Faço questão de reproduzir artigo, cuja autora é a Professora e economista Dirlene Marques, minha amiga e ex-colega da UFMG.
Também estive em Cuba em 2001, portanto sete anos antes da Professora Dirlene. Curiosamente foram idênticos a impressão, as imagens e o juízo que fiz daquele país e do dia a dia daquele povo gentil, hospitaleiro e alegre. Aos que gostam de combater a ditadura de Fidel, gostaria que a comparassem com a de nosso país dos anos 60 e 70 ou, então, com a de Pinochet no Chile, onde estive em 1986. Nos bares de Santiago não se ouvia quase uma conversa. O silêncio era de chumbo e o medo estampado no rosto das pessoas. Em Cuba fiz questão de indagar de gente do povo, particularmente garçons ou garconetes, camareiras, recepcionistas, donos de bar, taxistas o que esperavam acontecer depois de Fidel. A resposta era invariavelmente a mesma: - "a revolução está consolidada e o sentimento de patriotismo cubano é muito forte. A ditadura de Fulgêncio Batista jamais se repetirá. A contingência histórica, sobretudo a pressão americana sobre a Ilha, através do bloqueio econômico, têm nos obrigado a inúmeras privações. Mas estas antes de nos enfraquecer, têm-nos fortalecido.
Uma visão sobre Cuba
Professora Dirlene Marques
Participei de um grupo de mineiros que esteve em Cuba do dia 20 de janeiro a
5 de fevereiro de 2008, nas Brigadas de Solidariedade. A carta renuncia de
Fidel e os comentários da imprensa e das diversas pessoas que encontro, me
levaram a escrever este texto, considerando o que vivi, vi, ouvi, observei e
estudei.
Como todas (os) brasileiras (os), influenciadas (o) pela intensa propaganda,
fomos a Cuba procurando a miséria e a ditadura. E, no nosso subconsciente, o
povo deveria ser muito passivo e muito bronco, para manter uma ditadura de 49
anos.
E o que encontramos? Tivemos um choque pois encontramos um povo com um nível
cultural bem acima da media do povo brasileiro. Tivemos liberdade de ir e
vir, de bisbilhotar, entrar em todos os lugares e de conversar com todos.
Alias, ate de forma muito invasiva, entravamos nas casas, nas escolas
infantis, nos n museus. Procurávamos crianças e adultos de pés no chão,
mendigando, dormindo debaixo de marquises, casas miseráveis. Só então
entendemos a verdade do out door próximo ao aeroporto: "Esta noite, 200
milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo. Nenhuma e cubana". Outro: "A
cada ano, 80 mil crianças morrem vitimas de doenças evitáveis. Nenhuma delas
e cubana". E nos sabemos que milhares delas são da 8a. economia do mundo, a
brasileira.
Alem disto, chegamos um dia apos o encerramento do processo eleitoral, com a
eleição do Parlamento, eleição não obrigatória que teve 95% de participação.
E, para nossa surpresa, ficamos sabendo que o Partido Comunista Cubano não e
uma organização eleitoral e portanto não se apresenta nas eleições e nem
postula candidatos. Os candidatos são tirados diretamente, em assembléias
publicas nas diversas formas de organizações existentes: do bairro, das
mulheres, jovens, estudantes, campesinas. Que depois vão se reunindo por
região, estado e finalmente, no nível nacional. Estes representantes
nacionais, elegem o presidente e o vice. Todos os representantes podem ser
destituíveis, a qualquer momento, pelas suas bases, caso não estejam
respondendo ao projeto de sua eleição. E vimos como 46% dos eleitos são
mulheres (no Brasil conseguimos as cotas de 30% para disputar e não eleitas).
As estruturas de funcionamento são mais próximas de uma democracia direta.
Parece-me um contra-senso chamar este processo de ditadura. Seguramente, e
diferente da democracia burguesa, onde apos colocar o voto na urna finda a
obrigação do eleitor. Os críticos valem-se da mágica de que "o que e bom para
os EUA e bom para o resto do mundo". Desconhecem, e não querem que seja
conhecido, outro processo de participação popular, como o Cubano.
