Existe uma oração que diz coisas do tipo “Obrigado, meu deus, por eu ter duas pernas enquanto muitos não podem andar; obrigado, meu deus, por eu ter dois olhos enquanto muitos não podem ver...” e por aí vai. Os religiosos devem conhecer bem e com certeza muitos a sabem de cor. É uma oração famosa, imagino, já a ouvi até musicada. O nome da tal oração eu não sei, não me lembro; assim como não sei o nome de todas as muitas orações do mesmo tipo que já li, já ouvi e já recebi muitas vezes pela internet em formato pps, com música clássica e até com canto gregoriano adicionado. Não sei seus nomes, nem presto muita atenção a eles porque tenho um nome genérico para todas, um nome que para mim soa muito mais adequado: ORAÇÃO DO FILHO DA PUTA.
Na minha cabeça não cabe esse conceito religioso de agradecer a deus por algo que tenho, que é básico e que sei que milhões de pessoas no mundo não têm. Não posso, não sei, não consigo agradecer a deus por ter, por exemplo, um teto sobre minha cabeça enquanto milhões de pessoas no mundo todo, muitas delas aqui mesmo na minha cidade, não têm onde morar e dormem pelas calçadas. Não sei, não posso, não consigo agradecer a deus por ter um casaco, um cobertor, uma cama, enquanto milhões de pessoas no mundo morrem de frio todo inverno. Não consigo, não posso, não sei agradecer a deus por poder escolher entre almoçar carne ou peixe enquanto milhões de pessoas no mundo morrem de fome...
Isso é algo que eu não entendo e não entendo mesmo! Como pode alguém pensar, sequer pensar, em agradecer pela desgraça alheia? Sim pois, para mim, se agradeço pelo que tenho e milhões não têm, estou agradecendo por milhões não terem. Em que sou eu superior a milhões de pessoas para me sentir no direito de ter o que esses milhões não têm? Que direito eu tenho de me achar melhor do uma criança que morre de fome? Que direito eu tenho de me achar melhor do que uma mulher que vê seu filho morrendo sem poder ajudar? Que direito eu tenho de me achar melhor do que um pobre que morre de frio? Por que então devo agradecer a deus por dar a mim o que não deu a todos?????
Não, decididamente não posso fazer a oração do filho da puta e me sentir bem com isso, não posso dizer que deus é bom, acreditar que Jesus me ama e ler como verdades todas aquelas frasezinhas clichês que os religiosos dizem, colam como adesivo nos carros e estampam nas camisetas. Quando leio aquela que está pregada em muitos carros que passam por mim: “Deus é fiel”, não consigo deixar de perguntar: Fiel a quem? Fiel a quê? Como professora de português, sei que falta um complemento nominal aí, qual é ele? E mais, quase sempre dou uma risadinha por dentro e digo outra frase que ouvi não sei onde: “Fiel é nome de cachorro.”
O que sinto por saber que tenho teto enquanto muitos não têm, que tenho agasalho enquanto muitos não têm, que tenho comida enquanto muitos não têm, que tenho saúde enquanto muitos não têm, é raiva! Sinto raiva, não alegria, não agradecimento; sinto raiva. Raiva de o ser humano ser esse bicho nojento que acumula bens e deixa que outros seres humanos morram sem nada, raiva de o ser humano ser esse bicho nojento que consegue roubar de quem não tem nada e sentir-se superior àqueles de quem ele rouba, raiva de o ser humano ser esse bicho nojento que consegue matar outro ser vivo por lucro, por fama, por poder e até por esporte. Sinto muita raiva de o ser humano ser esse bicho nojento, e sinto vergonha de pertencer a essa raça, de ser eu também um bicho nojento.
E por causa dessa raiva, para não estender essa raiva a deus, que me dizem ser o responsável, o criador dessa raça nojenta à qual pertenço, prefiro acreditar que deus não existe. Que não existe um ser tão horrível a ponto de criar esse circo de horrores que é a vida, esse palco de morte que é a natureza, esse poço escuro e tenebroso que é a alma humana, alma que o homem acredita perfeita, que o faz capaz de se sentir bom, nobre e perfeito enquanto mata, prende, subjuga, devora.