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Artigos-->A ventura desta vida -- 23/02/2002 - 22:06 (Alberto D. P. do Carmo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Embora Sílvio Caldas tenha dito que seria a cabrocha, o luar e o violão, há algumas arestas a serem aparadas, ou melhor, acrescentadas, para sermos, tal qual Dom Manuel, venturosos.



Em que a ventura se traduz na hora de frigir os ovos? Claro, ver a mulher amada descalça, pisando nos astros distraída, é de uma felicidade épica, superior, em muitos pontos percentuais, às aventuras do Spielberg, e às brincadeiras de cabra-cega, que os gazeteiros de Brasília adoram.



O luar, furando nosso zinco, é coisa que hoje em dia nem barraco de favela tem mais. Depois do surgimento das telhas de amianto, zinco virou coisa do século passado. Além disso, o nobre metal causaria interferência nas antenas parabólicas, e lá iria o Ibope da Globo ladeira abaixo. O que seria da (ex)líder de (minguante)audiência sem as telhas de amianto?



O violão, esse continua sendo o vilão das paixões. Que mulher resiste a uma serenata? Pelo menos as que moram no primeiro e segundo andares, porque às outras, só se inventarem serenata via celular, que até seria romântica, não fosse o custo do impulso - não há malandro que não sucumba à voracidade desses radinhos de pilha turbinados. E ligar a cobrar seria uma extrema falta de cavalheirismo - se é que alguém ainda se lembra disso - além de se correr o risco do pai da moça atender. Se bem que, ao futuro sogro, nem o direito de jogar um balde d água no seresteiro restaria, visto que algum colega do mesmo pode estar cursando advocacia, e o preço dos honorários e custas de indenização andam pela hora da morte.



Quanto à nossa vida ser um palco iluminado, está tudo bem, você encontra um karaoquê a cada esquina. Agora, viver vestido de doirado, mano, aí a coisa fica comprometida, pega na jugular. Bota uma calça velha e desbotada e estamos conversados.



Se você também anda cheio dos guizos falsos da alegria, é só pegar o carro e pedalar uns cem quilômetros a partir do marco-zero lá da Praça da Sé. Vai chegar no mínimo em Itu, e a alegria será enorme em algum pesque-pague, ou em algum rodízio. Só não valem os de pizza, por motivos óbvios.



Se você se acha um palhaço das perdidas ilusões, não se desespere, somos muitos. Mas, como de ilusão também se vive, contrate um mágico para o próximo aniversário do seu pimpolho na salinha reservada do McDonald s, e se deleite.



Se o seu barracão no morro do Brooklin, ou dos Jardins, tiver o cantar alegre de um viveiro, prepare-se. Mais cedo, ou mais tarde, aparece o Ibama, ou algum hippie com camiseta estampada de alguma ONG ecológica, e você vai passar uns dias no xilindró, se o delito não for afiançável. Passarinho na gaiola, hoje em dia, só o do cuco. Coisas do modernismo, nem repare.



Caso suas roupas comuns estejam dependuradas na corda, qual bandeiras agitadas, parecendo estranho festival, há aqui vários aspectos a considerar. Primeiro, roupas dependuradas na corda causam divórcio litigioso na certa, não tente a ousadia. Segundo, se ficar agitando bandeirolas por aí, vão confundi-lo com os sem-terra, ou os sem qualquer coisa; dispense. Terceiro, estranho festival é o que mais se vê por agora. A Globo faz um por ano, é só programar o videocassete.



Se a porta do seu barraco é sem trinco, não vai ser a lua quem vai furar o seu zinco, mas alguma escopeta ou um 38 raspado; descarte essa parte.



Agora entendo porque o Sílvio Caldas demorou tanto a se aposentar. Ele, além de teimoso, queria poupar-nos do futuro apressado que chegava.



Enquanto isso, acho que o melhor é sair por aí pisando na faixa de pedestres, distraído, tentando agarrar a sonoridade que acabou, e sentindo saudades da mulher, que um dia um menino, feito um pombo, viu num sonho e voou...



P.S. Para os mais jovens, que talvez pensem que chão de estrelas seja alguma calçada de Hollywood, uma frase feita do Paulo Coelho, ou alguma foto recente do Hubble, ver abaixo:



Chão de Estrelas

(Silvio Caldas/Orestes Barbosa).



Minha vida era um palco iluminado,

Eu vivia vestido de doirado,

Palhaço das perdidas ilusões . . .

Cheio dos guizos falsos da alegria,

Andei cantando a minha fantasia

Entre as palmas febris dos corações.

Meu barracão, no morro do Salgueiro,

Tinha o cantar alegre de um viveiro,

Foste a sonoridade que acabou . . .

E hoje, quando do sol, a claridade

Forra o meu barracão, sinto saudade

Da mulher pomba-rola que voou . . . .

Nossas roupas comuns dependuradas,

Na corda qual bandeiras agitadas,

Pareciam um estranho festival . . .

Festa dos nossos trapos coloridos,

A mostrar que nos morros mal vestidos

É sempre feriado nacional.

A porta do barraco era sem trinco,

Mas a lua, furando o nosso zinco,

Salpicava de estrelas nosso chão . . .

Tu pisavas nos astros distraída,

Sem saber que a ventura desta vida

É a cabrocha, o luar e o violão . . .



























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