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Artigos-->O que pensam e falam os professores sobre as brincadeiras .. -- 14/01/2011 - 15:47 (Fernanda Duclos Carisio) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O que pensam e falam os professores sobre as brincadeiras das crianças pequenas?

Fernanda Duclos Carisio

Orientadora: Daniele Nunes Henrique Silva



“É jardim? São pequenininhos? Ah, você nem tem trabalho, não é? Você tem Conselho de Classe, pra quê? Que bom, você nem se esquenta em corrigir prova, não é? Só vem para brincar? Não tem dever de casa? È só colocar uma `folhinha` e eles ficam pintando, é moleza...” (MEYER, 2003, pg. 19).



Foram comentários dessa natureza, observados nesses últimos anos de vivência como diretora de uma escola de Educação Infantil, que motivaram essa pesquisa, que tem como objetivo investigar o que pensam os professores que trabalham na educação infantil sobre as brincadeiras das crianças pequenas. Isso porque brincar:

“(...) é a atividade principal no desenvolvimento pré-escolar que envolve as articulações entre língua e recursos expressivos, real/imaginação/ funcionamento psicológico e flexibilização de significados pela linguagem”.(SILVA, 2002, pág.65).



Parti, portanto, dessa hipótese: a importância do lúdico para a criança e o seu desenvolvimento. No entanto, é preciso pensar o brincar como uma atividade interativa em que se envolvem crianças com crianças, mas também crianças com adultos. Bandet e Sarazanas (apud Andrade, 2001), em estudo sobre a criança e os brinquedos, mostram que “não se pode conhecer nem educar uma criança sem saber nem por que, nem como ela brinca”.

É por isso que se torna importante investigar como os professores significam as atividades lúdicas das crianças. Que valores atribuem às brincadeiras? Há espaço para o lúdico? Para o brincar ainda é necessário garantir espaço? De que modo tal atividade é concebida na dinâmica do trabalho pedagógico?

Vivenciando o dia a dia da prática escolar, numa escola de educação infantil da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, observei que a tendência é “olhar” para a criança com os nossos olhos de adulto, nossa cabeça de adulto, nossa voz de adulto e, principalmente, nossa autoridade e superioridade de adulto. No resultado, para se conseguir a “disciplina”, tem-se, principalmente, distância e incompreensão. É da concepção que o educador têm do brincar que nascem suas atitudes frente à brincadeira das crianças.

No outro extremo percebemos que muitos adultos parecem achar que para compreender a criança (ou se fazer compreendido por ela) é preciso se infantilizar. Ora, falar como criança não nos faz pensar como criança. Pior ainda, ou a criança percebe e nos olha como se fossemos tolos, ou também se infantiliza para nos imitar. Afinal de contas, o adulto é quem manda. E ainda tem quem se espante quando percebe que a criança não confia nele (ou nela)...

No ato de brincar isso pode ficar ainda mais evidente, uma vez que, é comum vermos que o educador ou se limita a estar presente para evitar que ocorram danos ou problemas ou interfere na brincadeira buscando impor os seus conceitos. Ou seja, brincar serve para ocupar o tempo das crianças enquanto descansamos, preenchemos as agendas ou corrigimos trabalhinhos ou serve para “empurrarmos” conceitos pedagógicos de uma forma “disfarçada”. No entanto, se observamos isso, consideramos importante verificar como o brincar está presente (e se está presente) para os professores da educação infantil, tendo como referencial a importância do lúdico na construção do conhecimento da criança de zero a seis anos.

Para Vigotski (1989, apud Meyer, 2003), a brincadeira é entendida como atividade social da criança, cuja natureza e origem específicas são elementos fundamentais para a construção de sua personalidade e compreensão da realidade na qual se insere. Complementando, Silva (2002) assinala que, em alguns pontos, a maior parte dos teóricos concorda: “brincar possibilita maior desenvolvimento da imaginação da criança, pois ela tende a realizar, no plano simbólico, as ações do mundo adulto” (pg.56).

Imaginação, criatividade, vivências, carências podem ser observadas no dia a dia de crianças numa escola de educação infantil. É possível perceber, mesmo de forma empírica, que as crianças vivenciam o brinquedo que brincam, mas quais seriam os vínculos que estabelecem entre brinquedo e realidade? Estes limites seriam definidos pelas próprias crianças ou nós, professores, é que os impomos? Qual o significado e as conseqüências das regras rígidas muitas vezes impostas para as brincadeiras infantis?

É da concepção que o educador têm do brincar que nascem suas atitudes frente à brincadeira das crianças.

“Só vendo a criança por inteiro, como pessoa, envolvida em outras tantas atividades que não a lúdica, é que podemos entender melhor seus jogos e brincadeiras” (ANDRADE, 2001, pg.98).



Para verificar como os nossos professores (e as nossas crianças) vivenciam esse processo, considerei necessário pesquisar todos os que estão nele envolvidos. Inicialmente procurei definir o conceito de infância ao longo da história. Para tanto, apoiei-me nos estudos de Áries (1981) que, a partir da observação de pinturas, textos, igrejas, túmulos antigos, analisa em que condições surgem os conceitos de criança, infância, família e escola. Fica claro, que não existe uma natureza infantil a-histórica ou a-cultural e que o conceito de criança sempre esteve vinculado ao seu contexto social, econômico e cultural.

A EVOLUÇÃO DOS CONCEITOS DE INFÂNCIA E CRIANÇA.

Em seus estudos, Áries (1981), a partir da observação de pinturas, textos, igrejas, túmulos antigos, analisou, comparativamente, como brincavam as crianças ao longo dos tempos, contatando que condutas valorizadas pela sociedade estão refletidas na forma como as crianças brincam. Fica claro, que não existe uma natureza infantil a-histórica ou a-cultural e que o conceito de criança sempre esteve vinculado ao seu contexto social, econômico e cultural. Kramer (1985) destaca exatamente essa necessidade de

“ver a criança enquanto o ser social que ela é” (...). Considerar que ela tem uma história, que vive uma geografia, que pertence a uma classe social determinada, que estabelece relações definidas segundo seu contexto de origem, que apresenta uma linguagem decorrente dessas relações sociais e culturais estabelecidas, que ocupa um espaço que não é só geográfico, mas também de valor, ou seja, ela é valorizada de acordo com os padrões do seu contexto familiar e de acordo também com a sua própria inserção nesse contexto. (KRAMER, 1985, in ROSEMBERG, 1989, pg.23)



Analisamos, a seguir, o papel que cumprem, ou se propõe a cumprir, no Brasil, esses espaços denominados de creches, pré-escolas, ou escolas de educação infantil, verificando a Constituição, a LDB e o RCNEI, bem como os debates que tangenciam o binômio cuidar e educar (funções assistencialistas ou pedagógicas). Verificamos que as denominações “creche” e/ou “pré-escola” revelam concepções arraigadas em nossa sociedade. A primeira, que considera como sua principal função a guarda das crianças enquanto seus pais trabalham, característica da revolução industrial e da crescente presença da mulher no mercado de trabalho e a segunda, como uma prévia, uma preparação para o ensino fundamental: uma não-escola, que apenas prepara para a escola.

