Uma parte do Brasil se envolveu na discussão em torno da saia de uma moça. Manchetes no noticiário, discussões na internet. Entidades se levantaram para discutir a expulsão da aluna da Uniban, em S. Bernardo, e autoridades vieram a público se manifestar.
Só o clero mantém silêncio. Chaves ainda não disse se a Uniban deve ser estatizada. Quanto à revista Playboy, não se sabe se já fez contato com a aluna. Mas em Brasília um grupo de estudantes se manifestou em completa nudez.
Tudo isso é democrático, está no direito de livre expressão e pode significar engajamento em discussões atuais. Se houve discriminação contra roupa curta, hostilidades sem motivo, autoritarismo da administração ou outra impropriedade, nas esferas próprias isso se resolve.
Agora, quando nós damos as costas à discussão dos projetos nacionais para debater atritos escolares isolados e rixas do gênero, algo de errado deve haver com a gente.
O consolo é que nem todos embarcam nessa canoa. A secretária aqui de casa, por exemplo, ao ver as novas notícias sobre o caso, desligou o aspirador de pó e, do fundo de sua franqueza em estado bruto, disparou para o meu lado:
- Por que tanta gente tá se doendo pelo rebolado dessa guria, patrão?
- Não, não é bem assim, Maria - comecei a explicar. Mas ela não quis me ouvir:
- Quando a escola está aos pedaços ou não tem vaga pros meninos eles fazem esse protesto? E quando morre alguém sem atendimento no hospital, o que eles fazem? Já saiu alguém pelado na rua prá protestar contra o preço do gás e da passagem?
Bem, não vou contar aqui tudo que Maria buzinou no meu ouvido nessa tarde. Vou apenas resumir: compreendi a indignação, embora não concorde com o extremismo de sua interpretação.
Não só compreendi, como fui mais longe com algumas reflexões. Vejam só. Outro dia um coitado faminto matou um tatu para comer e foi condenado pela Justiça. Alguém se doeu por ele? Toda semana, um doido ao volante atropela dúzias de pessoas e no dia seguinte está solto para sempre.
E os presídios? Aos cacos, com detentos trancados em container de aço por falta de celas... Você viu algum movimento exigindo investimentos maciços no sistema prisional? Acabam de ser criados 8 mil cargos de vereadores (leiam-se "cabos eleitorais") no Brasil, a um custo altíssimo para os contribuintes. Quem brigou para impedir? No ranking internacional da qualidade de ensino, o Brasil patina lá embaixo e nada indica que vá melhorar muito a médio prazo. Mas quantos grupos estudantis se mobilizam contra isso? O Projeto da Ficha Limpa encalhou no Congresso. Você viu alguma revoada contra a má-vontade de parlamentares em aprovar o projeto? Ou seja, tudo que até agora se gritou por esse projeto parece ficar do tamanho da saia da aluna quando em torno dela se vê um clamor maior que os escandalosos orçamentos do Congresso.
Vamos adiante. O Brasil está emprestando R$ 10 bilhões ao FMI. Mas a devolução do nosso Imposto de Renda atrasa e quase fica para o ano seguinte. Sim, é possível emprestar R$ 10 bilhões ao FMI, mas não é possível consertar os 70% das rodovias brasileiras que continuam em mau estado de conservação. Eu sei, pode não existir vinculação contábil entre uma coisa e outra, mas a relação política não só existe como é óbvia. Alguma entidade fez pressões públicas contra isso? O abastecimento de energia elétrica no futuro é uma interrogação que manda recados com apagões como o mais recente, em 18 estados. Os investimentos em segurança pública não vão além de minguado 1% do PIB (sim, você leu "um por cento"). Quem está se lixando? As grandes reformas não andam, mas nos contentamos em reformar o estatuto da Uniban. O sistema eleitoral é capenga, mas preferimos debater o episódio interno da Universidade. O sistema tributário é perverso e muitos concluem que a solução é sonegar. A legislação penal é brincadeira, então mandamos blindar o carro. Quem ou quais entidades entram na briga das grandes questões nacionais? Algum grupo se despiu em público para chamar a atenção para algo realmente importante? Aliás, nem deveria, pois exibir a genitália em público é tão inútil e indecente quanto a carreira dos políticos que se quer ejetar.
Quando a gente olha para tudo isso, fica difícil entender quais são as idéias e os interesses que habitam a cabeça de tantas lideranças e da grande maioria dos jovens. Tentemos esquecer a hipótese de que não conseguem enxergar além de vestidos e coxas. Então, fica uma pergunta: será que o debate nacional está viciado por hábitos de mídia, ditados pelo Ibope?
Quando se pensa objetivamente nesse quadro crônico de desvios e contradições, não dá mesmo para tirar conclusão muito diferente daquela que Maria rasgou sem meias-palavras no meio das palavras que eu tentava lhe dizer.
- Patrão, nós aqui no Brasil preferimos discutir só miudeza. E a iniciativa que temos é só prá participar de Big Brother. É por isso que as coisas estão assim. Os políticos abusam porque a gente deixa. A gente se ocupa demais com quireras e intrigas e ninguém entra em ação para consertar o que é importante...