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Artigos-->ANÁLISE DO ROMANCE SÃO BERNARDO, DE GRACILIANO RA -- 31/05/2010 - 04:44 (ALZENIR M. A. RABELO MENDES) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
ANÁLISE DO ROMANCE SÃO BERNARDO, DE GRACILIANO RAMOS.



Por: Maria Alzenir Alves Rabelo Mendes; Maria José Cunha do Nascimento; Kátia Maria Oliveira Costa (Trabalho realizado durante a graduação em Letras, Língua Portuguesa e suas respectivas Literaturas (UFAC), sob a orientação da Profª Drª Olinda Batista Assmar).





INTRODUÇÃO



Na década de 30, em meio às transformações políticas e sociais por que passava o Brasil – com a crise cafeeira, a Revolução, a decadência das estruturas rurais do Nordeste – surge no cenário da Literatura Brasileira, um grupo de escritores nordestinos que se destaca por adotar a temática regional em seus romances. Graciliano Ramos fazia parte desse grupo de autores identificados como membros da “Geração de 30” do Modernismo brasileiro. Como os demais de sua época, ele explorou temas ligados a sua região de origem, o Nordeste, com ênfase no universo alagoano, como ocorre no romance de cunho histórico: Caetés. E em outros de temática social, como: Vidas Secas e São Bernardo. Nos quais, em especial em São Bernardo, não se prendendo somente a terra ou paisagem, Graciliano considerou também o homem e seus problemas existenciais, dentro de uma linha universalista que extrapola os modelos da narrativa regionalista, sem, em momento algum, desmerecê-la.

Graciliano Ramos nasceu em Quebrângulo, Alagoas, em 1892 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1953. Não chegou a cursar uma faculdade, mas tinha uma grande experiência de leitura. Iniciou-se no jornalismo em 1914, quando passou a trabalhar como revisor em jornais no Rio de Janeiro. Foi eleito prefeito de Palmeiras dos Índios, em 1927. Neste local, colhe dados para a elaboração de sua primeira obra de ficção, o romance Caetés, publicado somente em 1993. Firma-se na carreira literária em 1929, quando Frederico Schimidt, encantado com um de seus relatórios administrativos, convida-o a seguir sua inclinação de escritor. Renuncia ao cargo de prefeito em 1930, e transfere-se para Maceió, onde mantém contanto com Raquel de Queiroz, Jorge Amado e José Lins do Rego.

Ainda em 1930, Graciliano Ramos é nomeado para o cargo de Diretor da Imprensa Oficial do Estado de Alagoas, demitindo-se um ano depois. Retorna a Palmeiras dos Índios, refugia-se na Sacristia da Igreja matriz de Nossa Senhora do Amparo e escreve os primeiros capítulos do romance São Bernardo, concluído em 1932, e publicado dois anos depois.

Em 1933, uma grave doença fez com que Graciliano Ramos ficasse internado na Santa Casa de Maceió. Neste local, ele escreveu o conto O Relógio do Hospital, que posteriormente, em 1947, fará parte da obra Insônia.

O ano de 1936 é um dos mais marcantes na vida do escritor alagoano, pois é preso pela Polícia Política, que preparava o ambiente para a ditadura que se instalaria no país em 1937, com Getúlio Vargas e seu “Estado Novo”. Desta experiência dramática, resulta Memórias do Cárcere, publicado postumamente em 1953. É neste momento também, que surge sua terceira obra, o romance de cunho introspectivo, Angústia.

Libertado em 1937, é nomeado Inspetor Federal de Ensino e passa a residir no Rio de Janeiro, onde dá continuidade a sua vida de escritor. Em 1938, surge um de suas obras mais famosas, Vidas Secas, coletânea de contos, “costurados” entre si pelo espaço (o sertão) comum aos seres que compõem a narrativa (Fabiano e sua família), migrantes em busca permanente de um solo para trabalhar. Essa forma estruturação da obra representa uma inovação para o romance regionalista brasileiro, até então escrito nos moldes herdados do romance realista do século XIX.

A próxima obra só aparecerá em 1944, com a publicação de Histórias de Alexandre. E em 1945, data que coincide com o início da Segunda Guerra Mundial, temos a publicação de Infância, livro de memórias, que foge aos temas reivindicação social, embora publicado num período bastante conturbado para a humanidade.

Após a leitura do romance São Bernardo e dos textos de sustentação teórica para a análise do mesmo, resumimos a obra, considerando os fatos mais importantes na narrativa. Procedemos em seguida o levantamento dos personagens e suas funções, em relação ao personagem principal.

Esquematizamos o estudo em duas partes principais: o plano da narrativa e o plano do discurso. No primeiro plano, centralizamos o enfoque na apreensão do esquema da narração - exposição, enredo, clímax e desfecho; a estrutura da narrativa - personagens, foco narrativo, ação, espaço e tempo. No segundo plano, no do discurso, buscamos a compreensão da ideologia do autor, do ideário estético da obra, nos recursos de linguagem e na percepção da relação entre autor/texto/leitor.





2- ANÁLISE DO ROMANCE SÃO BERNARDO DE GRACILIANO RAMOS



2.1- Resumo de São Bernardo- Graciliano Ramos.