Especificamente com relação ao brincar persiste o debate entre estudiosos do tema sobre as funções assistencialistas ou pedagógicas e sobre o papel, da imaginação, do lúdico no processo de aprendizagem e na formação do professor da educação infantil, ou seja, compreender a atividade lúdica dentro do seu contexto histórico-cultural.

A QUESTÃO DO BRINCAR E O DESENVOLVIMENTO INFANTIL.

A base teórica parte das considerações mais gerais dos autores da corrente histórico-cultural, em especial Vygotsky, em função da centralidade, por ele apontada, do funcionamento lúdico no desenvolvimento de crianças em idade pré-escolar.

Para o autor, apesar de não ser a mais freqüente, a brincadeira é a atividade mais importante da idade infantil, pois evidencia a transição de ações vinculadas ao campo perceptivo para atividades orientadas pela experiência simbólica.

Ou seja, a criança por meio do brinquedo opera num plano para além daquilo que ela vê imediatamente (campo perceptivo), transgredindo simbolicamente as condições impostas pelo real. Ela vê um pedaço de madeira e faz-de-conta que é um carrinho; ela acha uma pedra e diz que é um posto de gasolina. Os significados são transformados, assumindo configurações imaginadas, antagônicas à sua objetivação real; toco de madeira/carrinho; pedra/posto de gasolina (Vygotsky, 1998).

CAPÍTULO III – METODOLOGIA

Algumas pesquisas já foram realizadas buscando evidenciar a dinâmica lúdica emergente nas crianças em idade pré-escolar (Rocha, 1994; Pino, 1996; Silva, 2002 e outros). Perseguindo tais rastros investigativos, o atual estudo pretende “escutar” os professores, abordando suas respectivas percepções sobre o papel do lúdico no desenvolvimento infantil.

Para tanto, a investigação partiu da sistematização de 4 oficinas com três professoras de uma creche/EI, localizada na cidade do Rio de Janeiro (Zona Norte).

O material dos encontros foi filmado e gravado para posterior análise e levantamento de categorias sobre as questões pertinentes às percepções dos professores, inquietações e opiniões acerca da brincadeira "dos" e "com" os pequenos.

CAPÍTULO IV – ANÁLISE DE CASO

Para cumprir com os objetivos desta pesquisa, ou seja, analisar o que pensam e falam os professores sobre as brincadeiras das crianças pequenas, examinamos cuidadosamente o material vídeo-gravado, (inclusive em debate realizado no Grupo de Pesquisa Imaginação, Arte e Cultura/Universidade Cândido Mendes – CEPEd)) para estabelecer as linhas gerais por ele apontadas e os principais pontos suscitados durante as oficinas com as professoras. Como foram realizadas quatro oficinas os dados foram organizados em quatro tópicos, que se interligam nas oficinas, estruturadas uma em função da outra, na perspectiva de identificar o que pensam e falam os professores sobre as brincadeiras das crianças pequenas.

As três professoras estão identificadas pelas iniciais de seus nomes fictícios (B., G. e R.), conforme indicado no capítulo anterior. A pesquisadora está determinada pela letra “P” e “F” designa o professor que realizou as filmagens e, eventualmente, foi chamado ao debate por uma ou outra professora.

Todos os nomes das crianças também são fictícios e procurei reproduzir fielmente as falas das professoras, apenas retirando o excesso de palavras de apoio (como né, assim, etc) para facilitar a compreensão do texto. Sempre que necessário para esclarecer fatos, que não estejam explícitos no texto, acrescentei informações com detalhes sobre o local, idade das crianças ou circunstâncias do episódio relatado.

Oficina 1 – “ESTAMPAS EUCALOL”

Na primeira oficina, trabalhamos com a música “Estampas Eucalol”, de Helio Contreiras, interpretada por Xangai e Geraldo Azevedo:

“Montado no meu cavalo

libertava Prometeu

toureava o Minotauro

era amigo de Teseu

viajava o mundo inteiro

nas Estampas Eucalol

à sombra de um abacateiro

Ícaro fugia do Sol

subia o monte Olimpo

ribanceira lá do quintal

mergulhava até Netuno

no oceano abissal

São Jorge ia pra lua

lutar contra o dragão

São Jorge quase morria

mas eu lhe dava a mão

e voltava trazendo a moça

com quem ia me casar

era a minha professora

que roubei do rei Lear.”



O objetivo foi tentar analisar, a partir da música, como as professoras se remetiam (ou não) a sua experiência com a fantasia. No entanto, encontramos a primeira barreira, uma vez que, logo pode ser observada a dificuldade delas entenderem que não se tratava de uma proposta ou exemplo de atividade a ser trabalhada com as crianças:

“R – Eu nunca tinha escutado essa música. Achei bonitinha, no sentido em que tudo rima, mas também achei um pouco complicado, difícil de entender. Acho que, de repente, como a gente está falando de música e está falando de criança pequena, acho que essa música, assim, relacionando para trabalhar com criança pequena, seria meio complicado.

G – É, mas acredito que, assim, eles poderiam representar, de acordo... Fazer uma representação em partes, uma encenação, imaginando, montando a cavalo e tudo o mais. Mesmo assim, foge um pouco do que a gente está acostumada quando diz (aqui) que teria de lutar, coisa que a gente tá sempre contestando em relação a isso. (risos)

P – Só um pouquinho pessoal... Não é para trabalhar essa música com as crianças, não. É o que que essa música tem com o tema das brincadeiras infantis! Se tem ou não tem? A idéia não é trabalhar essa música, até por que ela se reporta a coisas que não são da realidade das crianças. É avaliar o que ela traz para vocês...

B – Acho que é da imaginação das crianças, não é não?

G. e R. - É, é...

B – Aquela brincadeira imaginária: subiu num cavalo e trouxe a minha namorada que é a minha professora. A professora para a criança é tudo. A professora é aquela deusa que eu quero imitar: - Eu quero ser a professora. Para os meninos: - quem é a sua namorada? - Minha professora. Eu acho que é isso. Essa brincadeira vai mais para o lado imaginário das crianças.

