Os Srs. Norival Turini e Alcides Geraldo Quaglia, ambos de Jaú, além do Sr. José Aparecido Rodrigues, morador em São José dos Campos, são meus assíduos leitores. Fico satisfeito e muito agradecido em ter a companhia dessa boa gente. É justamente em razão de pessoas assim o grande motivo de continuar escrevendo. Hoje, entretanto estou com uma pontinha de egoísmo e vou falar de mim mesmo. Contarei o final de uma história de amor que não desejo para ninguém.
Cidade de Picos, no Piauí, fevereiro de 1952. Era o terceiro dia de carnaval. A festa se propagava por todos os cantos da cidade. Nós, molecada, corríamos atrás dos carros enfeitados e das bandinhas coloridas que passavam pelas ruas durante todo o dia e parte da noite. O cansaço, no entanto chegava cedo para nós e terminávamos as horas daqueles lindos dias nas calçadas de nossas casas, ouvindo as conversas noturnas de nossos pais que não entendíamos nada.
Onze horas da noite. Minha mãe resolveu entrar, mas ainda havia uma vizinha cavaqueira insistindo numa incansável palestra de comadres. Ficamos encostados na parede junto à porta de entrada. De repente gritos na casa em frente interromperam a conversa de minha mãe com a vizinha. Era na casa de um conhecido fazendeiro. No alpendre vi o rapaz de nome Solimar, namorado da Beatriz, filha do fazendeiro. Era empurrado por este e pelo capataz dele. Os empurrões fizeram o rapaz cair, rolando pela escada ao nível da rua, mas ainda no jardim da referida casa. O rapaz passou a ser espancado pelo capataz, pelo filho do fazendeiro e pelo próprio fazendeiro. A violência durou muito tempo. A filha do fazendeiro chorava e gritava muito, protestando com veemência pela atitude do pai. Depois, quando o rapaz não se levantava mais, o fazendeiro adentrou sua casa e voltou com um revólver. Continuava vociferando palavrões contra o rapaz e contra a própria filha. Esta conseguira, com a ajuda do irmão, arrastar o jovem Solimar para o meio da rua. Ela acreditava que, na rua, seu namorado estaria seguro. No momento em que mais calma tentava limpar os ferimentos do rapaz, seu pai bradou: -Saia já daí!
A jovem ao perceber o revólver na mão do pai gritou de forma tão aguda, que até hoje este grito parece vibrar em minhas membranas auriculares. E ato contínuo correu para cima dele na tentativa de segurá-lo, ou lhe tomar a arma. Sempre gritando a moça estava em desespero. O pai deu-lhe tremendo bofetão em seu rosto, empacotando-a à rés do chão. Naquele momento todos nós na calçada sentimos que algo ruim iria acontecer em nossa frente. Então, naquela noite, que marcou para mim como uma das cenas mais violentas que presenciei, juntamente com minha mãe e a vizinha, ouvimos os pipocos secos e vimos o fogo sair da boca do revólver por diversas vezes, enquanto o corpo do jovem, mesmo caído no meio da rua parecia pular e estremecer a cada tiro disparado. Uma bala encontrou a parede de minha casa a dois palmos de meu rosto. Vi o clarão provocado por ela. Não senti medo. Era uma criança. Percebia pelos gritos e pelas altercações das pessoas que havia problemas, mas não compreendia a gravidade. Afinal, naqueles dias as pessoas dançavam, pulavam e subiam nos caminhões enfeitados pelas fitas, bandeirolas e uma quantidade imensa de confetes e serpentinas, que eram atirados em outras pessoas. Minha mãe agarrou-me com força e adentramos a casa em desespero. A vizinha desaparecera. Os tiros continuaram. Meu pai saía do banho e indagou o que acontecia. Ouvi minha mãe dizer: –mataram o Solimar!
Meu pai foi até a porta da rua e logo voltou. Perguntou a minha mãe se ela havia presenciado o assassinato e ela respondeu que sim. –Então vamos ter problemas – disse tristemente. Depois sentou-se na sua cadeira de balanço, abriu o jornal e passou a lê-lo como se nada houvesse acontecido.
Durante toda a noite escutei os tristes murmúrios e os choros convulsivos da jovem Beatriz junto ao corpo do seu amado no meio da rua, dentro de um círculo de velas iluminando o local, já que a luz elétrica apagava-se à meia noite. Tinha eu sete anos de idade e já presenciara o barbarismo da violência deste país. Com o testemunho de minha mãe na Justiça começou o pesadelo de nossa família. Perseguições políticas deixaram a cidade praticamente contra nós. Uma noite fizeram uma gigantesca passeata. Tentaram invadir nossa casa e se não fosse pelo padre David, o pároco local e meu tio Zuza com uma “peixeira” enorme na mão nem sei o que teria acontecido. Na qualidade de prefeito interino meu pai confiou numa malta de políticos aproveitadores e assinou uma papelada em branco. Foi o seu erro. Voltou atrás e impôs sua autoridade tanto municipal quanto federal, já que era a única autoridade federal naquele munícipio.
