No final de 1968, dois meses depois de chegar a Assunção, no Paraguai, visitei a Missão Cultural do Brasil onde, entre brasileiros e paraguaios, conheci o diretor José Neistein paulista bacharel em filosofia pela Universidade de São Paulo e PhD em filosofia com tese sobre estética defendida na Universidade de Viena, que se desempenhava com singular habilidade e pragmatismo embora as dificuldades decorrência do ambiente político da ditadura de Alfredo Stroessner, anos depois, indicado diretor do Instituto Cultural Brasileiro-Estadunidense em Washington, DC; o gravador Lívio Abramo fugido do regime que se instalara no Brasil em 1964, diretor do atelier de gravura; sua esposa a professora Dora também do corpo docente da Missão e habilidosa responsável pelos cursos do jardim de infância; o escritor Mario Halley Mora autor da aplaudida peça teatral Um rosto para Ana , com estreia em abril de 1970; as irmãs Edith e Nelly Jimenes, respectivamente destacadas gravadora e compositora; o poeta e escritor Miguel Angel Feranandez; a respeitada poetiza Josefina Pla e tantos outros nomes que guardo na memória. Em um dos eventos promovidos na sede da Missão, em 1969, encontrei a Romulo Augustulo professor universitário e poeta integrante de um seleto grupo de intelectuais e artistas, que logo, por ser extrovertido, permitiu sentir seu espírito curioso, ativo e insatisfeito com a realidade do dia a dia dos anos da segunda metade da década de 1960.
Romulo, em um dos encontro na casa de Lívio Abrano em 10 de dezembro de 1969, ofereceu-me, com dedicatória daquela data, exemplar da segunda edição da sua antologia de poemas Fragmentos 68, corrigida e ampliada, com capa do gravador Bruno Esse e apresentação gráfica de Jorge Duarte, cuja tiragem de 210 exemplares estava sendo
Os trinta e sete poemas de Romulo, sem títulos, são numerados com algarismos romanos e registram situações dramáticas e de desespero pessoal para consigo mesmo, face à realidade da história. Aspirações frustradas e inconformismo são como que denominadores comuns nos seus poemas. Parece não ser por acaso que esta pequena antologia de Romulo tem como título Fragmentos, fragmentos que necessariamente não precisam ser lidos na ordem em que aparecem nas páginas da antologia, mas que podem ser visitados aleatoriamente. Os poemas nela inseridos, com exceção do quinto, são todos curtos, a maioria não ocupando nem mesmo uma página, e, assim, se parecem como azulejos de um grande painel onde é contada uma história com vários capítulos, todos eles densos.
Assim como outros paraguaios do mundo cultural e artístico de Assunção, Romulo manifestava claramente o quanto ainda sentia a morte do promissor jovem escritor René Dávalos (1945-1968) há menos de um ano vítima de trágico acidente automobilístico, sentimento este patente no registro poético da primeira página da antologia:
Está muerto el poeta. O poeta está morto.
Y ya no sé E já não sei
como llorar su muerte. como chorar sua morte.
Tal vez, Talvez
rogandote, mi amada, minha amada, rogando-te,
que me dejes solo. que me deixes só.
Y que no despiertes, E que não despertes
con tus besos, com teus beijos
el silencio o silêncio
de los que duermen. dos que dormem.
A página subsequente é ocupada com a dedicatória de Romulo não só a Dávalos, mas também ao jovem e promissor poeta lírico Nelson Roura, outro dos seus amigos paraguaios que tanto prezava, ceifados no início de suas brilhantes carreiras:
A los poetas Aos poetas
Nelson Roura Nelson Roura
y René Dávalos e René Dávalos
y al silencio e ao silêncio
de todos los hombres de todos os homens
Para melhor compreender esta obra de Romulo é indispensável lê-la por inteiro e conhecer a introdução/prefácio, de novembro de 1969, assinada por José Neistein que aqui transcrevo em homenagem a estes dois amigos brasileiros que fiz em terras guarani:
“Há exemplos concretos de que o momento poético é possível, sem que a poesia que o contenha seja artística, técnica ou esteticamente considerada. E quantas vezes a poesia de qualidade professional não é a-poética? Neste sentido, a poesia de Romulo Augustulo é, sem dúvida, a-literária. Pois se a expressão literária não é sua vocação, o verso constitui sua forma legítima de expressar-se. E neste paradoxo está o nervo da questão. Paradoxal a atitude. Paradoxal o produto. Seus versos vivem do paradoxo e a ele se restringem. Poesia de autoprojeção, de análises, catártica e radical, ela nos dá o itinerário de um autor a procura do seu eu e o caminho que o leva da infância a idade da razão. Mas trata-se de um caminho parecido com um tapete que vai se enrolando atrás do andarilho, à medida em que seus paços avançam. E tudo está presente, ao mesmo tempo, na densidade do rolo. E tudo é ao mesmo tempo o eu, em busca de identidade. Evocações e traumas, experiências remotas e recentes, ternura e sensibilidade explosiva, ódios e paixões, vivência e negação da coordenada histórico-social, destruição e autodestruição, reconstrução e fé, religiosidade negativa e deslumbramento, incomodamente contidos nas imagens insólitas e nos efeitos inesperados, nos lançam continuamente ao mais irremediável de seus múltiplos redemoinhos, aí onde a simplicidade coloquial da linguagem expressa terríveis contradições, desmesuradas e desproporcionadas, e, apesar disso, palpitantes e reais. Hiroshima e Luther King, Betsabá e Quiíndy , Pitucha y Jucutuquara são símbolos e dados externos que aparentemente levam à poesia, mas que, na verdade nos dão o retrato de corpo inteiro e a radiografia emocional de um ser humano”.