Tentando também entender o que víamos, um povo simples e culto, simpático e
sem stress, procuramos estatísticas: alfabetização de 99,8% (no Brasil
86,30%) e que de 1959 a 2007, a quantidade de escolas passou de 7.679 a
12.717, os professores passaram de 22.800 para 258.000, com uma população em
torno de 11 milhões de habitantes sendo o pais que o maior índice de
professores por habitante do mundo. No IDH 2007 da ONU, o Brasil comemorou o
fato de figurar em 70º lugar. Cuba figura em 51º lugar. O país conta com
70.594 médicos para uma população de 11,2 milhões (1 médico para 160
habitantes); índice de mortalidade infantil de 5,3 para cada 1.000 nascidos
vivos (nos EUA são 7 e, no Brasil, 27); 800 mil diplomados em 67
universidades gratuitas, nas quais ingressam, por ano, 606 mil estudantes.
Dados da Unesco em 2002 relatavam que 98% das residências cubanas possuíam
instalações sanitárias adequadas (contra 75% das brasileiras). Dados da CIA,
central de inteligência americana, estimava em 1,9% o desemprego em Cuba. No
Brasil , segundo a mesma fonte, o índice era de 9,6% no ano de 2007. E que, a
expectativa de vida ao nascer na ilha era de 77,41 anos e no Brasil era de
71,9 anos.
Esses números a despeito de ser uma pequena ilha, ao alcance de um tiro de
canhão disparado de Miami e que resistiu a uma tentativa de invasão
norte-americana (Baía dos Porcos, 1961) e a várias outras de assassinato de
Fidel Castro e ações terroristas orquestradas pela CIA, ter um bloqueio
econômico e político apenas rompido por países com autonomia como Venezuela,
Bolívia, China e alguns paises da Europa.
E nos, com a arrogância de quem tem toda a informações pela imprensa livre
brasileira (sic) continuávamos procurando outros sinais de desmandos: e os
presos políticos?
De fato, há pessoas detidas mas não pelo que pensam, mas pelo que fazem, como
o de organizar grupos financiados pela embaixada dos EUA. Fora isso, todas as
personalidades importantes da dissidência estão em liberdade e tem suas
atividades políticas como Martha Beatriz Roque, Vladimiro Roca e Oswaldo
Paya. E importante ressaltar que Cuba sofreu intensamente com o terrorismo
nos últimos 40 anos, perfazendo mais de 3500 mortos. E, fica fácil mostrar a
postura dos EUA com documentos oficiais, confirmando o financiamento de
cubanos exilados para promover ações contra o governo cubano. O museu na
Praia Giron (ou Baia dos Porcos), e um monumento de denuncia as ações
terroristas, iniciadas desde 1961 quando o se rompe às relações e se instaura
o bloqueio. Em 1963 o democrata Kennedy, aprova o plano de manter todas as
pressões possíveis com o fim de perpetrar um golpe de Estado. E, sabemos
quantas vezes, ao longo destes anos, tentaram matar Fidel Castro, obrigando-o
a sequer ter uma residência fixa. Nos anos 90, a Lei Torricelli reforça o
bloqueio econômico e, na seção 1705 diz que "Os Estados Unidos proporcionara
assistência governamental adequada para apoiar a indivíduos e organizações
não governamentais que promovam uma mudança democrática não violenta em
Cuba". Esta lei vai ser reforçada na administração de Clinton, pela lei
Helms-Burton quando diz : "O presidente dos EUA esta autorizado a
proporcionar assistência e oferecer todo tipo de apoio a indivíduos e
organizações não governamentais independentes com vistas a construir uma
democracia em Cuba". E, o governo Bush não podia ficar atrás e, em 2004
aprovou um financiamento de 36 milhões de dólares para financiar a oposição a
Cuba, em 2005 mais 14,4 milhões de dólares, em 2006 mais 31 milhões de
dólares alem do financiamento de 24 milhões de dólares para a Radio e TV
Marti, transmitida dos EUA para Cuba neste caso, infligindo a legislação
internacional que proíbe este tipo de transmissão. Estes valores são
fantásticos -105,4 milhoes em apenas 3 anos.