R - Lutar contra o dragão...

B - Que é tudo o que eles falam: - vou lutar, vou ser o dragão, não sei o quê...

G - E que no final eles vencem. E daí, conseguem o quê? conquistar a professora, que é o que, na verdade, eles tanto querem.

R - É

G - Bem, é de mexer exatamente com a imaginação das crianças, fazer com que eles desenvolvam essa imaginação e possam também representar, como eu falei, através do teatrinho, com movimento corporal...

B – Dá para trabalhar com muitas coisas nessa música, dá para subir... Sobe, desce, fala sobre Oceano, Netuno, mas já seria para uma turma maior...planetas. Não seria para tão pequenos.”



Percebemos, inicialmente que, mesmo após os esclarecimentos, a confusão persistiu. Uma professora voltou a insistir que “dá para trabalhar muitas coisas nessa música...”. No entanto, é exatamente essa “confusão” que nos permitiu observar, ao longo de toda a oficina, que para os professores a imaginação é apenas mais um recurso pedagógico a ser trabalhado diretivamente com as crianças. Isso fica ainda mais claro na citação sobre a encenação de textos:

“G - A gente procura trabalhar, também, a partir da realidade da criança. Então, na verdade, a gente tem que mexer com essa imaginação, deles mesmos, e, diariamente, a gente tá fazendo isso, através de uma historinha, quando a gente pede para representar e, aí, eles se imaginam no lugar daquela historinha. Quando a gente faz encenação, que eles vão estar trabalhando também o esquema corporal. A gente está desenvolvendo bastante coisa a partir dessa imaginação, da realidade da criança, mesmo a partir daquela historia ou daquela idéia né? Então, isso, a gente procura desenvolver, principalmente, na educação infantil, diariamente, em varias atividades. A gente está incluindo, tá mexendo mesmo com a imaginação de cada criança.

R - A gente se preocupa também na escolha, assim, dos temas, de tudo, tudo relacionado com a educação infantil. A gente se preocupa em escolher o tema, as brincadeiras, porque a gente sabe, assim, que eles... Enfim, pode ser, é a vivência deles, mas, por exemplo, uma música assim como essa, para eles entenderem, essa questão, de luta, dragão, entendeu? De repente, na cabecinha neles ia ficar meio complicado. E a gente procura passar o quê? Valores para eles. O que é certo, o que é errado. Então a gente tem, também, que se preocupar com a escolha, de como a gente vai trabalhar com eles, o que a gente vai trabalhar com eles, para não confundir, assim, a cabeça deles, não estar passando valores errados. De repente, se a mãe pega um negócio desses: - Aí, Meu Deus, a professora tá trabalhando dragão que luta com não sei quem, ai, Meu deus, entendeu? Aí, o filho chega em casa lutando, já vai para um outro lado. Então acho que questão da escolha também é importante...”



Esta situação também pode ser observada no trabalho de Rocha (1997). Para a autora, ao analisar a emergência do lúdico nas escolas, tem-se a “entrada” da professora na brincadeira como suporte para introdução ou reforço dos conceitos que devem ser trabalhados na escola. Na situação apontada acima, a professora deflagra que há um “conteúdo” corporal (esquemático) desenvolvido nas brincadeiras e, para ela, aí, reside o valor do lúdico.

De igual forma, as professoras G e R só conseguem “aceitar” a música se ela puder ser “utilizada”, por exemplo, para encenações, objetivando trabalhar o esquema corporal ou outras coisas (que não ficam muito claras) ou para passar os seus valores para as crianças, “o que é certo, o que é errado”.

Chama atenção, ainda, a insistência em considerar a imaginação, como algo que não é evocado pela própria criança, mas sim, que necessita ser estimulado, desenvolvido e trabalhado pelo professor, sob pena de escapar ao controle, passando a prevalecer o livre imaginar, uma espécie de “devaneio” que as professoras consideram “perigoso”. De fato, elas parecem desconhecer a constatação que nos traz Leontiev (1992) de que o brinquedo é o caminho pelo qual as crianças compreendem o mundo em que vivem.

No entanto, nos parece ficar patente, que a perspectiva não é incentivar a imaginação como foco de criação e mudança, mas, conforme analisa Rocha (1997), “a atenção da professora se organiza com o objetivo de apresentar e tornar disponíveis para as crianças formas culturalmente prestigiadas de representação do real” (pág. 79). É de se fazer notar a perspectiva, que nos foi possível perceber, principalmente, nas falas de G. e R., de que toda e qualquer iniciativa deve partir das professoras, inclusive com relação ao tema das histórias, músicas ou brincadeiras, para não correr o risco das escolhas serem “inadequadas”. Tem-se, portanto, a visão de que a criança é um ser imperfeito que deve ser corrigido, disciplinado e deve aprender a partir do adulto. Tal concepção adultocêntrica é típica da pedagogia “tradicional”, conforme explicitado no capítulo I.

Embora, seguidamente, insistam que estimulam a imaginação das crianças das mais variadas maneiras, podemos perceber que, na realidade, esse estímulo não tem como ponto de partida a imaginação infantil, ao contrário, parte de situações controladas, diretivas. Por exemplo: contar histórias e pedir que as crianças imaginem um novo final; apresentar textos pré-escolhidos para que encenem; formas de canalizar, disciplinar a criatividade infantil e utilizá-la para transmitir conceitos e valores que as professoras consideram “certos” e “importantes”.

Essa preocupação se manifestou em outros episódios, especialmente no “Beijo”, no qual a professora age de forma ostensiva, consolidando uma espécie de “censura prévia”:

Episódio: O Beijo

“B – (...) Eu estou lá, anotando nas agendas, quando eu olho, está o Julio e a Joana brincando, e ele foi dar um beijo na boca dela. E aí, eu: - Júlio, não pode. – Tia, eu sou o príncipe, vou acordar a bela Adormecida, (risos) então, tem que dar um beijo nela para ela acordar.

Estavam brincando sem nada, brincando do nada. A história eu não tinha contado naquele dia, tinha sido no outro dia......

(...)

G - Por isso que é ruim esse negócio de reproduzir. De repente, o que eles vêem, o que eles estão trazendo, um lance de televisão, de novela, essas coisas, porque aí eles podem querer imitar...

R - Até os desenhos são assim. No filme dos “Incríveis” eles se beijam. (...) (reproduzindo espanto e/ou animação das crianças diante da cena do beijo) – AHHH – beijo na boca!!! Aí, Eu falei: - gente, são marido e mulher, eles são casados, por isso, mamãe e papai não se beijam? Porque, imagina, senão vão achar que a vida é assim, sair beijando. Quer dizer, acho que os desenhos, hoje em dia, também, são meio, assim, avançadinhos.”



