Ex-chefe de um dos Grupos de Combate (GCs) responsáveis pela execução de 32 guerrilheiros no Araguaia e araponga do Centro de Inteligência do Exército até 1994, o tenente José Vargas Jiménez (foto) tirou do armário revelações que estão causando desconforto e mal-estar nos quartéis: admite e detalha os métodos de tortura usados no período que ele mesmo chama de "fase de extermínio" dos militantes do PC do B e assume a autoria da destruição de todos os documentos sobre a guerrilha que se encontravam no serviço de inteligência de Belém. Além disso, é o primeiro combatente a jogar luzes sobre possíveis locais onde possam estar os restos mortais de alguns dos 58 militantes do PC do B desaparecidos no Araguaia.
- Uma parte foi enterrada ou ficou insepulta na selva e outra nas bases militares de Bacaba (São Domingos do Araguaia), onde ficavam os GCs de selva, Xambioá (cemitério), área dos pára-quedistas e na Casa Azul (Marabá), dominada pelos oficiais de inteligência - diz o tenente Vargas em entrevista exclusiva ao Jornal do Brasil.
Ele decidiu falar depois de livrar-se de uma sindicância aberta pelo Comando Militar do Oeste, em Campo Grande (MS), para apurar a divulgação de documentos secretos e seu relato no livro Bacaba - memórias de um guerreiro de selva da Guerrilha do Araguaia, em fase de lançamento.
Na publicação, que, por enquanto, circula de mão em mão, ele conta, com sinceridade brutal, os principais episódios que diz ter participado, entre 2 outubro de 1973 e 27 de fevereiro de 1974. Revela, por exemplo, que mulheres e filhas de moradores eram feitas prisioneiras, torturadas e tiveram de se prostituir para sobreviver. E crueldade não pára por aí: as famílias de camponeses, com medo, ofereciam as filhas adolescentes aos militares. Havia, também, uma rivalidade entre as tropas para ver quem matava mais. Os homens de seu GC, como nos filmes de faroeste, faziam um risco na arma para contar quantos executavam.
Atirar primeiro
Esse foi o período da chamada Operação Marajoara, comandada pelo ex-secretário de Segurança Pública do Rio general Nilton Cerqueira, e que reuniu os oficiais mais experientes das Forças Armadas especializados em guerra na selva. No total, eram 100 pára-quedistas e outros 120 homens treinados no Centro de Operações na Selva e Ações de Comando (Cosac).
Com a guerrilha já isolada pela operação anterior, a Sucuri, eles entraram no circuito da guerrilha com nomes, fotografias de guerrilheiros, mapas, normas de procedimento, listas de moradores que deveriam ser presos e instruções muitos claras sobre a missão que deveriam executar:
- A ordem era atirar primeiro e perguntar depois. Nós entramos para matar, destruir. Não era para fazer prisioneiros. Tínhamos o poder de vida e de morte sobre os guerrilheiros. Era para exterminar e não vejo por que esconder que houve tortura ou que se tratou de um extermínio - afirma Vargas, comandante de um GC com 10 homens, subordinado ao então major Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió, atual prefeito de Curionópolis, guardião dos segredos mais pesados do conflito e dono do arquivo onde estão as informações sobre o destino dos guerrilheiros.
Conhecido entre oficiais e combatentes pelo codinome de Chico Dólar, Vargas diz que, entre 1976 e 1978, quando voltou à região e ficou lotado no 52º Batalhão de Infantaria de Selva (BIS) em Marabá, soube que Curió coordenou a limpeza da área, retirando vestígios da guerrilha e mandando desenterrar ossadas que se encontravam em sepulturas em locais previamente identificados na região.
- Não sei isso realmente aconteceu porque não vi. A ordem que recebi de superiores, já em 1985, quando estava em Belém, era reunir todos os documentos. Busquei nos arquivos, juntei tudo e queimei. A ordem era destruir e cumpri. Isto eu assumo - assegura
A história da incineração dos corpos num local nunca encontrado da Serra das Andorinhas é uma polêmica questionável e veio à tona em 1993, pelo relato do coronel da Aeronáutica Pedro Corrêa Cabral no livro Xambioá. Oficiais que participaram diretamente do conflito ou do rescaldo das operações, como Curió e o coronel Lício Augusto Ribeiro Maciel, a contestam. Uma das hipóteses mais prováveis, é que Curió tenha mandado retirar alguns corpos de antigas sepulturas e colocado todos numa única vala no município de Palestina. O local, segundo depoimentos de guias do Exército e moradores da região, seria hoje uma grota cheia de túneis.
