Bem se vê que não pagou ingresso! Agora, é ao consolo da fresta, no catar fragmentos do espetáculo que pulsa entre quatro paredes. São risos de goelas, tapinhas nas costas, deboches e remoques na cantata à mesa. Reunião de parentes laterais, horizontais, verticais, atados por, não obstante frouxos os laços, indeslindáveis outroras. Vêm e vão albores, e permanece a solidão do sótão nos olhos da boneca caolha. O menino pobre dá conta de sua história: era uma vez meninos caindo de podres de tão ricos, que viviam ganhando no Natal presentes em caixas enormes embrulhadas em papel colorido. Gritavam esses meninos ricos sua alegria, à rouquidão. E depois? Bochechas rosadas, choravam seu ridículo ao lado do brinquedão que fazia tudo, e só tudo. "Mãe, me dá um caminhãozinho de plástico, bem vagabundo, que se quebra ao primeiro piparote, daqueles da lojinha da D. Nice?" A mãe, só uma cara de impaciência: "Filho ingrato!"
O palco da macarronada com frango assado é a casa da Vó Lia, essa que ri boas rugas no canto da boca, olhos de luz, dentes uniformes, cabelo curto e grisalho, cara de avó de Chapeuzinho Vermelho, olhar puxado de lobo mau para quem vier se meter a besta convidando-a para integrar um desses grupos de terceira idade. "Tenho tempo para essas coisas não, moço, que meu negócio é cuidar desses netos para os pais poderem viver seu tempo. É eu dentro de casa, cozinhando, cuidando desses netos, ouvindo problemas conjugais de filhos, lavando, passando, fazendo tudo. É eu avó, sem tempo para terceira idade, apenas para a primeira idade, essa dos meus netos".
Quisesse fazer raiva à Vó Lia era pronunciar as palavras mágicas "Terceira Idade". Nessas reuniões de família a gurizada se esbaldava, sussurrando por querer "Terceira Idade" e "Terceira Idade" e "Terceira Idade". E lá vinham os adultos com o caudal de teorias: "Terceira Idade é a partir de 70 anos". "Não, depende do país". "Que nada, li numa revista que idade é a que a gente acredita ter". A conversa agora descambava para a filosofia ébria de fim de noite. "Mas se lá fora raia o dia!" "E quem respeita o andar das horas?"
Vó Lia, que não é boba, vai para o quarto ver televisão, enquanto não muda a estação da conversa. Mamãe revira-vira um sem-fim de badulaques, sai do banheiro com uma toalha pendurada no ombro, ajeita vasilhas na mesinha, limpa aqui, vocifera algo, passa a mão nos cabelos. E o dia segue num sol de "spray" dourado espargido sobre árvores secas. Ao longe, um grito de menino, grito de quê? Grito. Um grito eterno, desses gritos para ouvidos apurados. Quem busca respostas, não venha pedir perdão! Um só grito não se bisará, coroa ele a infância perdida e o despencar de frutos bichados. Pena mesmo é nenhuma goiaba fazer jus à saliva ajuntada nas quatro estações. Mas para toda contenda haverá uma sabedoria, e fruta bichada come-se bem é no escuro, sem asco, num assobio à gula.
Dia de tanta claridade será o breu escondido sob luz coruscante. Mas não se negará a verdade da segunda-feira, desse primeiro e único verdadeiro dia que não se permite sequer um filete de saudade do fim de semana derradeiro. Segunda-feira é sem fantasia.
Hoje nem é domingo, mas parece. O sol de hoje é um regalo aos que buscam uma montanha distante cujo topo apunhala nuvens. O dia de hoje, seu nome é Rosa, linda no outono dos quarenta, confusa menina, jogando bola com as duas filhas, Tininha e Tânia, Tininha a de dez anos, Tânia a de doze, duas meninas querendo ser moças, apalpadas pelas mãos familiares de avós, primos e tios. E Rosa, aos quarenta, adorando ser menina, cercada das filhas Tininha e Tânia e dos sobrinhos, dos oito sobrinhos de idades entre seis e quinze. Rosa tem um rabo de cavalo, blusa de alcinhas cruzadas nas costas. É ela, sim, a mais menina. As filhas, as duas, tanto mais moças quanto menos crianças. Queira ver! São elas mais donzelas que qualquer bela adormecida em livros de bordas reviradas.
Fico boba de estar aqui contando isso, mas a realidade me vem de um encontrão, arrotando uma perfeição empedernida. Aqui nenhum pé de frango se desperdiça, tudo útil. Senão Rosa não se esmerava tanto em sua arte e os primos não riam de quando em quando lançando um rabo de olho à platéia. Até a folha seca quer se arvorar em personagem, pois dela vem o aviso da árvore que despeja galhos mangnanimemente sobre a água, fazendo a sombra tão a gosto de domingos. E da árvore as frutinhas caem mansas fazendo um marulho peculiar. Daí que o menino arremessa essas frutinhas nas costas do pai, e este leva a mão às costas, entretido com a algaravia das muitas vozes. O menino aproveita e lança mais frutinhas nas pobres costas, sem remissão.
E eis que chega a hora da troca de pequenas ofensas, de traquejos e marolas. Alguém com uma máquina fotográfica cega o momento com um "flash" que silencia movimentos e esforço. As pessoas rindo na fotografia contam de si sua saga. Amarelecidas, nunca morrerão, mortas são. E ninguém saberá ao certo se aquela casa um dia viveu.