Quando a imaginação das crianças se manifesta livremente, imitando super-heróis ou personagens de histórias infantis, de forma espontânea e independente de qualquer estímulo da professora, esta procura inibir a manifestação, ou mesmo impedir a brincadeira, alegando motivos de cuidado físico (“eles podem se jogar pela janela, falando sobre super-heróis”) ou morais (se referindo ao beijo – “por isso é que é ruim esse negócio de reproduzir...”). Em nenhum momento, foi possível observar a intenção de observar, ou tentar analisar com mais cuidado, os motivos porque as crianças reproduziam (ou poderiam vir a reproduzir) esta ou outras cenas, preocupação essa que foi levantada, entre outros pesquisadores, por Kishimoto (2003):

“Por essas características podemos entender porque as crianças são tão atraídas pela imagem do super-herói e tentam imita-lo. Não podemos esquecer que as crianças têm pouco poder num mundo dominado pelos adultos, e elas tem consciência disso” (pág. 66).



No entanto, durante o debate, as professoras destacaram a relação entre imaginação e desejo:

“G - Acho que trabalhar o imaginário é tudo, a nossa... aquelas roupas, que a gente deixa eles vestirem, se fantasiarem. Eles se caracterizam daquilo que, de repente, eles querem realmente ser e brincam ali. As meninas querem ser sempre a mamãe, cuidando dos pequenininhos, algumas, a maioria. E os meninos, não, querem ser sempre, por uma capa e ser um super herói, então eles imaginam...

B - Ou que sai para trabalhar, ou que tem um carro... (risos) É engraçado isso..

G - O que eu consigo entender, a referência dessa música é falar muito da imaginação de cada um, das crianças, na verdade. É que no final é isso mesmo que eles conseguem: conquistar aquilo que eles sempre desejam (...)”.



Essa constatação, feita de forma empírica pelas professoras, é definida por Vygotsky, conforme assinala Silva (2004)

“é na atividade lúdica que a criança recria aspectos do mundo dos adultos, das vivências que tem socialmente. Por isso ao brincar ela se envolve em um universo ilusório, imaginativo, porém impregnado por valores e regras socialmente estabelecidas, que se original do real, do vivenciado.” (pág. 110).



Por sua vez, nas análises de Elkonin (apud, Silva, 2004) observa-se o jogo simbólico como jogo de papéis sociais, uma atividade de apropriação do real, das condições concretas de vida na sociedade e de subsídios para uma compreensão do meio cultural em que as crianças vivem e interagem. É desejo e necessidade de pertencimento à sociedade adulta.

No entanto, percebemos que as professoras, mesmo ao constatar que a imaginação se relaciona com o desejo (ser “Batman”, ser “Homem Aranha”, ser “o que criança não é”), têm dificuldade em se colocar no lugar da criança. O foco docente parece permanecer carregado da sua história de vida, de suas próprias emoções e crenças e essas circunstâncias se explicitam na censura à cena do beijo ou no diretivismo pedagógico do lúdico.

Oficina 2 – Um olhar sobre as brincadeiras das crianças: o que é o faz de conta?

Na segunda oficina, procuramos dar continuidade ao debate, agora observando, diretamente, cenas das brincadeiras infantis, através de trechos recortados da filmagem de brincadeiras livres realizadas com as crianças dos Grupos I, II, III e IV (de 3 a 6 anos), na creche pesquisada, em diferentes ocasiões. Percebe-se que a palavra-chave continua sendo “imaginário”, mas, avançando no debate, as professoras também passaram a dialogar com a distinção entre brincadeira livre X brincadeira dirigida e com a percepção da presença de regras e o papel que cumprem, mesmo nas brincadeiras livres.

“R – todas as brincadeiras, tudo o que eles estavam fazendo ali, é porque eles estavam com vontade. Tudo partiu deles. Então, naquele momento que a Rafaela (5 anos) parou para desenhar no quadro e a Simone (5 anos) veio falar com ela, ela nem se interessou porque ela estava querendo, naquele momento, brincar daquilo. A Ritinha (4 anos) brincando de dobrar roupa, (ou seja) cada um vai criando sua brincadeira, conforme o seu gosto, né? Naquele momento, assim...

G - Mas, aí parte também do imaginário, porque você pode observar que as meninas tendem a brincar de mamãe de filhinha, que realmente é o que elas idealizam ser, de mandar na coleguinha. Que a gente vê muito isso: elas querendo ser a mamãe e a fulaninha é a filhinha e tudo o mais. E os meninos gostam mais daquela brincadeira, principalmente de jogo de encaixe, que eles imaginam. Eles viajam com aquele jogo, que eles imaginam brinquedos, o “blayblade” (...) (réplica de brinquedo semelhante a um pião que as crianças “fabricam” com peças de Lego. Agrada principalmente aos meninos do Grupo I que têm, em média, 4 anos).

(...)

R - Da maneira deles, quando brincam dessa questão de faz de conta cada um incorpora o personagem que mais gosta como ela falou as meninas geralmente querem ser professoras, querem brincar de mamãe e filhinha

G - A Renata estava se sentindo ali, no filme, ela desenhando ali. Ela estava se sentindo a própria professora.

(...)

P – Vocês falaram muito em brincadeira livre, mais ao mesmo tempo vocês estão comentando que na brincadeira livre eles estabelecem...

G - uma regra para eles, né?

P - É um pouco isso, a brincadeira é livre, mas eles estabelecem a regra.

R - A dirigida não, a dirigida quem estabelece somos nós. Então, assim, meio que eles não podem sair daquela regra que a gente estabelece, (por exemplo) - o jogo agora é da memória...

G - Ah não, nada melhor do que eles estabelecerem a própria regra, né, para eles e para os próprios amiguinhos. Então eles acham isso demais. Com certeza, não é a gente que tá impondo aquilo, então para eles, na hora, assim, não é nenhuma regra, é o que eles estão criando no momento, eles acabam curtindo aquilo...

R – Mas, acho que é bom até dosar um pouco essa questão do livre com o dirigido, também, para não deixar as coisas muito livres. Porque assim, o dirigido, mal ou bem, tem as regras que eles tem que obedecer e na vida eles vão ter que obedecer a regras o tempo inteiro. Então, acho que, as vezes, a questão do livre também fica muito solto, entendeu...”



