O maior perigo das crônicas é assemelhar-se com a realidade. Quando algum personagem perece ser quem não deveria, e que talvez fosse até baseado em situações verídicas, mas que de fato não tinha realmente nada a ver. Vai ver que tudo não passou de coincidência, e que embora fosse tudo muito parecido, não era nada disso. O problema foi a semelhança, e poderia até ter sido melhor em outro personagem, mas faltou a força de vontade. O que acontece é que os personagens foram parcialmente baseados em suas fontes reais, mas que no decorrer da escrita, tornaram-se outros completamente diferente, e com apenas algumas similaridades com seus embriões, tornando-os personagens diferentes, e quase como que fossem clones.
Dos personagens reais que serviram de molde para cada clone literário, nenhum ficou sem expressar opinião desfavorável à crônica. Alguns eram utilizados casualmente, enquanto outros apareciam com mais freqüência, e tinham os que faziam performances relâmpagos, e sumiam para sempre pelas linhas de algum texto obscuro e escondido que ninguém nunca mais leria. As críticas, e algumas eram favoráveis, outras eram severas e cruéis, e quase sempre escondiam uma certa mágoa ou um profundo rancor. Dificilmente eram embasadas nas regras gramaticais, ou suas digressões, e sempre no conteúdo do texto. Nem mesmo eram críticas, mas severas correções morais.
A mãe não gostou como foi retratada no texto, e achou que tudo não passava de um exagero do filho. O primo distante ligou e perguntou se aquele personagem não parecia com alguém que conhecia. Seu pai achou engraçado, mas discordou de algumas descrições. A esposa, nem se fala... Achou um absurdo que compartilhasse suas intimidades com todos leitores. Já a irmã recriminou-o pela falta de decoro e disernimento, mas considerou divertida a investida. Os bons e velhos amigos, não leram nada e nem mesmo tomaram conhecimento do fato, ignorando-o por completo. Pois, é pra isso que servem os grandes amigos...
Por isso é de extrema importância, disfarçar toda e qualquer similaridade com a realidade. Pois, mesmo sabendo que é melhor perder o amigo que a piada, é necessário camuflar a identidade do molde inicial do personagem, mudando seu sexo, sua cara, credo e cor. Transformar um único molde em dois únicos clones, perfeitamente assimétricos do real. Evitar que a carapuça caia como uma luva na cabeça de qualquer molde, mas mesmo assim, algumas semelhanças inusitadas podem transformar dúvida em certeza, cagüetando o escritor.
Pode até ser que o personagem seja parecido, ou quem sabe mesmo idêntico, mas que cada um representa um pedaço de vida vivida, e são moldes involuntários nas perigosas crônicas sociais. Acontece que quando são transpostos para o celulóide, já tornaram-se personagens fictícios numa crônica inusitada. E de fato, a muito não poderiam ser comparados ao personagem, passando a simples inspirações momentâneas. Pelo simples fato de que os escritores baseiam-se nos ocorridos da vida, e nas lembranças mais longínguas e quase esquecidas no fundo dos baús de prata escondidos na memória. Todos que rodeiam escritores, são os personagens de um livro jamais escrito e publicado, tirando por pequenos pedaços de características, sentimentos, caráteres, morais ou bons contumes.
Pode-se dizer que os escritores são canibais de alma, capturando a revelia, e sugando descaradamente, copiando e misturando todas suas experiências.