitem ao "eu" mirar-se sobre sua própria imagem:
e eu vejo o rryo
e no espelho d`aigua
MI vejo LA d(entro)
(p.145)
O quarto é o coração, "divide-se em quatro/ quatro moradas/ suas moradas/ meu amante". O quinto é o cabelo, "manto castanho". O sexto são os ovários, graças aos quais a vida "ida continua". Finalmente, o sétimo é a boca, órgão da fala, do canto, pelo qual se pode nomear e comunicar com Deus:
a la manera
marota, eu chamo você
por vários nomes
poys assim eu penso
que eu não tenho
SO(l) só um
mas vários amantes
e na areia dourada
ma SI a cama
deitada
o corpo inunda DO
de risos e pranto
a boca
cheia de fome
torturada de amor
eu urro seu nome!
AH! LA
JEOVAH
ODIN
WODAN
GRANDE TOR
BAAL BAAL
TUPAN
ou simplesmente
agora
meigamente
venha…
devagarinho
meu JESU.
(p.147)
No trecho acima, observamos a multiplicidade de nomes atribuídos pelo "eu" lírico à divindade, cada um segundo uma crença ou religião, porém todos convergindo para um só; novamente a unidade encarada em sua complexidade. Nos versos finais, acentua-se mais uma vez para o clima de intimidade com Deus, próprio da mística espanhola, cujo "eu" lírico com ela identificado perpassará igualmente o Livro Seis.
Este livro, intitulado A borboleta, é o livro das metamorfoses e do crime e arrependimento. A primeira metamorfose é a do próprio nome Teresa:
s e r
T E R E S A
s
a a
s
a s
e a
r
r e
(p.151)
À metamorfose em pássaro segue-se outra, depois, em borboleta, inseto alado que, por sua vez, passa por quatro metamorfoses:
a borboleta
passa quatro
o ovo
a LA rva ou LA garta
a nin FA maníaca
digo a crisálida
e o esta DO adulto
r
(p.155)
A metamorfose, compreendida dentro do processo de identificação/ estranhamento, re-/aproxima o "eu" de seu outro dialético, apontando, pelo diálogo, elementos para sua superação. Passa-se a narrar, por um "eu" identificado(?) como Maria Bonita, um crime, "grave infração", "foi hum crime horren DO". Este "eu" lírico, absolutamente sem motivo algum ("um dia SI em mais/ nem menos"), mata sua melhor amiga, uma "árvore bonita", hera trepadeira que crescia em seu "verg(EU)". Ato de ingratidão, ou melhor, de a-/gratidão, apatia completa frente às forças vitais da natureza, agressão à própria identidade enquanto indivíduo — o lugar do crime, o "verg(EU)". Apenas o arrependimento, compreendido aqui como auto-consciência dessa apatia e seus efeitos de anulação do indivíduo e da necessidade de superá-lo buscando simultaneamente a restituição da paz, reconduz o indivíduo ao seu verdadeiro estado. Para tanto é necessário o perdão:
há perdão
per DO n?
(p.166)
O sentimento do perdão aponta para o re-/conhecimento de Deus, instaurando a harmonia então perturbada:
per DO n
D
E O
D(eus)
Há deus…
(p.166)
Resta, finalmente, tratar da atitude religiosa, questão nuclear da mística espanhola, tema do Livro Sete, O bestiário. O encontro com Deus pelo amor de Deus. A sétima morada:
mercedes grandes
hace Dios
a las almas
que han llegado a entrar
en LA s séptimas Moradas
(p.170)
Mais uma vez, a escritora recorre à tradição como fonte de sua matéria poética, no caso, o episódio de São Luís o Rei. Aqui, acompanhado de um cronista, deparam-se com uma velha:
o cronista Joinville
RE parou
" Tem a velha na mão direita
um balde de água fria
leva um FA cho acesso
na outra mão "
(p.172)
Indagada pelo Rei sobre o porquê de empunhar dois objetos de natureza tão contrárias, a velha responde:
" com o FA cho incendeio o c(EU)
e co`a água eu apago o fogo
DO in(ver)_
ferno
criaturas humanas
amam deveras s(EU) D(EUS)
sem prêmio ou sem me DO
sem temer o castigo
das chamas eternas "
(p.173)
A velha (anjo?) desaparece então no ar, "deixando no espaço uma fita de luz", justificando assim o título do Livro:
o cronista RE gistrou
esta velha é um PÁSSARO
(p.174)
Tendo enfatizado o próprio texto da autora na maior parte de nosso trabalho, não obstante esperamos, diante dos trechos selecionados, ter atingido nosso objetivo principal, como seja, comentar algumas das principais características do universo poético que compõem esta apaixonante obra de Heloísa Maranhão. Tarefa árdua, como o próprio caminho trilhado pela autora, porém não menos gratificante. Qualquer escritor que tenha a coragem e o talento de arriscar-se a recuperar a linguagem em sua essência pela arte merece todo o nosso respeito, e tentativas como a nossa, de buscar chaves para a sua exegese, mesmo quando eivadas de imperfeições e lacunas, não devem jamais deixar de ser empreendidas.
P. S. Y com eso non digo mas
(p.176)
NOTAS:
[1] MARANHÃO, Heloísa. Castelo interior e moradas. pref. de OLINTO, Antonio. Ed. Porta de Livraria, 1974 (Série Poesia, 19), cit.p.13
[2] op.cit., p.68
[3] Prefácio a ÁVILA, Teresa d`. Quando o coração reza… 2ed. São Paulo: Ed. Cidade Nova, 1988 (Col. Clássicos da Espiritualidade), cit.p.17-8
[4] SANTOS, Acácio Luiz. Formas de re-/conhecimento poético no universo romanesco contemporâneo. trabalho datilografado
[5] Cap. XIX — «Conclusão»
[6] op.cit., p.24
[7] Sempre pela edição definitiva da Ed. Quíron faremos a paginação.
[8] MARANHÃO, Heloísa. Castelo interior & moradas. São Paulo/ Brasília: Ed. Quíron/ INL, 1978 (Coleção Sélesis, 15), cit.p. IX