Mais uma vez, percebe-se claramente a visão das professoras da necessidade de controlar, dosar, dirigir para que as crianças se “adaptem”, no futuro, ao mundo real. Rocha (1997) destaca também esse aspecto em seus estudos, constatando que:

“As concepções da professora devem ser tomadas como construções histórico-culturais, com base nas quais se podem ouvir outras vozes que participam de sua formação. (...) A professora na sala de aula organiza suas inserções pedagógicas apresentando um modelo de conhecimento, que, em geral, tem como referência as diretrizes que sua cultura oferece sobre seu papel e sobre que sujeito se deseja que ela constitua. E, na cultura escolar, o jogo de faz-de-conta e o imaginário não têm sido os caminhos mais prestigiados. De maneira geral, parece não interessar o que, e de que forma, a criança pode ser capaz de projetar o novo, e sim o que é capaz de reproduzir.” (pág. 81).



Interessante que, ao definir o que é brincadeira livre e dirigida elas vão significando do que as crianças gostam de brincar, tanto a partir das cenas do vídeo (Ex: Rafaela no quadro de giz) como de narrativas de outras cenas lúdicas evocadas por elas mesmas, em que as crianças representam a figura da professora sempre tematizada nos postos de comando, de poder. Apesar das observações anteriores, nas quais relatam ações em que, seguidamente, assumem posições de censura às atividades infantis ou posturas diretivas, as professoras mostraram estranheza com essa caracterização feita pelas crianças, estabelecendo um protótipo de professora como fonte de autoridade e poder.

“G – (...) quando eles idealizam que somos nós, professoras, então, você pode observar que eles só querem mandar. Tanto que eu já tive bilhetinho em relação a isso. Eles esquecem quando a professora está brincando, quando ela tá conversando, tá fazendo carinho, contando uma história, o que que eles frisam bastante é o poder mandar. Então, quando eles fazem o papel nosso, eles só querem mandar. É por isso que teve o caso da Sara, que só chamava a atenção da mãe, na brincadeira em casa. A mãe até brincou, (indagando) se eu só chamava a atenção. Mas não, ela idealiza isso: o poder mandar. Porque hoje em dia ela é mandada, entre aspas, pelos pais pela professora e etc...

R - Então na brincadeira ela aproveitou...

G – ... quando ela tem o poder de ser a professora, no imaginário, ela só quer mandar. Então a mãe ficou assustada: - será que essa professora só manda, só impõe, só briga? - eu fiquei num papel meio chato, né?

(...)

R – Acho que tudo envolve essa questão do poder, deles poderem mandar, porque eles já gostam de mandar entre si, né? Na relação deles do dia a dia, (...) quando eles tem essa oportunidade de brincar dessa questão do faz de conta, aí eles ...”



Acreditamos ser possível identificar que as crianças brincam de imitar professoras porque (entre outras) gostam, desejam vivenciar “ações” valorizadas socialmente. O recorte das brincadeiras permite ver que não se trata da representação de uma professora específica, mas sim a imagem prototipizada da professora como alguém que é, também, a detentora do poder. Esse parece ser, por um lado, o aspecto que mais chama a atenção das crianças e, por outro, o que a torna mais “importante” frente aos colegas, aos quais passa a dominar. Portanto, essa é uma das características que melhor configura (para as crianças) a generalização desse papel.

No final do encontro, ao serem chamadas a explicitar o quê, para cada uma delas, significa o brincar de crianças pequenas, comentaram:

“G – Brincar é poder desenvolver as suas capacidades e imaginações.

R - Brincar é realizar tarefas que deixem as crianças mais felizes e criativas.

B – Brincar é realizar tudo o que gostaria de ser ou ter.”



Analisando as definições, podemos visualizar dois aspectos, aparentemente, contraditórios; ou seja, o brincar é uma “tarefa” mas, também, deixa as crianças “felizes e criativas”. O conceito de tarefa, normalmente identificado com obrigação e, portanto, algo desagradável, está coerente com a visão tradicional que pressupõe imposições, regras a serem obedecidas, determinadas por terceiros, ou seja, uma concepção diretiva, que foi marcante em toda a oficina. A essa visão, combina-se o conceito defendido por Piaget e já citado nessa pesquisa:

“O brincar está intimamente relacionado à satisfação da criança, ou seja, o jogo vai evoluindo em um esforço adaptativo para garantir a manutenção e o exercício da atividade, que tem como motivação básica o prazer em dominar e direcionar a ação.” (Silva, 2002, pg. 58).



Esse conceito, que vincula brincadeira a satisfação/prazer, é questionado por Vygotsky (1998), que demonstra em seus estudos que a criança brinca para preencher necessidades, na tentativa de compreender o mundo adulto, pelo desejo de atender desejos mais imediatos e realizar atividades que não domina, interpretação essa que foi aventada apenas pela professora B. (“Brincar é realizar tudo o que gostaria de ser ou ter”).

Oficina 3 – Por que é importante brincar?

Nessa 3ª Oficina procuramos trazer para o debate um reflexão teórico-prática. Para tanto discutimos o texto “Um estudo sobre temas lúdicos encenados por crianças residentes em orfanatos” (Silva, 2004). O material fora distribuído na semana anterior para que pudesse ser lido com calma pelas professoras e com a indicação de que o mesmo seria trabalhado como continuidade do debate já iniciado, na Oficina 2.

O primeiro aspecto que consideramos importante destacar foi a incorporação dos novos discursos trazidos pelo texto, além da constatação, expressa pelas próprias professoras, da importância de aliar teoria e prática:

“G – É, a conclusão que eu tive do texto é perceber que... Porque, até então, a gente sabe que a brincadeira é importante para desenvolver a parte de coordenação e tudo o mais, mas, eu percebi, com o texto, que a brincadeira é fundamental no desenvolvimento da criança, no físico, no cognitivo, no emocional.

(...)

R – Eles dramatizam, não só a vivencia deles, mas o que eles desejam, também, aquelas coisas. Tem uma parte que fala (aqui) que o menininho faz o papel de mãe , porque, quer dizer, ele deve ter aquela pessoa - mãe, de repente, que ele não teve. Então, ele deve achar aquele papel, de mãe, muito importante. Então, na hora da brincadeira, o desejo dele, mesmo ele sendo um menino, ele quer ser a mãe, porque, aí, ele faz esse papel importante. De repente, ele não teve essa mãe no convívio dele. Então, além de eles dramatizarem as situações do cotidiano, que eles vivenciam, eles dramatizam também o desejo deles, entendeu?”



As observações das professoras remetem-se a alguns tópicos que aparecem no texto de Silva (2004) apresentado para leitura;

“(...) na ação lúdica a criança se relaciona com o outro estabelecendo papéis, caracteriza suas ações ‘compartilhando o significado’ com o outro. Desta forma, a interação, a linguagem e os gestos ganham importância central.” (pág. 112).