Paulo Honório narra sua história rememorando os principais fatos ocorridos em seus cinquenta anos de vida pelo Nordeste brasileiro. Criou-se sem saber quem foram seus pais e nem ao certo a data em que nasceu. Da infância, guarda lembranças somente da velha Margarida e de um cego que lhe puxava as orelhas. Trabalhou como braçal até os dezoitos anos, quando foi preso por esfaquear João Fagundes, por causa de Germana, sua namorada em quem João Fagundes ousou passar a mão no trazeiro. Na prisão, aprendeu a ler a Bíblia com Sapateiro. Após cumprir a pena, tirou o título de eleitor e arranjou dinheiro emprestado com um político agiota, seu Pereira. Paulo Honório iniciou-se nos negócios vendendo miudezas, redes e gado pelo sertão. Conseguiu juntar algum dinheiro e resolveu estabelecer-se no município de Viçosa, Alagoas, com intenções de adquirir a fazenda São Bernardo. Incentiva-lhe a cultivar a fazenda. Luís Padilha pede-lhe dinheiro emprestado para o empreendimento. Tendo vencido o prazo para o pagamento da dívida, Paulo Honório apodera-se da propriedade. Investe na policultura e avicultura. Após a morte do vizinho Mendonça, alarga a fronteira de suas terras. Vencidos os primeiros obstáculos, recebe considerações políticas e a visita do governador. Constrói uma escola e contrata Padilha como professor. A mando seu, a velha Margarida é trazida para a fazenda e fica sob seus cuidados. Estabilizado economicamente, projeta casar-se para ter um herdeiro. Conhece Madalena, professora vinda da Capital. Ele a convida a conhecer a fazenda. Em pouco tempo, casam-se. E Dona Glória, tia de Madalena, vai morar como os dois na fazenda São Bernardo. Oito dias depois do casamento, iniciam-se os conflitos entre o casal. Discutem por causa do salário do guarda-livro,seu Ribeiro, que Madalena diz que é pouco. Depois, por causa do modo como Paulo Honório trata Dona Glória e os empregados. Madalena engravida e passa a evitar discutir com ela. Após o nascimento do bebê, Paulo Honório começa a sentir ciúmes de Madalena com todos os homens com quem ela conversa. Reiniciam-se as discussões e os agravos contra ela intensificam-se. Madalena vai adoecendo aos poucos e termina por suicidar-se. Dona Glória e Seu Ribeiro vão embora, os amigos afastam-se, Padilha incorpora-se ao movimento revolucionário. O partido político de Paulo Honório é derrotado e recomeçam os conflitos por causa dos limites das terras da fazenda. Os créditos são cortados, os preços dos produtos caem. Paulo Honório tenta se reerguer, mas não tem motivação, resolve então escrever sua história de vida.





2.2- PLANO DA NARRATIVA



2.2.1- O Esquema da Narrativa (exposição, enredo, clímax e desenlace).



Graciliano Ramos compôs São Bernardo dentro de um esquema que se aproxima da estrutura fechada do romance tradicional, embora tenha sido escrito no período Modernista. Porém, galgou patamares das grandes obras de tendência universalista, por focalizar os dramas humanos, ainda que, em alguns momentos tenha feito uso de alguns estereótipos da escola Naturalista, no que tange à representação de seus personagens, em especial, daqueles que se encontram em condições desumanizadas, tratados mais como bichos do que como seres humanos.



Quanto à tipologia, podemos classificá-lo como um romance de personagem, que, segundo Aguiar e Silva (1973), caracteriza-se pela existência de uma personagem central, o qual obedece todo o desenvolvimento do romance, visto que a ação em São Bernardo é conduzida por Paulo Honório, narrador–personagem que impulsiona a narrativa e os fatos que a compõem.



O conteúdo do romance está dividido em 36 capítulos com apresentação, clímax e desfecho. No entanto, o autor utiliza uma técnica própria na apresentação, clímax e desfecho, bem como na apresentação dos personagens, os quais são mencionados de uma só demanda logo no capítulo 1, sem que tenhamos conhecimento quanto ao papel que desempenharão no decorrer da narrativa. Eis os principais: padre Silvestre, Arquides, João Nogueira, Azevedo Gondim, a velha Margarida, Maria das Dores e Costa Brito. Sabemos apenas que estas pessoas estão presentes, ou pelo menos, deveriam estar no momento da escrita do livro e que seriam colaboradores do narrador: “Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas, João Nogueira aceitou a pontuação...” (p.7).



No capítulo 2, somos informados da tentativa frustrada do narrador-autor, quanto à construção do livro e que ele resolve escrevê-lo sozinho depois de ouvir o pio da coruja. O mesmo pio que o fez estremecer e pensar em Madalena, ainda no capítulo 1.



A reação do narrador a este fato, associado à lembrança de Madalena nos dão indícios de que esta é uma personagem importante na história que ele pretende narrar. Estes dois capítulos funcionam como um prefácio, inseridos na narrativa, sem pormenores descritivos quanto aos personagens e ao espaço onde ocorre a ação.



Ao iniciarmos a leitura do capítulo 3, deparamo-nos com a apresentação do narrador-personagem: “ começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso oitenta e nove quilos e completei cinquenta anos pelo São Pedro...” (p. 12). Prossegue informando ao leitor sobre seus traços físicos e sobre episódio de sua infância e juventude; sobre seu objetivo de vida e seus empenhos alcançá-lo: “ ... planeei adquirir São Bernardo onde trabalhei no eito com salário de cinco tostões.” (p.15).



Até o capítulo 8, o assunto gira em torno do esforço do personagem principal para realizar seu projeto, isto é, a posse e a restauração de São Bernardo. Para isso, Paulo Honório usa de todos os recursos possíveis, sempre com a ajuda de Casimiro Lopes, que “é corajoso, laça, rasteja, tem faro de cão e fidelidade de cão” (p.15).



Os episódios que impulsionam a narrativa são: a negociata da fazenda com Luís Padilha; a disputa com o velho Mendonça por causa dos limites das terras; as dificuldade para o cultivo das mesmas; a busca pela velha Margarida (a única pessoa de quem Paulo Honório guardava boas lembranças da infância); o assassinato do Mendonça ; o encontro e a contratação de Seu Ribeiro; o progresso de Paulo Honório e a visita do governador à fazenda já restaurada.



