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Artigos-->A GENTE MORREU, PAPAI? -- 04/09/2010 - 10:06 (Jeovah de Moura Nunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A GENTE MORREU PAPAI?





Vez por outra vem-me à lembrança de minha chegada ao Estado de São Paulo na cidade de São Simão, numa madrugada friorenta em junho de 1953. O frio era tão intenso que acabou rachando as pernas de meu mano Jales de quatro anos, hoje um ótimo advogado em Itapevi na Grande São Paulo.

-Isto é o São Paulo que tu me prometeste? – ouvi de minha mãe na pequena estação ferroviária totalmente vazia e silenciosa.



Meu pai nada disse. Ele mesmo se mostrava surpreso. Perambulou por toda estação. Conversou com um vigia semiacordado e ficou sabendo que teríamos de esperar o raiar do dia. Eram três horas da madrugada. O frio nos forçava a ficarmos juntos, mesmo porque nossas roupas nordestinas de nada serviam. Não estávamos preparados para o novo clima e sofríamos intensamente. A cada hora passada no rumo do alvorecer mais esfriava. Quase não sentia meus pés. Os pequeninos buscavam no choro a resposta que não vinha. Éramos oito pessoas desorientadas, perdidas numa estação de trem de uma cidadezinha pacata no interior do Estado de São Paulo: meu pai, minha mãe, a Xica (nossa inesquecível empregada) minha irmã a Nainha, o Jales, o Beto, o Douglas e eu. Das crianças os mais velhos eram eu com oito anos e minha irmã com dez.



Clareado o dia meu pai desapareceu. Ficou a manhã toda sumido. Minha mãe sofria calada, tanto o frio como posteriormente a fome veio também nos visitar. Eram duas da tarde quando meu pai apareceu todo satisfeito. Havia localizado uma casinha de quatro cômodos fora da cidade. Lá fomos nós, família nordestina, numa procissão estranha naquela cidade. O povo olhava-nos curioso. Éramos sem dúvida os primeiros nordestinos a aparecerem por aquelas bandas. Atrás de nós vinha uma carroça contratada pelo meu pai, carregada de malas, trouxas e um tipo de malão que a gente chamava de baú. Minha mãe pegou carona na carroça com os menores e segurava o Douglas, que ainda mamava no peito. Lá pelas sete da noite estávamos instalados na casa. Era uma casa simples. Chão de tijolo. Foi construída como um quadrado, no qual se dividiu com duas paredes em cruz. Os quatros cômodos eram interligados por pequenas portas: os dois quartos, a sala e a cozinha, onde havia o fogão à lenha. O banheiro ficava do lado de fora e era um pequeno cercado sem teto em volta de uma fossa. Era usado também por outra família que morava em outra casinha igual a nossa. As dez da noite fomos servidos finalmente pela minha mãe: uma saborosa polenta com torresmo. Não podíamos repetir o prato porque senão alguém ficaria sem comer. Não demorou muito e o sono bateu forte. Procurei meu canto já preparado por minha mãe e desfaleci.



No dia seguinte sentia-me bem melhor, apesar das dores lombares e o cansaço da longa jornada de treze dias do Piauí até aquele lugar no interior paulista. A vida ressurgia para mim de maneira fenomenal. Pela primeira vez notava com surpresa o campo, a vegetação exuberante, os pássaros em profusão, as baixadas verdejantes seguindo o curso de um córrego, os bois, um mais gordo que o outro nas invernadas de puro verde brilhante, em face do orvalho. Era uma surpresa reparar a falta de locais secos, a falta do mandacaru em meio às pedras milenares dos tabuleiros. A ausência de montanhas avermelhadas e picos com as profundas marcas d’água. Tudo era verde neste grande Estado dos paulistas. Findava em minha vida a secura dos desertos e a paisagem dolorosa das planícies e dos cerrados. O sertão iria agora desaparecer de minha alma diante daquele verde pujante, cheio de vida. Meus ouvidos se deliciavam com o rumoroso canto da passarada e perguntei ao meu pai:



-A gente morreu papai?

-Não filho, não morremos! Mas, por que pergunta?

-Porque aqui parece o céu!



Meu pai sorriu e naquele sorriso desenhado só para mim acabei por vislumbrar muitos anos depois, que ele fizera a coisa mais certa deste mundo ao abandonar definitivamente seu torrão natal, exatamente como fizeram os milhares e milhares de nordestinos. Mesmo sendo esse abandono uma fuga para nossa sobrevivência, em razão das perseguições políticas que sofremos em Picos – PI. Aquele paternal sorriso impregnou-se em meu cérebro. Era apenas um sorriso, mas era um sorriso que falou e fala ainda hoje todas as palavras, todas as respostas para a minha inocente pergunta e todas as esperanças num futuro ainda desconhecido naquele dia, mas que depois ficou provado que meu caro e querido pai estava totalmente certo, estava ele com toda a razão.



Jeovah de Moura Nunes

Jornalista e escritor, Autor de “Versos à Revelia” entre outros livros.











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