Além disso, indicam que o texto ampliou a possibilidade de compreensão sobra o papel central da brincadeira no “desenvolvimento físico, cognitivo e emocional das crianças.”

Elementos que haviam sido vislumbrados no debate anterior (Oficina 2) foram explicitados mais claramente, ou seja, amplia-se o poder de análise sobre o brincar, a partir da leitura do texto:

“R – Achei interessante, também, que ele também fala que essa brincadeira não é uma mera fonte de prazer e uma necessidade da criança, que foi o que ela falou. Ao brincar, você trabalha a competitividade, a socialização da criança com as outras, os limites, as regras. Então, ali não estão só usando a imaginação, só criando, eles vão estar trabalhando isso tudo.

P - É interessante, o brinquedo não só não é prazer, mas é como se fosse uma necessidade. A criança precisa brincar porque é a única forma que ela tem de experimentar coisas que ele quer experimentar, mas que ela não pode experimentar na vida real. Então, mesmo até uma coisa desagradável ela faz: - essa brincadeira é chata! Por exemplo, quando você citou a história da Ana, (G. IV, 6 anos, que na brincadeira era a professora) os outros aceitavam brincar daquilo mesmo sendo mandados por ela, mesmo querendo trocar de lugar, mas faziam, entravam na brincadeira porque eles precisam fazer aquilo, eles precisam experimentar aquela realidade que eles vêem no outro.”



Também, percebemos a incorporação de termos não habituais no discurso das professoras :

“G – Um barato que eu achei, também, é da ilusão para o real. No caso, como dizem aqui, (no texto em estudo) eles imaginam que a pedra seja uma comidinha, ou um prato, seja lá o que for...

R – É o jogo simbólico. Eles podem ter aqui um pratinho, mas de repente esse pratinho pode ser outra coisa.

“R – O brincar é uma coisa da interação da criança com o mundo, né? Assim, não só com as pessoas, com o mundo, que eu digo, a televisão, o rádio, a interação da criança como um todo, tudo o que está ao redor dela, que ela pode interagir...

G - O texto mesmo diz que é atividade lúdica, existe um vínculo entre a atividade lúdica e o real, o texto mesmo comprova mesmo, o real é realmente aquilo que eles vivenciam...”



Na oficina anterior, foi bastante debatida a representação da professora como agente da autoridade, do poder. Nesta oficina, entretanto, elas identificaram que a encenação lúdica não tem por base uma cópia de um ou outro professor, mas sim, da generalização, do que é ser professor, como destacado por Leontiev (1992):

“ (...) quando a criança está brincando não imita nem mesmo suas próprias ações concretas; ela não dramatiza e não transmite nada especialmente característico de um certo sinal; tanto em suas ações lúdicas como em suas operações lúdicas separadas, ela reproduz o típico, o geral. Esta é a diferença qualitativa entre a reprodução no brinquedo e a dramatização real.” (pág. 131).



No entanto, lembramos que essas generalizações não são arbitrárias, conforme assinala Kishimonto (2003), mas provêem de experiências anteriores, adquiridas pelas crianças em diferentes contextos, fato que as professoras identificam em episódios lúdicos presenciados por elas, como veremos a seguir:

“B – Uma coisa interessante que eu vi na minha sala (G. I, crianças de 3 a 4 anos) foi o Mario, eles estavam brincando... quem era? Era a Joana, Julio, Ivan e Amanda. Estavam brincando de casinha, aí, o Mario chegou e disse (falando com a Joana): - Deixa eu ser o papai? - Não, você não vai ser meu marido, quem vai ser é o Julio, que é mais bonito. Aí, ele: - Mas, eu vou te levar para passear, eu não vou deixar você em casa chorando, não. Porque ele me contou que a mãe dele fica em casa chorando: - Tia, minha mãe ficou em casa chorando. - É Mario, por que? - Porque meu pai saiu para passear e não me levou, nem levou minha mãe.

G - Não precisava nem ele te falar, bastava observar...

B - A primeira coisa que ele falou: - Vou levar você para passear. Ele falou isso para a Joana, entendeu? Joana (respondendo): - Mas, eu não quero passear com você. Eu já escolhi o Julio. E o Júlio falou assim: - Então, eu vou trabalhar. Aí, pegou o carro. Aí, o Mario (disse): - Então, eu vou trabalhar para você, de ônibus. E ficou falando as coisas dele, completamente diferente das do Julio. É o que ele vivencia em casa...

(...)

B - O Mario é assim, o pai é tudo para ele... E até nas brincadeiras é assim. Analisando as brincadeiras, reparando bem, ele traz muito coisa. Tanto que, na brincadeira, ele resolveu bater na amiga. Aí a Joana veio e disse: - O Mario tá me batendo! E o Mário: - Mas o que que tem tia, eu não bati por mal, meu pai também bate na minha mãe... Eu só bati para você não sair, não sair de casa.

G - Por isso que eu digo, as crianças são, muito, o reflexo dos pais. Se os pais tivessem essa consciência, né? Mas, acham que as crianças não vêem nada, não percebem nada, são pequenininhas, que não vão lembrar e chegam na escola, passam até vergonha, porque, imagina, a professora saber de uma coisa dessas.”



As frases sublinhadas mostram que as professoras identificaram, como outro aspecto importante da brincadeira, que a brincadeira livre como possibilidade da criança externar situações de conflito, dúvidas, necessidades que muito dificilmente apareceriam em atividades dirigidas. Fica evidente que crianças que vivem em ambientes perigosos ou agressivos repetem essas experiências em suas brincadeiras, como relatam outros pesquisadores:

“As crianças são capazes de lidar com complexas dificuldades psicológicas através do brincar. Eles procuram integrar experiências de dor, medo e perda. Lutam com conceitos de bem e mal.” (Kishimoto, 2003. pág. 67)



Ao final do debate, as professoras escreveram em tarjetas os aspectos teóricos, destacando os conceitos, extraídos do texto de Silva, que identificaram como novos e relevantes para a sua prática, vinculando-os a exemplos dados por elas de brincadeiras infantis:

“G – Eu tirei do texto a parte que diz: ‘Os elementos mediadores das práticas das práticas sociais, como a televisão, o rádio, os adultos em interação com a criança são elos mediadores de representações sobre modos de vida e de ações que não são vividas.’ Isso me lembrou a brincadeira que eu assisti em sala de aula, brincadeira de bang bang, uma coisa que eles não vivenciam, mas que eles imaginam a partir da televisão, desses elos mediadores e eles transmitem isso em sala de aula, a brincadeira de bang bang.”