Para aqueles que não tiveram oportunidade de conhecer a referida antologia do capixaba Romulo Augustulo, incluo como final deste artigo quatro dos seus poemas na versão original e em tradução para o português que fiz durante os mais de quatro anos de Paraguai.
VIII
Mi pátria es esta casa Minha pátria é esta casa
y todo lo que está em ella. e tudo o que está nela.
Aquí, plante uma rosa... Aqui, plantei uma rosa...
y el tiempo deshojó e o tempo arrancou
sus pétalos. suas pétalas.
Aquí, Pitucha se quedará Aqui, Pitucha ficará
durmiendo, silencíosa... dormindo, silenciosa...
Y, con ella, E, com ela,
se quedarán todos los perros ficarão todos os cães
de mi niñez. da minha infância.
Mañana, Amanhã,
yo volveré a ver esta casa, voltarei a ver esta casa,
con los ojos distantes com os olhos distantes
del pasado. do passado.
Pero, Mas,
mañana, amanhã,
el paisaje ya no será a paisagem já não será
el mismo. a mesma.
Quién es Pitucha? Quem é Pitucha?
Pregunten a los niños ergunte aos meninos
de Biafra, de Hoiroshima, de Biafra, de Hiroshima,
de Hanoi, de Saigon, de Hanoi, de Saigon,
de los ghettos de Varsovia dos guetos de Varsóvia.
- que ellos les hablarán - que lhes falarão
de Pitucha. de Pitucha.
XV
Uno aprende a escribir Alguém aprende a escrever
y escribe... e escreve...
aprende a hablar aprende a falar
y habla. e fala.
Habla y escribe Fala e escreve
- y las palabras emergen - e as palavras emergem
del fondo, opaco, do fundo, opaco,
en que duermen, em que dormem,
silenciosas, silenciosas,
las ideas. as ideias.
Y las palabras despiertan E as palavras despertam
el silencio del hombre. o silêncio do homem.
Se puede hablar de amor, Se pode falar de amor,
o de uma rosa que fenece, ou de uma rosa que fenece,
o de un perro que muere. ou de um cão que morre.
Se puede hablar del cielo Se pode falar do céu
o del infierno... ou do inferno...
del hombre que parte do homem que parte
- o del hombre que llega. - ou do homem que chega.
Se puede hablar de Pitucha, Se pode falar de Pitucha,
de Biafra, de Hanoi, de Biafra, de Hanoi
de los ghettos de Varsovia, dos guetos de Varsóvia
de los niños de Hiroshima. dos meninos de Hiroshima.
Pero, a esta altura, Mas, a esta altura,
ya nada altera el sentido nada mais altera o sentido
de las horas que se arrastran das horas que se arrastam
y que se pierden, e que se perdem
lentamente. lentamente.
XIX
Ven comigo, si quieres, Vem comigo, se quiseres,
y yo te mostraré el tesoro e te mostrarei o tesouro
que los hombres han buscado, que os homens tem buscado,
inútilmente. inutilmente.
Pero, Mas,
vem despecio, vem devagar,
en silencio. em silêncio.
Y no hables a nadie E não fales a ninguém
de lo que hemos hallado sobre o que temos falado
en el camino. no caminho.
Tampoco hables de la guerra, Tão pouco fales da guerra,
o del hambre, ou do homem,
o de los niños que están muriendo. ou dos meninos que estão morrendo de fome.
Si quieres, Se quiseres,
puedes hablar de la luna podes falar da lua
- antes que los hombres - antes dos homens
allá descendieron. terem lá descido.
O de uma simples rosa. Ou de uma simples rosa.
O de um beso no besado. Ou de um beijo não beijado.
O de todos los amantes del mundo: Ou de todos os amantes do mundo:
los de ayer, los de hoy, los de mañana. os de ontem, os de hoje, os de amanhã.
Y de la sonrisa de la serpiete, E do sorriso da serpente,
en el Paraiso, no Paraíso,
o del espanto de Dios ou do espanto de Deus
- cuando los senos de Eva - quando os seios de Eva
calmaron el desespero de Adán. acalmaram o desespero de Adão.
Y entoncer descubrirás, E então descobrirás,
si te cuidas, se te cuidas,
y si no despiertas e se não acordas
a los que duermen, aos que dormem,
que en tu corazón que em teu coração
se encierra tu tesoro. se encerra teu tesouro.
XXXVI
Paremos los relojes Paremos os relógios
- si es posible. - se é possível.
Y vamos a construir E vamos construir
nuesta casa nossa casa
en la cumbre de la montaña. no cume da montanha.
Y que nadie descubra E quem ninguém descubra
nuestros escondrijos. nossos esconderijos.
Y que ninguna voz E que nenhuma voz
interrumpa mi silencio. interrompa meu silêncio.
Puede ser em Jucutuquara Pode ser em Jucutuquara
o en Quiíndy ou em Quiíndy.
Y te llamare Isolda, E te chamarei Isolda,
o Beatriz, ou Beatriz,
o Betzabá, ou Betzabá
o Rebeca. ou Rebeca.
Y me llamarás E me chamarás
como lo quieras. como queiras.
Lo que importa O que importa
es que estemos solos. é que estejamos sozinhos.
Y que yo fecunde tu carne E que eu fecunde tua carne
con mi amor. com meu amor.
Y te alimente E te alimente
com mis besos. com meus beijos.
Y que todo reempiece ahora, E que tudo recomece agora,
como si después de un dilúvio como se depois de um dilúvio
- y que nuestros hijos - e que nossos filhos
no se llamen Abel ni Caín. não se chamem Abel e Caim.