“A alma não se separa do corpo nem na vida, nem na morte e nem depois da morte”.
Entrevista especial com Renold Blank
O dia 02 de novembro é conhecido como o Dia de Finados. Um dia, segundo o professor Renold Blank, importante para que possamos rezar e orar para que os mortos possam fazer a conversão de dimensão de uma maneira muito mais fácil e menos dolorosa. Segundo ele, que concedeu entrevista por telefone à IHU On-Line, “a partir da física quântica, nós temos modelos que dizem que a vida simplesmente não pode parar, nem pode ser aniquilada de tal maneira que se acredita que não há algo depois da morte. Existem modelos quânticos que dizem que algo deve continuar”. Nesta conversa, o professor Blank explicou a questão dos diferentes rituais que sinalizam a morte, o sentido de celebrar a data de finados e como a morte é tratada no primeiro e segundo Testamentos. Além disso, comenta a questão de que se há ou não vida ou algo do gênero após a morte. “Em termos simples, na morte a alma não pode se separar do corpo; isso é impossível. Isso é provado cientificamente pela neurobiologia e pela ciência antropológica. Então, se a alma não pode se separar do corpo, não há reencarnação”, afirmou.
Renold Blank é licenciado em Letras, pela Universidade de Fribourg, na França, e em Filosofia, pelas Faculdades Associadas Ipiranga. É graduado em Teologia, pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. Sra. da Assunção. Obteve na Universidade de Fribourg o título de mestre em Teologia. É também doutor em Teologia Dogmática, pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. Sra. da Assunção, onde hoje é professor. Atua também como professor no Instituto Teológico de São Paulo, no Instituto Teológico Pio XI, no Instituto Padre Quevedo de Parapsicologia de São Paulo e na Pontifícia Universidade Católica de Campinas. É autor de Deus na história: centros temáticos da revelação (São Paulo: Paulinas, 2005), Consuelo para quien está de luto (Bogotá: Paulinas, 2006) e Ovelhas ou protagonistas? A igreja e a nova autonomia do laicato no século 21 (São Paulo: Paulus, 2006), entre outras obras. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que as diferentes etnias e religiões têm diversos rituais para sinalizar a morte?
Renold Blank – Nós temos diferenças entre religiões que acreditam numa vida após a morte. Há, também, concepções que, de uma ou outra maneira, não acreditam nisso. Quando olhamos para a maioria das religiões, de uma ou de outra maneira, elas acreditam na vida após a morte. Então, a grande questão é como será essa vida. Envolvendo esta questão, há, claro, uma imensidão de questionamentos e, no fundo, todas as concepções giram em torno da pergunta: será que, depois da vida, a vida nova é uma coisa melhor ou será que não? E ainda, dentro da mesma questão: será que a vida depois da morte é melhor ou pior do que a vida que vivemos agora? A religião cristã tem essa mensagem de que Deus está agindo de uma maneira bem específica. Ele ressuscita as pessoas, e essa ressurreição pode possibilitar uma vida bem melhor. Esta concepção hoje, em nosso país, se contrapõe, de certa maneira, à concepção do espiritismo, que não fala em ressurreição, mas sim de reencarnação. A diferença é na concepção da religião cristã: a pessoa vive uma única vida aqui na Terra e depois entra por outra maneira de ser. Deus, por sua vez, ressuscita a pessoa para que ela viva em outras dimensões outra maneira de ser. A concepção do espiritismo, por outro lado, diz que a pessoa depois dessa vida tem de viver outras vidas humanas, dentro de outro contexto social histórico no decorrer do qual pode limpar o seu carma e evoluir. Aqui está a diferença fundamental.
IHU On-Line – Qual é o sentido cristão de celebrar a festa dos Fiéis Defuntos?