No capítulo 9, um elemento novo é introduzido na narrativa “umas pernas e uns peitos...” (p.45), mas este elemento não vem sozinho: a construção da escola desvia a atenção do leitor que fica sabendo que a dona das “pernas e dos peitos” é uma jovem professora que se chama Madalena e é muito bonita. E Paulo Honório, mesmo precisando contratar alguém para lecionar em sua escola, não se interessa em conhecê-la, prefere contratar Luís Padilha.



Do capítulo 9 ao 15, vários assuntos são dispostos, misturados à entrada da personagem central feminina na estória: a questão com o Pereira (sobre terras e políticas); a chegada da velha Margarida na fazenda; o encontro de Paulo Honório com Madalena; a surra no jornalismo Costa Brito; os aborrecimentos com a polícia; enfim, a aproximação com Madalena e sua tia Glória.



Até o capítulo 14, a ação se desenrola rapidamente, mas a partir desse momento, o narrador se concentra em Madalena e empenha-se em adquiri-la como esposa, ou melhor como mãe do herdeiro de São Bernardo, conforme menciona no capítulo 11: “O que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de São Bernardo” (p.59)



A complicação inicia-se no capítulo 17, “oito dias depois do casamento” (p. 100) com um bate-boca por causa do salário de Seu Ribeiro que Madalena achou injusto, colocando-se em confronto com Paulo Honório.



No capítulo 19, o narrador suspende a narrativa, retorna ao presente e faz reflexões: “Conheci que Madalena era boa em demasia... A culpa foi minha... a culpa foi desta vida agreste que me deu uma alma agreste“(p. 101).



Retorna das lembranças e prossegue contando sua história: os desentendimento com Dona Glória, as despesas feitas de mau-gosto com a escola, por causa de Madalena, e a desforra no vaqueiro Marciano: “Mandei-lhe o braço ao pé do ouvido ... recebeu mais uns cinco trompaços ... ergueu-se trocando os passos limpando com a manga o nariz que escorria sangue. Em meio a esses atritos, Madalena engravida e Paulo Honório tenta evitar discussões (p. 113).



Mas a trégua dura pouco. Após o nascimento da criança, as coisas complicam-se mais ainda. Além dos desentendimentos por causa das diferença de temperamento, grau de instrução e objetivos de vida, surge o ciúme, associado à desconfiança de que Madalena era sua opositora: “Sim senhor, comunista! Eu construindo e ela desmanchando” (p. 130).



Além disso, entra a questão da religiosidade: “Qual seria a religião de Madalena?... Mulher sem religião é horrível... é capaz de tudo“(p.131). Conclui o capítulo 24 dizendo: “Misturei tudo ao materialismo e ao comunismo de Madalena – e comecei a sentir ciúmes “(p.132). Inicia o capítulo 25 reafirmando: “Comecei a sentir ciúmes “(idem).



O ciúme de Paulo Honório progride como uma psicose: “Atormentava-se a idéia de surpreendê-la. Comecei a mexer nas malas, nos livros, abri-lhe a correspondência... Madalena chorou, gritou, teve ataques de nervos...” (p.137).



A medida que aumenta a tensão vamos nos aproximando do desfecho. Do capítulo 26 ao 30, a situação se torna insustentável. Paulo Honório sente-se à beira da loucura: “Creio que estava malucando... não podia dormir, contava de um a cem até completar mil... trancava a porta, destrancava... tornava a trancar” (p.151-153). Enquanto Paulo Honório se consumia no seu ciúme, Madalena perdia as forças para suportar a pressão psicológica exercida em função disso.



O desfecho dá-se no capítulo 31, quando Paulo Honório encontra uma parte da carta em que Madalena despedia-se dele, mas a atribui a um amante. Pressiona-a, ela não reage. Retira-se e suicida-se. Seqüenciando vem o enterro, a saída de Dona Glória, Seu Ribeiro, Padilha e outros moradores. Enfim, a solidão de Paulo Honório e o reconhecimento de seus erros: “Estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente” (p.185).



A derrota vem em todos os sentidos: a perda da mulher, a derrota do partido político, o por afastamento dos amigos, prejuízos financeiros, e saldo, o desânimo. Resta a Paulo Honório fazer um registro de sua vida.





2.2.2- Estrutura da Narrativa (Segmentos e momentos).





A atitude determinada do personagem central de São Bernardo, Paulo Honório, logo nos dois primeiros capítulos do livro, indicam que todos os segmentos da narrativa estão relacionados a ele.



No primeiro segmento, deparamo-nos com sua audácia ao tentar escrever um livro dispensando a ajuda dos amigos, mesmo consciente de não ter habilidades para tal empreendimento: “ Iniciei a composição de repente, valendo-me dos meus próprios recursos e sem indagar se isto me traz vantagens direta ou indireta” (p.9-10).



No segundo segmento, que vai do capítulo 3 ao 8, estamos já em contato com a história que ele anunciou contar nos capítulos 1 e 2. E outra vez, Paulo Honório está empenhado em realizar um projeto: A aquisição da fazenda São Bernardo.



Agindo em harmonia com o perfil delineado nos primeiros capítulos, ele alcança seu objetivo: “Ninguém imaginará que, topando os obstáculos mencionados, eu haja procedido invariavelmente com segurança. E como sempre tive a intenção de possuir as terras de São Bernardo, considerei legítimas as ações que me levaram a obtê-las. Alcancei mais do que esperava...” (p.39). A esta altura, vivendo uma fase próspera, a atenção de Paulo Honório direciona-se para outro fim: O casamento, ou melhor, “um herdeiro para as terras de São Bernardo” (p.59).



