Pare de fumar, Alice, ordenava o marido, mal humorado.
Fumo quanto quiser, retrucou a mulher, caminhando para a janela aberta.
Odeio fumaça de cigarro, continuou o homem.
´Tô cheio de você, de todo o mundo!
Você é muito ingrata, isso sim, concluiu o marido.
Alice acendeu o cigarro, olhou pela janela e deu uma baforada. Pensou consigo mesma:
por que tudo dá errado pra mim?
Ouvia a vizinha gritando com o filho, um enorme caminhão subindo a rua, cães latindo, vozes de rádio; sua cabeça doía, suas pernas formigavam. Um enorme rato correu junto ao muro, em direção dos fundos do quintal. Alice jogou a bituca e acendeu outro cigarro. Sentia-se o pior dos seres humanos. O marido, com aquele ar despreocupado e sorriso zombeteiro, deixava-a transtornada. Não tinha vontade de reclamar, de exigir, de protestar. Desejava apenas alimentar-se do próprio veneno. A vizinha continuava a gritar com o filho e com o marido. Mas, isso não tinha importância. A vida era uma loucura, o amor, um punhal que servia para perfurar, para dilacerar.
Alice queria se revoltar, procurar forças para jogar tudo para o alto, bater na cara do marido e xingar a vizinha que só reclamava da vida. Mas, não, permanecia calada e olhando pela janela. Pensou na mãe, naquilo que chamam de família. Não seria ingênua de acreditar em ajuda de família. Era adulta e, se enfrentava problemas, os outros também estariam enrolados em seus próprios problemas. Sua irmã a chamava de desmiolada, seu irmão a considerava uma puta. Definitivamente, família era para se manter distante.
O marido levantou do sofá e foi para a cozinha procurar comida. Alice ouviu-o abrindo panelas e batendo pratos. Lembrou que casara para deixar de ser mal afamada, para conquistar respeito da família e da vizinhança. Quanta ingenuidade!
Afastou-se da janela e foi ao quarto, abriu o guarda-roupa e retirou algumas peças de vestidos, calças e blusas. Pegou a mala, jogou tudo dentro, e saiu para a rua. Trancou a porta, jogou a chave por baixo, e caminhou pela calçada mal iluminada. A noite estava quente e não soprava nenhum vento. As poucas luminárias públicas acesas lançavam luzes amarelas em círculos no meio da escuridão.
Alice não tinha pressa, nem sabia qual destino tomar. Apenas caminhava pela longa e solitária rua da meia-noite. De repente, ouviu passos atrás de si. Sentiu medo e andou mais depressa. Quase corria, mas o estranho ruído de passos apressados continuava. O pavor foi tomando conta de seu corpo. A mala começou a pesar, suas pernas tremiam, e, os passos atrás de si, persistiam. Não tinha coragem de voltar a cabeça e olhar. Queria correr, mas, não tinha forças.
Um gato malhado saltou a sua frente, pulou o muro do outro lado e desaparece na escuridão. O susto acelerou ainda mais o coração palpitante. Estava ofegante. Ao chegar à avenida, viu, do outro lado, uma porta de bar aberta, viu luzes e ouviu vozes. Atravessou sem perceber que um carro se aproximava em alta velocidade. Ruído de pneus travados, faróis piscando e uma pancada seca. O corpo voou no ar, deu uma volta sobre si mesmo e estatelou no chão, imóvel. Logo,curiosos se aproximaram, janelas foram abertas e rostos surgiram com olhos compridos. Mais tarde, ouvia-se as sirenes da ambulância, afastando.
No dia seguinte, no chão frio do asfalto da avenida, amanheceu apenas uma mancha vermelha.