Renold Blank – Atrás desse costume, há a seguinte convicção: a pessoa quando morre se encontra com Deus. A pessoa que se encontra com Deus não é uma pessoa totalmente transformada, de tal maneira que ela vire outra pessoa. Isto é, ela continua sendo a mesma pessoa. Assim, podemos dizer que a pessoa que se encontra com Deus na morte tem aquela personalidade, aquele caráter que formou de si no decorrer da sua vida. Então, surge a seguinte questão: em que medida essa personalidade que a pessoa formou em vida corresponde aos parâmetros de Deus, e em que medida ela corresponde aos critérios que são importantes para Deus. Algumas correspondem mais e outras menos. E, então, vem uma concepção que é importante, sobretudo na Igreja Católica, que diz que na morte a pessoa recebe de Deus uma última oportunidade de adaptar a sua personalidade aos parâmetros de Deus. Essa última oportunidade tem um nome hoje muito mal compreendido: purgatório. A idéia verdadeira de purgatório é que a pessoa na morte pode passar por uma evolução. Esta evolução, dependendo da personalidade formada, pode ser mais difícil ou menos difícil, mais dolorosa ou menos dolorosa. Agora, o que se pode fazer ainda para pessoas que morreram, através de orações, cultos, missas, é prestar uma ajuda aos defuntos para eles e elas realizarem essa conversão de uma maneira mais fácil. Esta é a base para todos esses cultos aos defuntos, como esses que acontecem no Dia de Finados.
IHU On-Line – Existe uma diferença entre a concepção de morte no Primeiro e Segundo Testamento?
Renold Blank – Sim. No segundo Testamento, há uma clara convicção de que Deus ressuscita os mortos. E Deus ressuscita todos transformando numa nova maneira de ser. Então, o ser humano pode decidir se entra nesse caminho de corresponder aos critérios de Deus ou não aceitar. Não aceitando, existe uma outra possibilidade que se convencionou chamar de inferno. No Antigo Testamento, podemos observar uma evolução. A idéia inicial é simplesmente esta: Deus dá a vida e, num certo momento, a tira. A pessoa vive e depois morre, e ponto final: não há nada depois da morte. Esse era o primeiro passo. Na evolução, há um segundo passo que diz o seguinte: Deus é um Deus da vida, e é mais forte do que a morte. Não é que Deus seja capaz de fazer continuar a vida dessas pessoas que Ele criou. A partir daí, veio a idéia de que Deus pode ressuscitar os justos. Os injustos, os ímpios simplesmente, cairão no esquecimento. Por outro lado, Deus irá ressuscitar os justos para uma vida junto com Ele. Esse é o segundo passo. Em seguida, vem o terceiro passo, que consiste na idéia de que Deus irá ressuscitar a todos, alguns para o inferno, outros para a vida eterna. Com isso, depois temos a complementação de tudo isso na formação de uma crença na ressurreição. Essa crença se forma no segundo século antes de Jesus Cristo. Ela, no fundo, alcança sua confirmação só com Jesus, quando Deus ressuscita Jesus e confirma de maneira visível essa crença.
IHU On-Line – O que há depois da vida é uma pergunta que tem acompanhado a humanidade ao longo da sua história. Em diálogo com os modernos modelos filosóficos e científicos, como a teologia cristã busca responder hoje a esta pergunta?
Renold Blank – Nos últimos vinte, trinta anos, sobretudo a partir da física quântica, nós temos modelos que dizem que a vida simplesmente não pode parar, nem pode ser aniquilada de tal maneira que se acredita que não há algo depois da morte. Existem modelos quânticos que dizem que algo deve continuar. Há também a questão, dentro da física, da termodinâmica, que diz que a energia não pode ser destruída e que o ser humano é um potencial energético. Então, alguma coisa desse potencial deve continuar. Tudo isso são tentativas de a física dizer se há algo depois da morte. Agora, dentro da religião cristã, de maneira específica na Igreja Católica, no fundo, não se entra muito nesta questão científica. A única coisa que constatamos é que existe a pergunta: haverá vida após a morte? E essa declaração cada vez menos contradiz aquilo que a ciência atual pode dizer. Isso é uma coisa boa porque ainda no início do século XIX se dizia que a ciência falava em algo totalmente contrário àquilo que a religião diz. Hoje, constatamos o contrário: a afirmação religiosa e modelos da ciência estão se aproximando.
IHU On-Line – É grande o número de cristãos(ãs) brasileiros(as) que em busca de uma resposta à morte aproximam-se do Espiritismo. A que se deve isso?