Muitos fatos vão ocorrendo à sua volta, como: a construção da escola, a localização da velha Margarida, o aborrecimento com o jornalista Costa Brito, as eleições, a questão com o Pereira, sem que seu sentido se desvie desse novo fito. O trecho que segue mostra-nos como ele alia uma necessidade à sua aspiração de casar: “A questão com o Pereira estava dormindo no Cartório, esperando que o juiz de direito desse uma penada nos autos. João Nogueira [o advogado] disse-me uma tarde. Eu então ligando, o caso do Pereira aos predicados de D. Marcela [a filha do juiz], desci no dia seguinte à cidade, resolvido a visitar o Dr. Magalhães” (p.64).



No entanto, outra moça que se encontrava na casa do juiz Magalhães torna-se o alvo das atenções de Paulo Honório, que até então fazia planos de casar com D. Marcela: “Comparei as duas e a importância da minha visita teve uma redução de cinqüenta por cento... De repente conheci que estava querendo bem à pequena” (p.64-68).



Ao descobrir que a moça era professora, convidou-a para lecionar na escola que construíra na fazenda: “Madalena não se decidiu logo. E eu a pretexto de saber a resposta comecei a freqüentar a casinha da Canafístula “(p.87).



Com a mesma objetividade com que se apossou de São Bernardo e das terras à sua volta, apossa-se também de Madalena. No capítulo 17, vemos a consumação desse terceiro segmento: “Casou-nos o padre Silvestre...” (p. 94).



A fase se inicia com o casamento é cheia de conflitos. Paulo Honório não conhecia a personalidade da mulher com quem se casou. Não estava em seus planos que ela tivesse idéias e atitudes contrárias às suas. E além disso, vem o ciúme que torna a vida de Madalena um suplício, levando-a ao suicídio pouco tempo depois do nascimento do filho. Com esse acontecimento, chegamos ao quarto segmento da narrativa: O suicídio de Madalena.



Seguindo-se a este fato vem a fase de declínio, ou seja, o último segmento da narrativa. E é nesta fase que o personagem central projeta a escrita do livro em que contará a sua história.



Delimitados os cincos segmentos principais, podemos dividir a obra em três grandes momentos: 1- O desejo de ascensão econômica do personagem central (cap.3 ao 16): 2- A realização desse desejo (cap. 17 ao 31) e; 3- A derrocada, ou o retorno ao estado inicial (cap. 32 ao 36).



Do primeiro ao segundo momento, acompanhamos a trajetória de Paulo Honório em sua luta para vencer os obstáculos que se antepunham ao seu projeto de vida: adquirir bens materiais, até mesmo incluindo entre eles uma esposa (Cap. 3 ao 16).



Do segundo momento ao terceiro, presenciamos como ele, após alcançar seus alvos, os destrói por causa de sua atitude dominadora. Começando por tentar apropriar-se de Madalena como se ela fizesse parte do seu patrimônio, a quem não devia sequer satisfação por seus atos: “E não estou habituado a justificar-me... Está me ouvindo? Era o que faltava ...” (p.110).



Em sua prepotência, Paulo Honório não percebe que está conduzindo Madalena ao suicídio e ele mesmo à derrota, consumada no terceiro momento, quando fica viúvo, sem os amigos e sem estímulo para continuar cultivando a fazenda. Isto, se tomarmos como ponto de partida, apenas a história vivida pelo personagem principal, desde sua infância até a fase adulta.



Mas se levarmos em conta o conteúdo do livro inteiro temos outros dois momentos: o 1º momento é quando Paulo Honório projeta escrever um livro, e o 2º, é quando vencidas as dificuldades, concretiza seu objetivo com construção da narrativa, propriamente dita, da história de sua vida.





2.2.3- Estruturas Narrativas (personagens, foco narrativo, ação, espaço e tempo).





Já no final do século XIX, o romance passa por um processo de transformação e inevitavelmente as personagens sofrem o reflexo dessas mudanças. No lugar de personagens com caráter e genealogia bem definida, temos seres que retratam os transtornos éticos, ideológicos, políticos e sociais que marcam a fase de ascensão do Capitalismo.



Em São Bernardo, o grupo de personagens que compõe a história enquadra-se neste perfil, a começar pelo personagem principal, Paulo Honório, que sem ter quem o apresente, visto ser o narrador da própria história, vai aos poucos revelando-se por seu vocabulário ríspido e objetivo, para depois fazer o seu perfil físico: “... Peso oitenta e nove quilos, completei cinqüenta anos... sobrancelhas cerradas e grisalhas... rosto vermelho e cabeludo...” (p,12). Aspecto que caracteriza os homens de origem branca e conseqüentemente pertencente à classe dominadora, o que se confirma por suas próprias palavras: “... este rosto vermelho e cabeludo [barbado] têm-se rendido considerações...”(idem).



Ainda dentro desta visão, destacamos que a menção que o mesmo faz de seu peso e da cor de sua pele (corada), são restritos àqueles que usufruem de prestígio em função do seu poder aquisitivo. E Paulo Honório é consciente disso: “Quando me faltava essas qualidades a consideração era menor.” (idem), ou seja,quando era magro e pálido, logo pobre, não tinha prestígio.



Esse personagem, sem genealogia e sem mesmo saber ao certo a data do seu nascimento, encarna a figura do Capitalismo. Por isso, não estranhamos que as demais personagens estejam sob o seu jugo. Elas existem na obra na medida em que estão à serviço do seu senhor. A título de exemplo, temos Casimiro Lopes, que em momento algum da narrativa lhe é dada a palavra, nem ao menos “tinha opinião” (p.149), mas por sua subserviência acompanha o personagem central do começo ao fim do romance.



O vaqueiro Marciano também tem um papel semelhante ao de Casimiro Lopes: “fazer o que se manda” (p.110). Mas, por tentar se justificar diante do patrão é alvo de pancadarias: “... nenhum morador me havia falado de semelhante modo (...) Mandei-lhe o braço...” (p.108).