Cadáveres viram comida de animais
Na entrevista exclusiva ao JB, tenente José Vargas Jiménez assegura que alguns dos corpos dos 58 guerrilheiros desaparecidos ficaram insepultos e viraram alimento dos animais da floresta. Mas uma boa parte estaria sepultada clandestinamente em três bases militares. Em Bacaba, onde ficou baseado durante os 145 dias que atuou na selva como combatente, revela que pelo menos três guerrilheiros estariam num local próximo a um improvisado campo de futebol.
Em outro local apontado por ele, o Cemitério de Xambioá, em 1996, foi encontrada e identificada a guerrilheira Maria Lúcia Petit e retiradas para exames de identificação outras 12 ossadas que, 12 anos depois, ainda fossilizam nos armários da Comissão de Mortos e Desaparecidos da Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, em Brasília, sem qualquer conclusão conhecida.
O tenente Vargas relata três episódios do conflito em que diz ter participado. Um deles foi o ataque militar ao comando da guerrilha, no Natal de 1973, na Serra das Andorinhas onde, segundo afirma, foram mortos oito guerrilheiros - e não quatro ou cinco como informam todos os outros relatórios militares e do PCdoB, entre eles o maior dirigente do do partido e líder do movimento, o ex-deputado Maurício Grabois.
Mais mortes
Segundo o militar, também teriam sido mortos nessa ocasião e depois levados para Xambioá pelos pára-quedistas, os guerrilheiros Paulo Roberto Pereira Marques, o Amauri, José Huberto Bronca, o Fogoió, Gilberto Olimpio Maria, o Pedro Gil, Paulo Mendes Rodrigues, Guilherme Gomes Lund, o Luiz, Orlando Momente, o Landim ou Alexandrine, e Marcos José de Lima, o Zezinho do A ou Ari Armeiro, que fabricava e consertava armas para a guerrrilha.
Plano de guerrilha
No mesmo local foram apreendidos os principais documentos do PCdoB, entre eles, o plano da guerrilha para os primeiros quatro anos (1968-1972) - que Vargas, ou Chico Dólar, retirou do arquivo para destruição, mas guardou com ele uma cópia. O plano previa a estruturação de uma zona liberada, a criação de um exército regular e a ampliação da revolução no país para tomar o poder dos militares.
No mesmo período, Vargas diz que participou do episódio que resultou na execução, em 24 de outubro de 1973, da guerrilheira Maria Lúcia de Souza, a Sônia. Ela reagiu à ordem de prisão e, mesmo ferida, baleou dois oficiais (Lício e Curió) e depois foi metralhada por todos os militares que estavam na cena, entre eles o próprio Vargas. Mas ele não assume a autoria dos disparos, para evitar a auto-incriminação uma situação muito temida entre os militares:
- Não sou réu confesso - afirma.
Piauí, um homem que não sabia o que era medo
A ação que o tenente Vargas mais destaca é a prisão, em 24 de janeiro de 1974, do guerrilheiro Antônio de Pádua Costa, o Piauí, subcomandante do Destacamento A, estudante de Física da UFRJ. A operação rendeu a ele a Medalha do Pacificador com Palma, a mais cobiçada honraria militar, concedida, apenas, a quem se envolve em ações de alto risco.
O relato de Vargas sobre Piauí confirma aquilo que o Jornal do Brasil noticiou em 1996 (ao publicar uma foto em que o guerrilheiro aparece saudável à frente de um pelotão à paisana) e que os militares sempre negaram diante do imobilismo do governo civil em apurar: o guerrilheiro foi apanhado vivo e depois executado friamente, destino que teriam também entre 15 a 20 insurgentes feitos prisioneiros e desaparecidos.