“R – É, eu tirei de duas partes aqui, mas eu escrevi com as minhas palavras, que é: no brinquedo realiza o irrealizável no plano da ação e a criança pré-escolar envolve-se num mundo ilusório e imaginário onde os desejos não realizáveis podem ser realizados. A idéia é querer ser o que não é, e querer fazer o que não pode. E, aí, o exemplo, foi o que dei da turma da B: crianças brincando de montar em cima do touro, imaginando que são peões imitando a novela. No caso, a novela, a televisão seria o elemento mediador indireto entre eles.”

“B - Eu botei que ‘há uma relação direta entre o real e a configuração de encenações lúdicas, mais especialmente, da organização imaginária, como se a criança brincasse, exclusivamente, com base no que vive, cotidianamente’. Aí, dei o exemplo que eu acabei de falar, quando brincam de representar os papeis de pai e mãe. As crianças representam as coisas que vêem em casa.”



Oficina 4 – Repensando o faz de conta: Como você se situa nas brincadeiras livres e/ou dirigidas das crianças?

Para essa quarta e última oficina, apresentamos ás professoras um texto composto de recortes das suas próprias falas nas oficinas 1 e 2, solicitando que re-visitassem as opiniões e observações que externaram, anteriormente. Buscamos problematizar as reflexões do passado em relação às análises do presente.

O primeiro ponto que nos chamou a atenção foi a intenção de vincular suas observações anteriores com os conceitos teóricos advindos da leitura do texto apresentado na 3ª oficina. Confrontadas com os recortes das suas próprias falas, as professoras, procuraram traçar vínculos de identidade ou de complementação com os elementos trazidos pelo texto, o que nos pareceu bastante interessante na perspectiva da vinculação teoria-prática:

“G – acho que o texto foi essencial, a gente conseguiu aprender bastante coisa, de ver a importância da brincadeira, porque até então: – ah! Deixa eles brincarem, é legal para eles se divertirem, mas, a gente não estava observando que, de repente, ali, eles podem estar se desenvolvendo de diversas maneiras.

(...)

G - Semelhante com o caso das crianças que vivem lá no orfanato, eles omitem o caso lá, a vivência que eles tem. Semelhante não, é ao contrário. Já as crianças aqui, tão vivenciando aquilo, e eles põem, de repente, na brincadeira, para fora. Diferente do caso lá do orfanato, que eles tão vivenciando e não gostam. Eles querem aquilo que eles desejam, que eles não tem. O que eles vivenciam eles não expressam

G - Cada item que cada uma de nós falou aqui tem um sentido em relação ao texto.

R - Um é a imaginação deles, outro é o desejo, outro é a vivência..

(...)

G – Aqui, em relação aos elementos mediadores, quando a R.disse aqui, do filme, aquela parte do filme, no filme dos Incríveis, eles se beijam, isso é motivo de riso e tal. Aí, a R.explicou: - eles são marido e mulher, são casados, explicando que mamãe e papai e se beijam. Acho que os desenhos, hoje em dia, também são meio... Ela já estava dizendo que os meios, os mediadores atrapalham um pouquinho com relação a isso, tá entendendo? Porque, quando ela dá esse exemplo do filme dos Incríveis, que eles estão assistindo, beijando e tal, de repente, é ruim essa imagem para eles...”



Percebemos que, embora as professoras busquem resgatar os vínculos teoria-prática, como o conteúdo teórico ainda é novo e, possivelmente, embrionáriamente assimilado, tem relevância a observação advinda da vivência docente, dos seus valores e conceitos morais.

Nesse sentido, as professoras demonstram em suas falas elementos que, mesmo através de situações informais, como a projeção de vídeos, revelam atitudes pedagogizantes, moralistas e normativas, conforme destaca Fleury (apud, Oliveira, 2001) analisando situação que guarda similaridade com a que tratamos aqui:



“G - Mais, nada melhor do que eles brincarem daquilo que eles querem no momento, eles brincarem livremente, é o que eles mais gostam. A gente todo o dia, chega – ah! Vamos brincar, cada dia a gente inventa uma brincadeira, um exemplo quando chama para brincadeira dirigida tem um ou outro que começa – ah! Não... eles não querem só querem brincar livremente o tempo todo, que é onde eles estão imaginando extravasando todos os desejos deles, se não a gente vai estar impondo uma regra e não é aquilo que eles querem

B – Você vai para o terraço vai fazer uma brincadeira ai eles você falou que a gente ia brincar no terraço...

P - Quando vocês dão a orientação eles não consideram brincadeira...

G – Não, o Dudu cansou de falar - Mas hoje a gente não vai brincar? A gente fez um monte de atividade dirigida, mas hoje a gente não vai brincar? Brincar para eles é livremente.

R - E para fazer o que eles querem e não o que a gente... o jogo é assim: quem perder sai, blá, blá, blá...

P - ainda que eles fazem isso, espontaneamente eles fazem isso. Uma das brincaderias que passaram naquele vídeo estavam Bruno, Ivan, três crianças jogando naquela cestinha do basquete, se você prestar atenção tinha uma ordem, vinha um primeiro, depois o outro, sempre na mesma ordem, quando o Ivan tentava furar, eles não deixavam, tinha uma ordem, eles estabelecem uma ordem, mas isso é brincar!

R - É, mas foi a regra que eles estabeleceram, aí, não tem problema, mas quando é a nossa, aí eles já acham que..

G - Não brincaram o dia inteiro

R - Já vem aquela questão da professora que manda, que só impõe, eles devem pensar nisso, eles acham que não brincaram.”



Entretanto, ao apresentarmos a proposta de retornar à questão levantada nas primeiras oficinas: “O que é brincar?”, “Como é o seu olhar sobre as brincadeiras das crianças?, Como você se situa nas brincadeiras livres e/ou dirigidas das crianças?”, as professoras mostraram o impacto da recente descoberta, não somente sobre o papel da brincadeira no desenvolvimento infantil, mas a função do lúdico, para a própria experiência sensível dos pequenos elas escreveram ao final:

R - Brincar para a criança pequena é brincar livre fazendo o que ela mais gosta sem ter ninguém para estabelecer regras

Brincar livremente é perceber os desejos a sua criatividade e conhecer um pouco da sua vivência

G – Através das brincadeiras livres pude observar que há um desenvolvimento psico-motor, afetivo entre outros, onde as crianças podem estar interagindo com outras crianças e aprendendo a dividir mas não é só aprendendo a dividir tem o lado afetivo, mas tem outras coisas mais que não estou conseguindo agora passar para o papel.