Outra dificuldade e entender o funcionamento da economia cubana. Logo apos a
revolução faz-se uma ampla reforma agrária, instalando uma via muito
particular no campo, onde de um lado manteve alguns proprietários privados,
como o de tabaco, e de outro, constituindo cooperativas voluntárias ao lado
das propriedades estatais. O setor serviços foi todo ele estatizado. Apos os
anos 90, com as dificuldades dada pela intensificação do bloqueio e com o fim
da União Soviética, foi feita uma grande abertura para entrada do capital
internacional no setor turismo, sem desconhecer o risco que isto poderia
acarretar. O setor de transformação, inicialmente todo ele estatizado, hoje
tem tido parcerias.
Com o nosso olhar de classe media, que podemos fazer uma viagem internacional,
nos chocava alguns problemas com a vida cotidiana como habitações pobres,
transporte publico precário, limitações econômicas para se ter ate papel
higiênico (isto deixava a todos pensando, pobrezinho dos cubanos). Isso é
verdadeiro, alem destes problemas da vida cotidiana, vários outros nos foram
apresentados pelo secretario do partido comunista, que fez uma palestra para
os brigadistas: o aumento da prostituição, dos pequenos delitos, da corrupção
e da desigualdade social. Quando se investiu no turismo e posteriormente, com
a criação da moeda turística (o peso conversível), cresce de um lado a
entrada de divisas e de outro, possibilitou um rendimento, para os
trabalhadores destes setores, acima do restante da população, ocasionando um
aumento da desigualdade social. Afirma ele que vivem numa quádrupla ilha:
geográfica; única nação socialista do Ocidente; órfã de sua parceria com a
União Soviética e bloqueada há mais de 40 anos pelo governo dos EUA. E
buscando respostas coletivas para estes problemas, desencadearam um processo
interno de críticas e sugestões à Revolução, através das organizações de
massa e dos setores profissionais. São mais de 1 milhão de sugestões que
pretendem trabalhar mas mantendo os princípios do socialismo: solidariedade e
não a competitividade, o coletivo e não o individualismo.
Mas, para nos brasileiros de classe media (somos quantos? Depende da
estatística mas varia de 5 a 10%), que podemos fazer uma viagem internacional
e que não conhecemos a realidade dos 90% do povo brasileiro que não tem como
pagar um plano de saúde, que tem pouca alimentação, que fica com os restos do
desperdício dos 10%, com uma educação precária, e difícil entender a lógica
econômica de uma sociedade voltada para os 100% da população. E ficamos
horrorizados por eles não terem papel higiênico. Mas não nos deixam
horrorizados que tenham bibliotecas e livrarias em toda escola e em toda
cidadezinha. Ou que tenham acesso à saúde e educação da melhor qualidade,
habitação com saneamento e aparelhos eletrodomésticos novos para economizar
energia. Ou, que não tenhamos encontrado erosão por todos os lugares que
andamos.
E a busca do conhecimento? E as escolas? Como e possível ver os círculos
infantis, crianças de 1 a 4 anos, assentadas ouvindo historias, sem a
professora estar gritando, mandando ficarem quietas? E ver os portões destas
escolas abertas e as crianças não fugirem? Como e possível não ter o stress
que, temos em nossas escolas? E, conversando com as crianças do pré-escolar e
do escolar (5 a 11 anos), ficávamos surpresas com as perguntas cheias de
inteligência e informação sobre nosso pais, que faziam aquelas pequenas
crianças? E, como nos permitiam entrar nas salas de aulas, fotografar,
bisbilhotar as bibliotecas onde encontrávamos livros de Marx a Lênin, de
Jorge Amado, Machado de Assis, a Shakespeare. Imagine isto aqui no Brasil?
Ficávamos encantadas. Eu, como professora da UFMG, tida como uma das melhores
do Brasil, me encantava com aquelas bibliotecas. E as livrarias? Na pequenina
Caimito onde ficava o acampamento, literalmente invadimos uma livraria,
comprando tudo quanto e tipo de livro, pela sua qualidade e pelo preço
(comprei um livro do Boaventura de Souza Santos por 8 pesos cubanos – que
equivale mais ou menos a R$ 0,50 -, outro do Che Guevara sobre Economia
Política de 397 págs. por 22 pesos cubanos, portanto em torno de R$ 1,40 (e
dai para frente).
E o investimento na potencialidade do ser humano não pára ai. O
desenvolvimento das artes – dança, pintura, musica, poesia, desportos – e
encontrado em cada escola, em cada esquina, em cada cidade.