- Quando fui evacuado da região, em 27 de fevereiro de 1974, (Piauí) ainda se encontrava vivo colaborando conosco, nos ajudando a encontrar diversos depósitos de alimentos e materiais dos guerrilheiros. O seu desaparecimento ocorreu em março de 1974 - afirma Vargas.
O militar conta que, em Bacaba, Piauí resistiu a todos os métodos de tortura e só decidiu falar quando quis e o que quis.
- Foi o guerrilheiro mais macho que conheci. Quando era torturado, só soltava um gemido seco, mas agüentava. Era valente e o mais preparado que conheci. Os outros não agüentavam os métodos de interrogatório e pediam pelo amor de Deus que os matássemos. Quando resolveu falar, Piauí só contou o que sabíamos - recorda.
Corpos insepultos
O tenente Vargas afirma que três guerrilheiros (Arildo Valadão, Adriano Fonseca e Jaime Petit da Silva) foram mortos, decapitados e tiveram suas mãos retiradas do corpo. As cabeças e as mãos foram colocadas em sacos plásticos e levadas para a base de Bacaba.
Também conta que outros três guerrilheiros, André Grabóis, João Gualberto Calatroni, o Zebão, e Antônio Alfredo de Lima, um camponês que virou combatente, foram deixados numa região conhecida por Caçador e vistos em pelo menos duas ocasiões, num espaço de três dias, por ele e seus comandados. Estavam já em adiantado estado de decomposição.
O coronel Lício Ribeiro Maciel contesta e afirma que os três teriam sido enterrados no sítio de uma camponesa conhecida por Oneida, na mesma região. Segundo Vargas, um dos soldados que o acompanhava arrancou o dedo de um dos guerrilheiros, amarrou num barbante e pendurou "o amuleto" no pescoço gritando que seria o seu troféu de guerra.
Trechos do livro
Troféu "Um dos meus soldados foi até um dos cadáveres e com sua faca cortou um dos seus dedos, retirou o resto da carne que já estava em decomposição, ficando somente com os ossos que pendurou no seu pescoço dizendo: este amuleto é meu troféu de guerra".
Acidente "De que me adianta viver se não vou ser mais homem para mulher nenhuma" (soldado Raul Marques de Brito, pouco antes de morrer, vítima de um tiro acidental de espingarda calibre 12 que arrebentou o pênis e a barriga)
Liberdade "Parem de brincar e devolvam minhas botas" (guerrilheira Lúcia Maria de Souza, a Sônia, imaginando que seus companheiros haviam sumido com seu calçado). O comandante do GC se aproximou e perguntou o nome: `Guerrilheiro não tem nome seu fdp (sic). Nós lutamos pela liberdade`. Ao mesmo tempo tirou um revólver que tinha escondido e disparou (feriu os oficiais Lício Ribeiro Maciel e Curió). Foi metralhada e morta ali mesmo. Seu corpo foi deixado à beira brejo, em Taboão, Brejo Grande".
Tortura "Choques com corrente elétrica gerada por baterias de telefones de campanha portáteis; telefone ( consistia em dar tapas com força, simultaneamente nos dois ouvidos com as mãos abertas); colocá-los em pé, descalços em cima de duas latas de leite condensado se apoiando somente com um dedo na parede; socos em pontos vitais como no fígado, rins, estômago, pescoço, rosto e na cabeça, além de fazê-los passar fome e sede" "Foi então amarrado nu, num pau viveiro de formigas (pau-de-arara) e seu corpo todo lambuzado com açúcar e sua boca cheia de sal. Quando as formigas começaram a andar pelo seu corpo e picá-lo, nos relatou tudo o que queríamos saber". (Sobre o camponês Frederico Lopes, que não queria falar)
Briga interna "Para de gritar e vem aqui ajudar, Curió fdp. Ele prontamente silenciou. Os homens do meu GC comentaram depois em Bacaba: `Se o Curió engrossa com você nós íamos matá-lo e diríamos que foi um acidente`".
Obs.: Uma resenha sobre o livro "Bacaba", de minha autoria - mais um "fichamento" do que propriamente uma resenha -, pode ser visto no endereço http://paginas.terra.com.br/educacao/acontinencia/artigos/art0206.htm (F. Maier).