Padilha, o filho do ex-dono da fazenda São Bernardo, é o representante de uma classe em decadência, a dos senhores de engenho do Nordeste brasileiro – “... hoje que o engenho caiu, o gado dos vizinhos rebentou as porteiras, as casas são taperas...” (p.24). Ele confronta-se com um novo modo de extrair da terra sua riqueza, isto é, por meio de maquinários específicos e cultivo com técnicas importadas. Sem capital para investir na terra que herdara, cai nas mãos de Paulo Honório, ex-trabalhador braçal do velho sistema e que se transforma em representante de um novo modo de organização econômica rural: “Aos bancos solicitei empréstimos, ao governador comuniquei a instalação próxima de numerosas indústrias e pedi dispensa de imposto sobre os maquinismos que importasse (...) Iniciei a pomicultura e a avicultura... (p.33-40).



Concluídos seus projetos, Paulo Honório, mesmo considerando Padilha como “... tão miúdo, tão chato...” (p.50), o traz para a fazenda na condição de empregado, ou seja, a seu serviço. Pois, ao contratá-lo para alfabetizar os filhos de seus trabalhadores, tinha por alvo “trazer a benevolência do governador para certos favores...”(p.44).

Enfim, todos, seu Ribeiro, o advogado João Nogueira, o jornalista Azevedo Gondim e até mesmo o juiz Dr. Magalhães, submetem-se à sua vontade. E quem se opusesse receberia o mesmo tratamento que recebeu o jornalista Costa Brito por criticá-lo na Gazeta:”...dei-lhe um bando de chicotadas.” (p.73).



Percebe-se por esses fatos que estamos diante de um novo tipo de herói, ou melhor, de um protagonista que mais parece um vilão, que de tudo e de todos se apodera, sem considerar o efeito que seus atos produzem nos outros.



Tais atitudes aproximam-no do perfil do herói dostoievskiano, que busca a razão de ser, ou ter, e o valor da realidade circundante e da sua própria pessoa, através do que consegue adquirir. Destituído de espiritualidade, numa sociedade regida pelo materialismo capitalista que aguça a avareza dos homens, animalizando-os em relação aos outros.



Mesmo assim, esse homem exemplificado por Paulo Honório, é capaz de exteriorizar sentimentos comuns aos demais seres vivos quando se confrontam com situações de foro íntimo, que podem resultar em perdas não reparáveis por meio do dinheiro. Estes sentimentos se revelam no momento em que ele se depara com o elemento feminino, neste caso, sua esposa Madalena, que mesmo diante da brutalidade do marido, o faz perceber que ele não é senhor absoluto nem de si mesmo: “Ai eu peguei a xícara de café e amoleci” (p.105). Esta é a primeira manifestação de “fraqueza” de Paulo Honório diante de Madalena, é sobrepujada pelo ciúme: “Comecei a sentir ciúmes de Madalena” (p.132).



Diante da suspeita de que ela o tivesse traído, ele dá-se conta de que é gordo e tem as mãos endurecidas pelos calos, que não é tão superior aos outros. Entretudo é somente após o suicídio de Madalena que suas emoções se manifestam mais claramente: “... emoções indefinidas me agitam, inquietação terrível, desejo doido de voltar... Saudade? ... desespero, raiva, um peso enorme no coração... Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis, encolerizo-me, enterneço-me, bato na mesa, tenho vontade de chorar” (p.101-103).





Foco Narrativo, Ação, Espaço e Tempo





Escrito em primeira pessoa, São Bernardo, romance com narrador intradiegético, que participa dos fatos narrados, e autodiegético, que conta a própria história. Mesmo com as limitações comuns a um narrador em primeira pessoa, Paulo Honório, personagem principal, comporta-se quase ao nível de um narrador demiurgo, senhor soberano do que narra, assim como de tudo o que constrói. Ele tem plenos poderes sobre a narrativa e reafirma esta postura: “Reproduzo o que julgo interessante, suprimi diversas passagens, modifiquei outras... e não tenho o intuito de escrever conforme as regras” (p.77-78).



Sua atitude como escritor é a mesma que a do capitalista que tudo pode, mesmo consciente de que esteja cometendo erros: “tanto que vou cometer um erro... Vou dividir um capítulo em dois...”(p.78). E nesta postura de homem dominador altera os tempos e pessoas dos verbos como melhor lhe convém:”...encontrei em Maceió... Um velho... chamado Ribeiro... ouvi a sua história que aqui reproduzo, pondo os verbos na terceira pessoa...”(p.35)



Quanto à ação, torna-se necessário o reconhecimento do espaço para defini-la. Na obra em estudo, esta ocorre em Alagoas, no município de Viçosa. Mas somos informados pelo narrador de que não será dada ênfase aos detalhes do cenário: “Uma coisa omiti e que produziria bom efeito foi a paisagem...Efetivamente a minha narrativa dá idéia de uma palestra fora da terra”(p.78).



Isso ocorre porque para ele o mais importante é o relato sobre sua vida, deixando o espaço físico em segundo plano e sem menção de influência da natureza sobre o homem. Visto que a ênfase não é dada ao espaço exterior, quanto aos episódios de sua vida íntima, ou de seu conflito existencial, a ação predominante também não é exterior, permitindo-nos optar por espaço e ação interiores.



A ação exposta é trazida pela memória do narrador que recua e avança a narrativa no tempo, superpondo-o quando lhe convém, configurando-se assim um tempo psicológico paralelo ao cronológico.



