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Artigos-->QUANDO A VERGONHA ACABA -- 10/05/2008 - 14:04 (Jeovah de Moura Nunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Quando a vergonha acaba



Mauro Chaves



Um presidente de multinacional, de forma gratuita e inexplicável, afirma que, “se o Piauí deixar de existir, ninguém vai ficar chateado”; um coordenador do colegiado de uma faculdade de medicina da Bahia, para justificar o fracasso de sua escola na avaliação do Ministério da Educação, afirma que os estudantes baianos têm “déficit de inteligência” e que os baianos só são bons no berimbau porque o instrumento só tem uma corda - se tivesse mais, os neurônios baianos não dariam conta; um ator medíocre, já em fase de plena decadência, propõe, simplesmente, uma campanha para demolir o Cristo Redentor, porque “o Cristo atrapalha o visual” do Rio. O que significa esse festival acachapante de disparates, esse amontoado descomunal de besteiras que a mídia não se peja de reproduzir, como se fôssemos uma sociedade de parvos ignaros, débeis mentais, capazes de ouvir quietos, sem reação, qualquer baboseira?



É claro que o desejo compulsivo de aparecer diante dos holofotes e das câmeras de televisão, nestes tempos rasteiros de Big Brother, só explica parcialmente esse surto de imbecilidade galopante. É verdade que “nunca antes neste país” existiu tamanho frenesi de exibição pública. Talvez seja porque “de tanto ver triunfar as nulidades”, como dizia o gênio Ruy (por sinal, baiano), “todo mundo resolveu fazer uma tentativa” (como completava a frase escrita no banheiro do antigo Jogral). O negócio é “aparecer na mídia”, seja de que jeito for - e às vezes o espaço midiático está na razão direta do tamanho da besteira proferida. Há mais, porém. O problema é que, no Brasil, a vergonha acabou. E quando a vergonha acaba, tudo é permitido dizer.



Quando a vergonha acaba vêm à tona as justificativas mais estapafúrdias, que parecem pretender reduzir a nitrato de pó de traque a inteligência do povo. Por exemplo, quando o reitor do saca-rolha de R$ 849 tentou justificar o gasto de R$ 450 mil (desviados da pesquisa científica) na decoração de seu apartamento funcional, disse que para mobiliar um apartamento “é preciso seguir uma linha estética” (o que justificava, também, a compra - com dinheiro público - de lixeiras de R$ 1 mil). Quando o governador cearense tentou justificar seu dispendioso aerossogra, “esclareceu” que ao se fretar um jato se paga por quilômetro percorrido, e não pelo número de passageiros - argumento, aliás, totalmente endossado pelo presidente da República, em sua solidariedade contumaz a autores de “erros administrativos”, gestores de “recursos não-contabilizados” e montadores de “bancos de dados”. Em nenhum momento se explicou por que o governador e seus secretários deixaram de usar vôos comerciais (muitíssimo mais em conta) para passear pelo mundo atraindo “investimentos para o Ceará”.



E o que dizer do “ministro do futuro” (o já famoso titular da Sealopra), que defendeu a transposição das águas do Rio Amazonas para o semi-árido nordestino? Esse aí só falta agora propor a cavação de um enorme buraco em algum lugar do Brasil para que, atravessando a Terra, cheguemos de elevador até o Japão - embora comecemos a viagem em pé e a terminemos de cabeça para baixo. É que, quando acaba a vergonha, também acabam os limites da imaginação - assim como os da espantosa criatividade em jogar fora o dinheiro público.



Quando não se tem mais compromisso com a verdade dos fatos, o reino do “como se fosse” é ilimitado. Nele se constroem as verdades de acordo com cada conveniência pessoal. Nos homens públicos, muitas vezes, essa conveniência pessoal é camuflada por fajutos “princípios”. Candidaturas são lançadas a pretexto de “chamamentos” que não existem, a lealdade é desprezada em nome de suposto “direito” partidário, o medo de ficar sem emprego político se transforma em “ideal doutrinário”, o pavor de perder “espaço na mídia” vira “missão de soldado do partido” e outras atitudes que só impressionam os debilóides, tais como o de se ser bicão de inaugurações alheias.



Na verdade, cada vez mais as pessoas públicas parecem menos empenhadas em “convencer” quem quer que seja do que for. Antes os parlamentares aproveitavam as vésperas dos recessos ou dos feriados para, na calada da noite, sem ninguém perceber, fazer seus indecentes reajustes de ganhos. Hoje perpetram seus avanços no dinheiro público em plena luz do dia. Os magistrados, que só “falavam nos autos” e enrubesciam ao tratar de seus assuntos corporativos, hoje (com as honrosas exceções de praxe) falam a torto e a direito e em qualquer lugar, tanto anunciando a sentença que vão proferir quanto o reajuste de ganho que vão reivindicar.



Quando tudo isso começou? Não éramos assim. Em algum momento o tecido da vergonha nacional começou a esgarçar. Tínhamos vergonha quando éramos chamados pela professora para mostrar o dever de casa e não o tínhamos feito; quando convidávamos a namorada para jantar e faltava dinheiro para pagar a conta; quando esquecíamos de levar presente numa festa de aniversário; quando cometíamos alguma indelicadeza com alguém - sem querer ou querendo. Hoje as pessoas erram e nem se tocam em corrigir, fazem serviço com defeito e não estão nem aí, esbarram com outras na rua, dão mochiladas no metrô, cotoveladas, pisões de pé, trancos, avançam nas faixas de pedestres, dão “fechadas”, atropelam - e nem se dignam a dar uma olhadinha para a vítima, muito menos pedir-lhe desculpas. E quando os famosos “abrem a alma” diante das câmeras para confessar que “erraram”, nem assim demonstram sentir qualquer vergonha - mais parecem possuídos de um estranho sentimento de vítima heróica.



Sim, realmente, no Brasil a vergonha acabou. E quando a vergonha acaba...



Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e pintor. E-mail: mauro.chaves@attglobal.net



(publicado no jornal Estadão de hoje)



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