E claro que também tivemos as frustrações no contato com algumas pessoas,
especialmente em Havana onde impera o espírito da cidade turística, onde se
busca sempre ganhar alguma coisa, passar a perna, apenas diferenciando pela
intensidade dos problemas, com as nossas cidades turísticas como Rio de
Janeiro. Só que e mais ingênuo, meio estilo anos 60. De todo jeito,
frustrante. Também nos entristeceu encontrar tantos cubanos sonhando em sair
da ilha, acreditando por exemplo, que o Brasil é um paraíso, visão que tem
através das telenovelas (que todos assistem).
E assim, uma sociedade muito diferente que nos estimula e atrae. Alias, nada
melhor para expressar isto do que a crônica do Clovis Rossi (O "pop star" se
aposenta) do dia 20 de fevereiro na Folha de São Paulo contando o episodio de
um encontro do GATT, que contava com a presença dos chefes de estados,
diferentes autoridades mundiais e jornalistas de todo o mundo. Onde o
burburinho na sala do encontro e na sala dos jornalistas era enorme, com a
atenção dispersa. Quando se anunciou Fidel Castro houve um grande burburinho,
com todos procurando o melhor lugar para assisti-lo e "ao terminar, uma chuva
de aplausos, inclusive de seus pares, 101% dos quais não tinham nem nunca
tiveram nenhum parentesco e/ou simpatia com o comunismo. Difícil entender o
que aconteceu ali."
Para terminar, quero colocar uma idéia desenvolvida na mesa redonda integrada
por vários cientistas cubanos e sintetizada pelo jornalista Jesus Rodrigues
Diaz, falando sobre o potencial no desenvolvimento do conhecimento quando ele
se da de forma coletiva. E que no capitalismo existe uma grande contradição
entre o caráter social da produção e o caráter privado da apropriação. Dai, a
reação do capitalismo ao papel crescente do conhecimento na economia e a
busca da privatização do conhecimento, principalmente através da propriedade
intelectual, das barreiras regulatorias e do roubo dos cérebros.
"Temos que insistir também que, quando falamos do Potencial Humano criado pela
revolução, não nos referimos exclusivamente à quantidade de conhecimentos
técnicos incorporados em nossa população. Mais importante ainda é a semeadura
de valores éticos, de atitudes ante a vida. Na sociedade do conhecimento faz
falta um cidadão com vocação de aprender e de criar, e de levar seus
conhecimentos aos demais seres humanos. Os conhecimentos técnicos nos podem
dizer como se trabalha, porem são os valores os que nos fazem compreender
porque se trabalha e deles tiramos as motivações e as energias para seguir
adiante.
Que se passa agora se os conhecimentos se voltem ao fator mais importante da
produção, inclusive os bens de capital? Não e difícil de prever. A resposta
do capitalismo e a intenção de converter também o conhecimento em Propriedade
Privada. Porem, a boa noticia e que isto não vai funcionar. O conhecimento
não e igual ao Capital. Esta nas pessoas e não se pode facilmente privatizar.
O conhecimento requer circulação e intercambio amplo. As leis da propriedade
intelectual inibem este intercambio. O conhecimento e validado pela sua
aplicação social, não pela sua venda. O uso amplo dos produtos do
conhecimento e o que os potencializa", termina o jornalista. Esta e a grande
limitação do raciocínio capitalista em entender a potencialidade da criação
coletiva. Ignoram que a criação humana coletiva tem muito mais possibilidades
do que as leituras positivistas do conhecimento.
O maior feito desta pequenina ilha, com um povo cheio de dignidade e coragem,
terá sido o de mostrar ao mundo que e possível construir uma sociedade
baseada no ser humano e não na mercadoria e na acumulação de capital. E isto
ameaça o mundo capitalista, e é rejeitada pela imprensa burguesa e pelos
setores médios que querem impor as condições de suas vidas para a totalidade
do mundo. Mas, Cuba não esta só. Existe hoje uma rede internacional de
solidariedade ocasionada pelos médicos e professores cubanos em mais de 100
países, pela Operação Milagros, pelas brigadas de solidariedade e por todos
aqueles que acreditam que Um Outro Mundo é Possível e que lutam pela sua