Achei estranha a coincidência na terceira vez em que a encontrei ali no auditório da Brasília Super Radio FM, no Conjunto Nacional, um dos shoppings da cidade. As pessoas a olham, algumas com ar de pena, outras receosas, mas a mulher parece ignorar todos eles, provavelmente nem os vê.
Ela aparenta ter um setenta cinco anos, pequenina e magra, é também muito limpa, se veste de cor de rosa ou tons aproximados do rosa. Chova ou faça sol, ela carrega uma pequena sombrinha vermelha.
O fato é que ela chama a atenção de quem vai assistir ao programa “UM PIANO AO CAIR DA TARDE”, pois assim que começa a música, ela se levanta e dança abraçada a um cavalheiro imaginário.
A dançarina solitária me fez voltar ao auditório, na última quinta-feira. Acompanhada da minha irmã e de minha sobrinha Cacau, fui pela quarta vez, em duas semanas, ao Conjunto Nacional, só para ver se ela aparecia.
Dez minutos antes da apresentação do pianista Toninho, ela chegou com seu ar risonho. Acomodou a pequena bolsa e a inseparável sombrinha vermelha numa cadeira e sentou-se ao lado. Parecia que reservava aquele lugar junto ao dela.
Pontualmente o pianista Toninho anunciou a primeira música.
Os acordes suaves tomam conta do lugar. O ir e vir das pessoas (O auditório fica num corredor do shopping), não impede a dançarina de levantar-se, abraçar seu cavalheiro invisível, e dançar pelo pequeno espaço. Ela tem os olhos semicerrados. Seu semblante, de total enlevo, transforma seu rosto encovado num rosto quase bonito. Termina a música e sorridente ela aplaude o pianista e volta para seu assento.
Todos a olham, mas ela não dá importância aos olhares. Pelos murmúrios que escuto, me apercebo de que algumas das pessoas presentes esperam uma reação diferente da dançarina. Muitos acham que ela é uma velha louca.
Naquela tarde, o pianista anunciou a apresentação de um cantor lírico, o brasiliense Oscar Vinicius, um excelente Tenor, que estudou técnicas de interpretação no Brasil e na Europa.
Acompanhado do pianista Eugênio, Oscar interpretou o trecho de uma ópera alemã. Eugênio traduziu um verso do trecho operístico. “Tu és meu coração querido e eu quero você sempre perto de mim...”
Dificilmente imaginamos que na língua alemão possa haver romantismo, pois soa aos ouvidos como algo rude. Mas a beleza da interpretação do tenor desmentiu essa impressão.
Oscar cantou lindamente e justo naquele momento, uma família passou com um bando de crianças barulhentas. Uma das crianças berrava querendo algo que o pai não comprara. A dançarina então olhou severamente para o pai daquela criança, e de dedo em riste, pediu silêncio, censurando-o pela inconveniência do comportamento do menino. A velha senhora dançarina tem razão, a arte musical não combina com birra de criança mal educada.
A apresentação do tenor foi encerrada com uma bonita página do cancioneiro napolitano. A velha dançarina não perdeu uma música. Levantou-se e bailou sozinha todas às vezes. Com seu ar risonho, deixou-se inebriar pela voz e pelo piano, cujos acordes soavam ao cair da noite.
Toninho voltou ao piano, desta vez interpretando a canção “Alfonsina y El mar”. A dançarina, levada pelas ondas ouvidas por seu coração solitário, dançou em êxtase. Seu olhar se perdia em algum ponto do teatro-auditório, talvez onde seu cavalheiro imaginário estivesse a acenar-lhe, porque dessa vez ela abraçava a própria cintura, com um carinho suave. Seu sorriso dava a impressão, ser em retribuição ao sorriso de alguém que a contemplava, em seu mundo especial.
Ao som de “You’l never know” a apresentação dos pianistas foi encerrada. A dançarina solitária completou o quadro com seu dançar suave.
Descobrimos que a dançarina é uma professora aposentada, que vive só, mais muito bem, no seu confortável apartamento de um hotel cá de Brasília.
E assim tivemos mais uma apresentação da rádio que toca na freqüência do seu coração, onde a diferença é a música. Brasília Super Radio FM.