O padre Davi deixou-nos importante depoimento daqueles tristes acontecimentos. Eis aqui: "Este fato acarretou-lhe sérios dissabores. Foi ele insultado, humilhado. Os alunos do Ginásio movimentaram a cidade. Fizeram programas de protesto numa amplificadora que funcionava na Praça Félix Pacheco, na chamada “Esquina Ideal”, tachando o professor, o jornalista, o poeta Alberto Nunes de analfabeto, entre outras coisas. Não satisfeitos, encenaram o seu enterro simbólico. Fizeram um caixão, cobriram-no de pano preto e de tarjas, e, parece incrível, saíram pelas ruas, uma cruz à frente. Uma aluna, vestida de viúva, carpia perto do caixão. Os outros, abraçados, cada um com cada uma, chorando alto, com velas acesas nas mãos, seguiam atrás.
Encontrando-me com o tal cortejo, eu protestei fortemente contra a profanação da cruz, levada num motim de estudantes. E pedi que a retirassem. O diretor do Ginásio, ou não quis, ou não soube, ou não pode evitar aquele drama nunca dantes visto, nem depois, na história desta boa, pacata e cristã cidade de Picos.
Apreensivo, dirigi-me para a casa de Alberto Nunes, então na hoje chamada Avenida Francisco Santos.
Afirmou Cícero, no seu livro “Da Amizade”: “Amicus certus in re incerta cernitur” – o amigo certo se reconhece numa situação incerta.
A situação para Alberto, naquelas circunstâncias, era incerta. E eu, e José Soares, procuramos ser amigos certos. Fomos visita-lo. Ficar ao seu lado, ao lado de sua esposa, dos seus filhos.
Encontramo-lo calmo, corajosamente tranqüilo. Aconselhamos-lhe que fechasse porta e janelas da casa, receosos do que fariam os manifestantes quando por ali passassem.
Felizmente, não houve nada contra ele. Deixaram apenas, nos batentes da porta e das janelas, as velas acesas, chorando lágrimas de cera, triste epílogo daquela encenação que bem merecia lágrimas de verdade.
Acredito que no mais íntimo do coração de Alberto Nunes, medrou um ressentimento profundo, por se ver assim tratado em sua própria terra, pela sua própria gente, sem nenhuma solidariedade por parte do seu próprio povo.
Talvez em conseqüência deste acontecimento lastimável, ele tenha decidido mudar-se para São Paulo, enfrentando toda sorte de dificuldades.
Alberto de Deus Nunes foi um forte. Lutou como um bravo, que não se deixa abater diante dos desafios da vida. Pode-se dizer que morreu pobre, como pobre viveu. Foi rico de coragem, de valor pessoal. E de filhos. Teve-os doze, seis nascidos em Picos; e seis em São Paulo. Prova bem patente de que confiava na Divina Providência".
Meu pai fora traído pela sua própria gente. Por isto resolveu deixar seu torrão natal, seu jornal “A Ordem” que fundara anos antes, seu emprego de professor, seus parentes e amigos. Embora fosse um brilhante poeta daqueles tempos, seu nome não vingou. A prefeitura da capital paulista deu imediato reconhecimento de sua história e de seus artigos e poesias. Somente Picos, sua terra natal demorou a reconhecê-lo, mesmo com a insistência de meu mano Douglas. Depois de vender tudo que tínhamos embarcamos numa jardineira, cujas “poltronas” eram de tábuas. Estávamos em abril de 1953. Viajamos treze dias com destino a São Paulo, capital, onde pegamos um trem para Campinas com baldeação em outro trem para São Simão. Comecei, aqui em São Paulo, a nascer de novo. O verde colossal das matas, o colorido de uma nova vida e o clima aconchegante, tudo parecia ser e é até hoje como se novamente minha existência fosse premiada com nova chance. Uma nova e auspiciosa chance de bem viver, sem medos e sem atitudes impensadas de uma população orquestrada. Por isto mesmo é que adoro esta terra. Este é o meu país! Sertão nordestino? Nem mesmo a passeio! Picos, nunca mais!
Jeovah de Moura Nunes
Jornalista e escritor
jeovahmnunes@hotmail.com
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