Há momentos que temos a impressão de uma seqüência cronológica bem definida: “Fazia dois anos...”(p.124) ou “Nove horas no relógio da sacristia...”(p.159) e “Faz dois anos que Madalena morreu...”(p.179). Sem falar que a narração apresenta um quadro temporal bem delineado com três períodos principais, ou seja, a narrativa cobre toda a vida de Paulo Honório até os seus cinqüenta anos, em três fases: da infância aos dezoito anos; dos dezoitos aos quarenta e cinco anos e dos quarenta e cinco aos cinqüenta anos, fechando assim seu ciclo de vida.



Em outros momentos, no entanto, encontramos uma fusão do presente com o passado ficando difícil identificarmos com precisão o tempo a que se reporta o narrador, criando uma atmosfera psicológica.



O capítulo 19, em especial, comprova-se esse fato, pois Paulo Honório relata acontecimentos ocorridos passado como se estivesse revivendo-os no presente, uma espécie de alucinação. Vejamos o seguinte trecho: “Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco...” (p.101).



O narrador evoca a figura de Madalena usando formas verbais no passado, (conheci, revelou), mas logo em seguida passa a falar do seu presente, em que está na mesa de jantar escrevendo o romance: “... sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo...” (idem), provocando, assim, uma deformação temporal, contrapondo o tempo da escrita do livro (presente) e o tempo dos acontecimentos (passado).



Essa deformação ou confusão temporal fica mais clara na seqüência dos acontecimentos, ou seja, com a percepção da voz de Madalena, como se esta estivesse ao seu lado: “A voz dela [Madalena] me chega aos ouvidos...” (p.102-103) e a conversa “sem palavras” de Seu Ribeiro e D. Glória: “Seu Ribeiro está conversando com D. Glória no salão. Esqueço que eles me deixaram...” (p.103). Tudo isto fruto apenas da imaginação de Paulo Honório, fruto do estado de devaneio em que se encontrava tal personagem.



O narrador nivela, assim, o passado ao presente anulando o fator temporal. Ele apresenta acontecimentos, pessoas de épocas passadas como se fossem reais, ao lado de acontecimentos atuais, de modo que, com nos diz Fernando Cristovão, a ausência e a morte tenham o mesmo valor que a presença e a vida (p.92).



Paulo Honório quebra o desenrolar cronológico da narrativa, voltando seu interesse não para os acontecimentos que deveria narrar, mas para seus próprios sentimentos, para as emoções que o afligem. Aliás, esta confusão temporal não é só ocasionada pela oposição dos tempos verbais, mas, também pelo estabelecimento do vários ritmos na narrativa, ou melhor, Paulo Honório como narrador consciente de seus poderes sobre a matéria da narração, passa a manipulá-la com facilidade podendo atrasar, adiantar, suspender o curso dos acontecimentos e a marcha do tempo cronológico.



Por exemplo, quando narra sua infância e adolescência, utiliza-se do resumo, dando velocidade à narrativa. Ou então, quando conta a história de Seu Ribeiro, suspende o curso normal dos acontecimentos da história que narra para introduzir um novo personagem, já que poderíamos considerar este capítulo (cap.7), como independente. Ou ainda quando diz: “Aqui existe um salto de cinco anos e em cinco anos o mundo dá um bando de volta” (p.39) eliminando assim alguns anos por serem supérfluos, fazendo com que a narrativa siga seu curso de forma mais rápida.



Teríamos em São Bernardo, como já mencionamos, tendências cronológicas, pois é da personalidade do próprio narrador, medir, contar, dá informações precisas, por ser um fazendeiro, um homem de negócios; bem como tendências psicológicas, quando Paulo Honório, um homem consciente de seus poderes, assume o papel de escritor fictício para nesta postura fazer reflexão, parando a marcha do tempo dos acontecimentos para analisar detidamente o que mais marcou sua trajetória de vida.





2.3- Plano do discurso (ideologia, ideário estético, linguagem e relação autor/texto/leitor).





Desde o princípio desta análise, detivemos nossa atenção em Paulo Honório, personagem-narrador. E é através dele que entraremos em contato com os demais, que nos são apresentados de acordo com o ponto de vista do mesmo. Conhecemos logo no início do romance que estamos diante de um homem materialista, que supervaloriza o ter, isto é, aquilo que consegue transformar em capital, até mesmo o relato sobre sua vida: “... e já via os volumes expostos, um milheiro vendido...” (p.7).



Sua afetividade também é medida por cifras. Ao falar sobre os cuidados que reserva à mãe Margarida, o faz relacionado-os aos gastos semanais que tem com ela: “Custa-me dez mil réis por semana.” (p.13). E tudo ao seu redor deve gerar lucro, inclusive a educação: “Isso de ensinar bê-a-bá é tolice ... Vou indicar um meio de sua sobrinha e a senhora ganharem dinheiro a rodo. Criem galinhas” (p.76).



Essa atitude se reflete na relação com os empregados, visto que ele exclui o lado humano e põe em relevo a capacidade de produção dele: “(Ai eu expliquei que a alma dele não tinha importância). Exigia dos meus homens serviços. O resto não me interessava” (p.95).



Sua ganância não respeitava nem mesmo os períodos em que eles se encontrassem doentes: “São todos imprevidentes. Uma doença qualquer... vai-se o lucro” (p.96). E atribui a Deus a culpa pela miséria daqueles que trabalham para seu enriquecimento: “E Marciano não é propriamente um homem... Foi vontade de Deus. É um molambo” (p.110). Além de transferir responsabilidades que deviam ser suas: “Admito Deus pagador celeste dos meus trabalhadores mal remunerados...” (p.131).



Paulo Honório encarna a figura do homem do inicio do século XX, que convivia com o ateísmo crescente, mas beneficia-se dos valores incutidos pela religião aos homens subordinados às classes dominantes: “Ai Padre Silvestre tinha razão, concordou Gondim. A religião é um freio.” (idem).



