O dia vem e rouba um arrepio sem dar aviso – o segredo desse despertar só a manhã o sabe.
E dão-lhe ganas de se beliscar miudinho, sulcar fundo a pele, arrancar tufos de pêlos do próprio braço com força, romper microgotículas de sangue sob os poros. O que lhe sobe à maçã das bochechas, este é um sangue denso e viscoso, comburente do juízo.
Sem esperança de um desvio de seta, o alvo jaz, certo à fúria e certeiro ao furor. Risadinhas marotas lhe esticam os nervos, num dedilhar de cordas de violão. Só ele conhece seus códigos de raiva fincados no sabugo das unhas. Ribomba o barulho surdo do oco das costas oferecidas ao murro rouco. Longe, grita-lhe o socorro à sombra de uma sequóia: "Pára!"
Quebra-se o ritmo, e uma escuridão imensurável apaga o sol. Momentos irrompem de um rosário de lamentos e uivos, rolando mistérios chorosos pelo chão de pedra, conta a conta. Nesse vácuo, assobia o perigo. Enlouquecer ele não vai, já que ao pé da sequóia amontoa-se boa grama para tais descansos. Mas as imagens vão-se jungindo em seqüências absurdas, compondo mosaicos ao sabor de angústias. Ele então visualiza o esqueleto de seu problema, um gigantesco fluxograma de cenas, cenários e costumes ordenados em fila, peões de uniforme, mãos dadas, numa monocórdia cantilena. Em um que outro ponto, vicejam esperanças, pais-nossos insistentes a espoucar bolhas de sabão.
A copa da árvore é generosa e sobranceira. Ele, à solitude, sabe que acima desse manto verde, há um céu de um azul acintoso onde rolam nuvens brancas em finos lençóis de papel cuchê. O céu é para se lembrar de que há sempre mais um e mais outro céu por alcançar. Mais arrivista seja, tanto mais e mais céu. Extenso, infindo, sobre-humano, o céu sobre a cabeça. Felizes os que apenas vislumbram um só céu cor de anil, bem ao gosto das paisagens estampadas em cadernos escolares! Esses, sim, têm a vida em pleno gozo.
Ele: essa mania de sublimação. Toda e qualquer paisagem é algum quadro, e o que há por baixo da água de um rio pacífico e senhoril, além de pedras, grumos e limbos, pode ser tanta coisa... haverá um brinco, de ouro, em forma de coração, escondido num nicho de pedras anciãs. Ai, e o desespero da moça que apunhala a cena quando joga os cabelos para trás após o mergulho de sereia, nesse gesto esquecido. Insuflada de vida, a unha sua desatarraxa a jóia à revelia do querer da moça! Pois não é afinal a moça a assassina. Pobre, teria gritado, mas o som de seu lamento, reprimiram-no as águas. No fim o coraçãozinho dourado, sem nenhum peso, entrincheira-se no nicho materno entre as pedras negras, lá no fundo do rio. O pé da moça tenta vasculhar o rastilho de água, em vão, ingenuidade a que todos, inegavelmente, se submetem. O barulho do brinco: pluft! E seu trajeto até o fundo.
Acima da copa, o mais azulado dos azuis. Na linha imaginária paralela à figura sua, a visão estupenda do par de tênis velhos, bons cúmplices do chulé inebriante do quarto trancado a chave. No escuro, entre quatro paredes, qualquer música soa mais nítida e qualquer sonho é sepultado com galas.
De fato, o caminho do céu, conhecem-no de cor os urubus. Meus pés o que sabem é pegar fogo, exalar seu odor e colecionar calos. E eu sou um grande coração cercado de dúvidas por todos os olhos.