Renold Blank – Pois é. Realmente o número é relativamente grande daqueles que buscam no espiritismo a resposta, principalmente no que diz respeito à doutrina da reencarnação. O que causa isso? Primeiro, a doutrina da reencarnação aceita que a pessoa irá evoluir através de outra vivência e esta concepção, à primeira vista, parece muito lógica, mais compreensível do que a idéia da ressurreição. Este parecer, porém, se torna problemático a partir do momento em que se começa a questionar as bases da concepção. A maioria dos cristãos e das cristãs não conhece essas bases. Na base da concepção da reencarnação, há a idéia do dualismo antropológico e de que o ser humano é o princípio de um "material corpo" e um princípio "espiritual alma", e na morte a alma se separa do corpo. Durante séculos, nas religiões cristãs, se dizia a mesma coisa e, depois, sobretudo no catolicismo, observamos uma imensa evolução. Desde o fim dos anos 1960, a ciência, sobretudo a psiquiatria, mostra cada vez mais claro que o ser humano não é tão simples, tão rudimentar, um compósito de dois componentes que na morte se separam. O ser humano, pelo contrário, é uma estrutura muito mais complexa, de muitas dimensões e nenhuma delas pode separar-se da outra. Em termos simples, na morte, a alma não pode se separar do corpo; isso é impossível e provado cientificamente pela neurobiologia e pela ciência antropológica. Então, se a alma não pode se separar do corpo, não há reencarnação. Mas este fato a maioria dos cristãos não sabe. Por causa disso, sobretudo na Igreja Católica, já se começou um grande trabalho para superar esse dualismo antropológico, para mostrar aos fiéis que a alma não se separa do corpo nem na vida, nem na morte e nem depois da morte.
IHU On-Line – Como o Segundo Testamento ilumina o sentido da vida após a morte?
Renold Blank – A idéia formulada acerca do céu gera uma questão: como imaginar esse céu, como é este sentido da vida numa dimensão que chamamos de céu? A descrição mais curta pode ser formulada assim: a idéia da religião cristã é que depois da morte, numa dimensão chamada céu, a pessoa irá alcançar a plenitude daquilo que é vida. Quando nós olhamos nossa vida agora, não temos plenitude de vida. Isso porque somos limitados de todos os lados, somos marcados por tantas imperfeições, e assim por diante. Ninguém vive uma vida plena. Agora, a idéia é que Deus quer para todas as pessoas uma vida em plenitude, ou seja, toda pessoa pode ser ela mesma, sendo capaz de desenvolver todas as suas potencialidades e viver uma plena comunhão e participação com todos os seres humanos. Desse modo, todo homem pode viver uma plena comunhão e participação com Deus. No centro dessas ações, haveria o amor em plenitude, de tal maneira que a pessoa, enfim, se tornaria totalmente feliz.
IHU On-Line – A noção de espaço está sendo modificada pela compreensão pós-moderna. Como pode contribuir a escatologia cristã para ressignificar a realidade da morte e da vida?
Renold Blank – A ciência mostrou uma coisa: quando este cosmos começou a 13,4 bilhões de anos, começou a matéria, o tempo e o espaço. Agora, enquanto vivemos dentro deste cosmos, nós damos sujeito a essas leis e dimensões espaciais. Quer dizer, somos seres ligados ao espaço em três dimensões. Temos um corpo, vivemos num mundo corporal, estamos em torno de outros corpos, e assim por diante. Agora, a idéia da ciência é que fora do cosmos não há tempo ou espaço e esta idéia se interliga com a concepção teológica de que para Deus não há tempo e espaço. Deus também não está sujeito ao espaço, Ele não está sujeito às limitações espaciais, nem está sujeito às dimensões espaciais etc. No entanto, o ser humano enfrenta a morte. Quando ele “entra” na morte, entra naquela dimensão da existência de Deus e nesta dimensão em que espaço e tempo não existem. De tal maneira que, com a morte, a pessoa sai da sua ligação com as dimensões espaciais e, com isso, de todas as suas limitações a que se encontra ligada agora. Não existe, por exemplo, distância, nem necessidade de viajar de um lugar para o outro, ou todas aquelas dimensões de espaço. Isso significa que a maneira de ser da pessoa irá mudar fundamentalmente. Isso porque a nossa maneira de ser agora é ligada à dimensão de espaço e de tempo. Agora como isso irá acontecer? Isso eu já não sei.