B – R., o meu ficou parecido com o seu: Brincar de maneira livre escolhendo as brincadeiras e os participantes e, principalmente não tendo o controle do professor.



Tais comentários, por exemplo, estão sustentados pela surpresa das professoras ao constatarem que, aquilo que elas consideravam como sendo “brincadeiras”, para as crianças era compreendido como atividade dirigida. (Por exemplo: contar histórias para inventar o final, encenar historinhas, etc). Por outro lado, num movimento contraditório, só o que antes era denominado por “atividade livre” era interpretado pela criança como brincadeira de faz-de-conta, de fato.

“B – Você vai para o terraço. Vai fazer uma brincadeira. Aí eles (falam): - Ah! Você falou que a gente ia brincar no terraço...”

P – Quando vocês dão a orientação eles não consideram brincadeira...

G. Não. O Dudu cansou de falar (ao se referir à ida ao terraço): - Mas hoje a gente não vai brincar? E a gente já fez um monte de atividade dirigida, mas brincar para eles é livremente...”

R – É para fazer o que eles querem e não o que a gente ... (e explica como se estivesse dando orientações para as crianças): - O jogo é assim: quem perder sai, blá, blá, blá, blá... E aí, já vem aquela questão da professora que manda, que só impõe. Eles devem pensar nisso, eles acham que não brincaram...”



Nos parece que, talvez, tenha sido dado um “pontapé inicial”. Depois de falar e pensar sobre as brincadeiras das crianças pequenas, as professoras perceberam que o que elas chamam de brincadeira é bem diferente do que as crianças experimentam como ludicidade. Veremos ainda o que é possível avançar a partir daí.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cultura é parte constitutiva do imaginário individual e da natureza humana. Desde a infância é através das relações dialéticas, das trocs sociais que os modos de pensar, agir e sentir são compostos, transformando os processos psicológicos elementares em processos complexos. A atividade lúdica é esfera relevante para compreensão do meio cultural em que a criança vive e interage.

É na brincadeira que a criança estabelece uma ponte entre as condições do real e as possibilidades da imaginação. Vygotsky destaca a dimensão afetiva da atividade e é a partir do pensamento do autor que Rocha (1994) aponta a dimensão contraditória da atividade lúdica “(...) nem pura fantasia (no sentido de ausência/negação da realidade) nem pura realidade transposta”. A vivência lúdica está caracterizada pela possibilidade da criança transgredir o campo perceptual concreto.

Assim, como já abordamos anteriormente, o brinquedo cria uma zona de desenvolvimento proximal, já que, ao brincar, a criança se comporta de forma mais avançada do que nas atividades da vida real e aprende a separar o objeto do significado. Compreender essas características do brincar da criança pequena nos parecer ser essencial para o trabalho do professor.

Cabe lembrar que a ação docente é uma ação mediadora. A visão que o professor tem sobre as crianças e sobre o seu próprio papel enquanto educador, sem dúvida, exerce importante efeito sobre o modo de compreensão do “lócus pedagógico”.

Verificamos, a partir das oficinas realizadas nessa pesquisa que, embora as professoras reproduzam mecanicamente afirmações relativas à importância das brincadeiras na educação infantil, estão longe de significar a posição que ocupam diante dos acontecimentos lúdicos; os eventos de brincar.

Como indica Rocha (1994), os professores têm como referência as diretrizes que sua cultura oferece sobre a sua função e, no geral, o saber escolar se dirige para a reprodução e não para a criação, ou seja, o brincar e o imaginário não são os caminhos mais valorizados na prática pedagógica que tende a priorizar os espaços tradicionais de aprendizagem, com o intuito de transmitir o conhecimento que os educadores consideram que já possuem. Com isso,

“acabam por deixar marcas no que diz respeito ao desenvolvimento e a imaginação das crianças pela interdição e censura, pelo controle de disciplinas e julgamentos das condutas e pela normatização dos conteúdos”.(LEITE, 2004, pág. 90).



É inegável a importância, no processo de formação de professores, do domínio de técnicas, conteúdos e habilidades de ensino, no entanto, acreditamos poder afirmar que isso não é suficiente. Consideramos necessário formar o professor para essa dimensão mais estética da infância, perceptível no brincar, levando em consideração nesse processo toda a sua bagagem docente e sua história de vida, ou melhor, a sua própria experiência sensível.

Isso é indispensável para resgatar o direito da criança a uma educação que respeite o seu processo de construção do pensamento e sua produção, permitindo o desenvolvimento de suas próprias linguagens. Se, como diz Paulo Freire, “a leitura do mundo precede a leitura da palavra” (Freire, 1986, pg.22), serão necessários profissionais na educação infantil que possibilitem que a criança, ao vivenciar a sua realidade, possa compreendê-la, percebê-la criticamente e chegar a suas próprias conclusões.

“É bem verdade que a educação não é a alavanca da transformação social, mas sem ela essa transformação não se dá.

Nenhuma nação se afirma fora dessa louca paixão pelo conhecimento, sem que se aventure, plena de emoção na reinvenção constante de si mesma, sem se que arrisque criadoramente.

Nenhuma sociedade se afirma sem o aprimoramento de sua cultura, da ciência, da pesquisam da tecnologia do ensino. E tudo isso começa com a pré-escola.” (Paulo Freire, 1993, pág.53).



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



ANDRADE, Cyrce M. R. Junqueira de – Vamos Dar a Meia-Volta, Volta e Meia Vamos Dar: o Brincar na Creche – in: OLIVEIRA, Zilma Moraes Ramos de (org.) – Educação Infantil: muitos olhares – 5ª edição, SP. Ed. Cortez, 2001, págs. 69 a 106.

FREIRE, Paulo – A Importância do Ato de Ler – SP, Ed. Cortez, 1986.

MEYER, Ivanise Corrêa Rezende – Brincar & Viver – Projetos em Educação Infantil – RJ – WAK Editora, 2003.

SILVA, Daniele Nunes Henrique – Como Brincam as Crianças Surdas – São Paulo: Plexus Editora, 2002.

KRAMER, Sonia – O Papel Social da Pré-escola – 1985 – In: ROSEMBERG, Fúlvia (org.) – Creche – Coleção Temas em Destaque – SP, Ed. Cortez, 1989.

ROCHA, M.S.P.M.L. A Constituição Social do Brincar: modos de abordagem do real e do imaginário no trabalho pedagógico. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação. UNICAMP, 1994

VYGOTSKY, Lev Semenovich – A Formação Social da Mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores – organizadores Michael Cole (et al.); tradução José Cipolla Neto, Luis Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche – 6ª edição – São Paulo: Martins Fontes, 1998 (Psicologia e Pedagogia).

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