Talvez por essa razão Paulo Honório não admitisse que uma mulher não a tivesse: “... Mulher sem religião é capaz de tudo.” (idem). No conceito dele a mulher deve ser: “...sisuda, econômica... uma boa mãe de família...”(p.89) e não precisa ter cultura: “Não gosto de mulheres sabidas. Chamam-se intelectuais e são horríveis” (p.113).



No entanto, este homem sente-se no dever de protegê-las: “Senti pena das Mendonças... Mulheres quase nunca se defendem... Qualquer daqueles patifes que tentasse prejudicá-las estava embrulhado comigo” (p.45). Ou de puni-las com a morte caso fosse traído: “Matava-[as] abria-[lhes] a veia do pescoço, devagar para o sangue correr um dia inteiro.” (p.149). Ressaltamos que esse comportamento é típico do homem do Nordeste brasileiro.



Podemos detectar em Paulo Honório a defesa do Capitalismo que se consolidou no Brasil, em que os lucros da produção concentram-se sob o domínio do patrão. E que nem mesmo as migalhas devem ser dadas aos empregados, que usufruem o mínimo possível daquilo que produzem.



A reação dele diante da dádiva de sua esposa à mulher de um empregado demonstra bem esse tipo de procedimento: “A culpada era Madalena, que tinha oferecido à Rosa um vestido de seda. É verdade que o vestido tinha um rasgão... Deitasse fora (...) se estava estragado, era deitar fora. Não é pelo prejuízo, é pelo desarranjo que traz a esse povinho um vestido de seda” (p.119)



Na condição de patrão, não admitia que a mulher de um empregado usasse um vestido igual ao da patroa, mesmo que estivesse rasgado. Em outras palavras, cada grupo social devia vestir-se de acordo com suas condições financeiras. Mas para Madalena, essa diferença não existia, pois de acordo com a descrição da personalidade dela feita por Paulo Honório, tratava-se de uma pessoa bondosa: ”As amabilidades de Madalena surpreenderam-me. Percebi depois que eram apenas vestígios de bondade que havia nela para todos os viventes” (p.105).



Vemos nesses personagens, dois universos diferentes. Um, onde predomina o individualismo, e o outro, em que predomina o interesse pelo bem-estar de todos. Poderíamos até dizer que representam as oposições entre Capitalismo e Socialismo. Com Paulo Honório exemplificando o mundo fechado dos que detém o poder econômico e a todos pisoteando com sua arrogância. Enquanto Madalena integrada ao grupo dos que compõem a maioria desfavorecida, se solidarizava com eles buscava meios de amenizar-lhe os sofrimentos: “Percorria as casas dos oradores. Garotos empalamados e beiçudos agarravam-se às saias dela “(p.107)



E era por causa dessa bondade que muitas vezes o casal entrava em atrito culminando com o suicídio de Madalena que podemos relacionar à derrota das propostas socialistas que foram tragadas pela ferocidade do Capitalismo.



No que diz respeito aos recursos estéticos utilizados pelo autor, podemos observar que ele lançou mão de expressões comuns à região nordestina como: “era um tiro de pé de pau na certa” e “fazendo mungango ao sol “(p.15); “aporrinhado”(p.31); “E embuchei afobado”(p.81).



Além de utilizar-se de figuras de linguagem como: personificação: ”O riacho depois da trovoada cantava grosso “(p.94); hipérbole: “Estou morrendo de fome. “(p.84); metonímia: “dei-lhe um bando de chicotadas. “(p.73); comparação: ”As palmas eram enormes...como casco de cavalo “(p.138); prosopopéia: ”E o meu pensamento...encolhia-se, descia as escadas...” (p.177); antítese: “Cantaria...alegre como um desgraçado” (p.183); o autor deu preferência aos verbos de ação, em consonância com o temperamento do narrador, já que Paulo Honório é um homem prático, objetivo. A título de exemplo, selecionamos alguns verbos, explícitos logo no primeiro capítulo, como: dirigi-me, afastei-o, levantei-me, encostei-me, etc.



No léxico da obra inteira deparamo-nos com expressões grosseiras e outras cultas. Atribuirmos as primeiras à falta de escolaridade do narrador e as últimas, a escolha do autor. Atribuímos também ao narrador o uso freqüente de chavões do tipo: “Papagaio come milho periquito leva fama”(p.147).



Essa fusão de linguagem, do modo de apresentar os fatos, gerou discussões entre os críticos Álvaro Lins e Fernando Cristovão. Álvaro Lins questiona a veracidade do narrador, que sendo rude e grosseiro, não poderia construir uma obra nesse nível com tanta densidade psicológica. Mas Fernando Cristovão diz que independentemente de sua condição intelectual, o narrador tem poderes demiúrgicos e é livre, senhor absoluto do texto. Sendo assim, não causa estranheza encontrarmos formas variadas de discursos. Selecionamos um exemplo de cada tipo: discurso direto – “Está bem, vou refletir.”(p.19); discurso indireto - “Padilha resmungou animado que sabia contar”; - Discurso indireto livre “- Lorota! O hospital, sim senhor ... Mas biblioteca num lugar como este!” (p.91).



Essas várias possibilidades de construção do discurso permitem uma aproximação do leitor com os personagens, tornando possível identificar fatores emoções e traços de personalidade pela forma como eles expressam determinados conteúdos. A maneira direta de Paulo Honório falar revela seu temperamento agressivo. A omissão da fala do Padilha deixa indícios de que ele não tem voz ativa. E o pensamento transcrito logo após uma expressão grotesca, permite-nos detectar dois momentos no comportamento do narrador. O momento de estupidez e o de reflexão.



Ao consumarmos a leitura do livro ficamos tendenciosas a escolher um lado para apoiar. E este é o de Madalena; por sua educação e bondade. Pela maneira como lidava com os semelhantes, principalmente com aqueles que eram vítimas da avareza do marido. Merece atenção de que sendo ele mesmo quem narra a história, é ele também que cria empatia ou antipatia para com os demais personagens para com ele próprio.



Simpatizamos com Seu Ribeiro por causa do relato sobre sua história feita pelo narrador. Ficamos sabendo que se trata de um homem de boa índole e que não fazia distinção de classe ou raça: “E os pretos não sabiam que eram pretos, e os brancos não sabiam que eram brancos’(p.36).



No capítulo 17, quando Madalena encontra-se com ele é natural que Paulo Honório afirme: “...Gostou de Seu Ribeiro” (p.95) Visto que os dois comungavam de idéias semelhantes. Com os demais seres que povoam o universo de sua obra, a situação não difere, ou são apresentados de um modo positivo, ou negativo, deixando no leitor as impressões sugeridas pelo narrador.



CONCLUSÃO



Concluída a análise de São Bernardo, podemos por diversos motivos afirmar que se trata de uma obra Modernista, embora sua estrutura esteja bem próxima ao modelo tradicional das narrativas de matriz realista, no diz respeito ao esquema da narração, com apresentação, clímax e desfecho. Mesmo assim, observamos que na apresentação da obra, o autor utiliza-se de recursos próprios do Modernismo como: capítulo sem títulos, menção dos personagens sem a devida caracterização e sem genealogia; indefinição do espaço físico nos momentos em que predominam as reflexões e as inflexões no eu do narrador-personagem.

No primeiro capítulo, ao invés de dar informações básicas sobre o assunto do romance, o narrador limita-se a explicar detalhes sobre a construção do livro, com quem faz um prefácio. Essas informações, entretanto, encontram inseridas no corpo de narrativa, constituindo-se a ficção dentro de uma pseudo-realidade.

Outro aspecto que merece atenção é o grande número de personagens, os quais são ‘jogados’ ao leitor, sem que este saiba quem são e por que estão próximos ao narrador. Esta aparente lacuna vai sendo preenchida no decorrer da escrita do livro. O próprio personagem principal só se apresenta no terceiro capítulo. E diferente dos heróis tradicionais, ele é um indivíduo sem origens, um homem comum, como são a maioria dos personagens dos autores modernistas. Podemos até dizer, a princípio, que é desprovido de caráter, bem ao estilo do herói de Mário de Andrade, Macunaína. Embora este esteja mais próximo do malandro e aquele do Vilão ou do herói-problemático.

Quanto ao espaço físico, que nas obras tradicionais é definido logo de início, em São Bernardo isto é feito no capítulo 4. E o enredo está fragmentado em diversos assuntos, fazendo com que a atenção do leitor não se fixe na história de amor de Paulo e Madalena e sim, na história de Paulo Honório, ex-trabalhador do eito que se transforma em ganancioso fazendeiro e latifundiário.

Justificamos também nossa posição, no que diz respeito à linguagem dos personagens, que está de acordo com o grau de instrução, temperamento e formação moral de cada um. Num discurso exemplo, encontramos palavras chulas e até mesmo de baixo calão: “ Deixe-me ver a carta, galinha” ou “vá a puta que pariu”. (p. 139). Notamos ainda liberdade de se expressarem dadas pelo narrador, que reproduz o discurso delas em forma de diálogos.

No que diz respeito ao conteúdo, está voltado para as questões sociais, como se propunha a corrente Neorealista, interpretando o homem e a sociedade à luz das doutrinas Marxistas e Socialistas. Neste caso, o tema particulariza a organização rural, especialmente a questão agrária, sob o jugo Capitalista.



Encontramos na obra resquícios do Naturalismo de Zola, que via o homem como sujeito às leis físico-químicas e determinado pelo meio. A justificativa de Paulo Honório pela sua agressividade comprova este aspecto: “A culpa foi desta vida agreste que me deu uma alma agreste” (p. 101).

A obra, retomando a proposta do Realismo do século XIX, enfoca também a hipocrisia e o despreparo dos que falam em nome da religião: “conheço homens que defendem a religião nos jornais e nunca viram a Bíblia” (p. 130). E ainda numa visão naturalista do homem, Paulo Honório-narrador, se refere aos outros como se estivesse falando de animais: “... estraguei-lhes os couros” (p. 14); “Madalena estava prenhe. (p. 113) e “Bichos. Alguns mudaram de espécie e estão no exército...” (p. 182).



Visto ser o Modernismo uma confluência das tendências anteriores, é razoável que encontremos traços das mesmas nas obras que o representam. E Graciliano Ramos, com São Bernardo, representa a fusão de estéticas de correntes do passado, com o novo modo de fazer literatura do Modernismo que se iniciou em 1922, se renovou em 1930 e se estende até nossos dias.



REFERÊNCIAS:



AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. O Romance. In: Teoria da Literatura. 3 ed., Coimbra, Almedina, 1973. P. 247-347.



COUTINHO, Afrânio. Simbolismo, Impressionismo, Modernismo. In: Introdução a Literatura no Brasil. 7 ed., Rio de Janeiro, Ed. Livros Escolares, 1975. P. 207-310.



CRISTOVÃO, Fernando. Graciliano Ramos: Estruturas e Valores de um modo de Narrar. 3 ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1986.



RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 42 ed., Rio de Janeiro, Record, 1984.



_________Valores e Misérias das Vidas Secas. In: Vidas Secas; posfácio de Álvaro Lins. 70 ed., Rio, São Paulo, Record, 1995. p. 147



TAVARES, Hênio. Teoria Literária. 9 ed., Belo Horizonte, Itatiaia, 1989.



VASSALO, Lígia. A Narrativa Ontem e Hoje. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984.

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