Publicado na Tribuna da Imprensa em 02/11/2000 na coluna de
Hélio Fernandes.
( I )
Dezenas de profissionais esportivos bem intencionados, ao longo de suas experiências no ramo, costumam comentar as causas que estão levando nossos clubes à uma situação aparente de falência (não necessariamente financeira. Pense na falência de credibilidade). Como raramente existem atividades esportivas nas escolas públicas, sobrevivem claudicantes dentro dos clubes. Mesmo o futebol, que gera alguma fonte de renda, está em decadência.
São citados fatores do tipo : violência urbana, dificuldades de trânsito, preços dos ingressos,
transmissão pela TV, tabelas mal elaboradas, regulamentos confusos e outros. Não temos
dúvidas que são fatores importantes. No entanto, existem causas mais profundas (as mesmas
que estão afundando nosso País), que não são enfatizadas e a população de baixa cultura não tem meios de perceber, pois passa a maior parte do tempo pressionada pela necessidade
de sobreviver, mesmo sem dignidade. Se na Côrte (de onde deveriam partir os melhores exemplos), são praticados horrendos desmandos que terminam em pizza com marmelada,
é claro que muitos dirigentes de clubes - alguns usaram o esporte como trampolim para obter uma cadeira na Casa do Povo (?) preferem a atual estrutura, que encobre contabilidade
em caixa 2, lavagem de dinheiro e atos do gênero. E por que estes fatos não são citados com
a veemência necessária ? O bom jornalista nem sempre vai receber apoio do dono do jornal ou da emissora de TV para ficar insistindo no assunto. As orientações dos incomodados (até sugerindo que alguns patrocinadores são amigos deles) terminam por pressionar a entidade a
se desviar para outros escândalos. Nem mesmo um fato filmado por uma nítida câmera secreta, produz material para punirmos aos que manipulam a boa fé do público. Imagine a simples palavra de um honesto jornalista. Ele vai ficar dando murros em ponta de faca sozinho ? O atual espírito de conformismo que tomou conta da Sociedade, não lhe dá ânimo para empunhar esta bandeira. Quem pode decidir está comprometido (mais de 70 %) de alguma forma. Quem tem boa intenção é impedido de chegar ao poder para tentar mudar esta estrutura. A partir do topo, pelo efeito cascata, 90 % dos segmentos de nossas vidas seguem este modelo podre (exceto aqueles que não envolvem altas cifras). E da mesma forma que a violência estampada na 1a. página já não causa mais espanto, o fato de alguns dirigentes e empresários tirarem a sua comissão numa transação de jogadores é considerado um acontecimento natural. Afinal, estes bondosos
sujeitos sacrificam a sua vida particular em prol do clube a que tanto amam. São raposas convertidas tomando conta de galinheiros entupidos. E a galera que se sacrifica por este sonho e paga (ingressos, TV a cabo, produtos estampados nas camisas), acredita cegamente nos
esforços que eles fazem para elevar o nome do clube.
( II )
Nas profundas e inabitáveis minas, estão os desejados veios de ouro. Mas os donos delas vivem a milhares de quilômetros de distância. No Brasil, a cada ano, surgem dezenas de novos valores no futebol. Mas os empresários donos de seus passes, rapidamente os levam
para negocia-los no Mercado Persa, faturando milhões. A seleção é a vitrine para exibição. Os empresários determinam as convocações (por alguma comissão, é claro). Quando o produto (jogador) está com o prazo de validade quase vencido, é revendido à origem com o rótulo de experiente, criando falsas esperanças entre os desiludidos torcedores daqui.
Em 90 % dos casos, ele já está financeiramente seguro e já não é pressionado para correr com a mesma ansiedade que domina milhares de jovens nativos, que nem sempre despontam por não terem padrinhos nos clubes onde vão tentar a sorte. Os clubes tradicionais, que viveram numa era romântica em que abastados beneméritos doavam verbas para a compra
de um belo jogador, caso não entrem no esquema, em breve serão engolidos pelos vorazes leões na arena da miséria. Se o País não oferece oportunidades nem aos jovens com preparo
universitário, quanto mais a atletas que passaram quase 15 anos jogando, sem tempo nem
para curtir a família nem estudar um pouco que fosse. Daí, eles aceitam esta regra de
pertencerem a gananciosos proprietários de seus passes. É o mesmo modelo que controla
a produção de alimentos : o que custa X no campo, depois de dois ou 4 atravessadores (carinhosamente chamados de empresários) passa a custar 5X. Jogadores do tipo Afonsinho
não são bem recebidos, pois oferecem o risco de contaminar as cabeças dos demais atletas do elenco, com idéias arrogantes.
( III )
Da mesma maneira que o governo (?) culpa o salário dos trabalhadores pela inflação,
os dirigentes dos clubes alegam que o time não está bem em função do esquema tático usado pelo treinador, mesmo não sendo ele o que perde 3 a 4 gols por jogo a 5 metros da baliza do time adversário. Jogador não pode ser queimado pois é mercadoria. Treinador, ninguém está comprando no momento. Algumas vezes colocam um massagista no comando
da equipe e ele dá certo, pois cai nas boas graças da rapaziada.
Alguns poucos dirigentes saudosistas, ainda imaginam que os atletas somente jogam por amor à camisa. Eventualmente, há uma coincidência do jogador estar recebendo seus salários do clube que ele adotou quando criança. Porém, se suas necessidades básicas não estão sendo
atendidas em virtude de salários atrasados, o pensamento do sujeito não consegue se fixar na sua atividade profissional e o rendimento fatalmente desaba. Mesmo com as contas em dia já tem sua atenção desviada : se começa a se tornar destaque, boatos sobre altos contratos no
estrangeiro surgem à sua volta. Se ele é apenas um atleta regular e um colega que começou
com ele recebe um aumento ou um craque é contratado para ganhar cinco vezes mais do que o resto do time, naturalmente o espírito da desunião aflora e quebra a harmonia que contaminava
o grupo. Este é o pensamento que começa a se alastrar, numa época em que na hora da comemoração do gol, o autor corre em direção à placa de propaganda do seu patrocinador, para garantir a renovação no próximo período.
Se numa Empresa existem muitos caciques e poucos índios, ela tende a ruir. Se Diretores de clubes começam a dar palpites na escalação, o time tem poucas chances de dar certo, pois fica evidente a falta de comando. Os jogadores tendem a buscar no técnico, a segurança de um pai severo (mas justo). Se as empresas destes cavalheiros fossem administradas como seus clubes, já teriam se transformado em banca de marreteiro (camelôs) há muitos anos.
Se dirigentes de Federações se eternizam no poder através de ligas fantasmas ou de bons conchavos com alguns influentes dirigentes de clubes, não há oxigenação de idéias. Alguns jornalistas denunciam e gritam, alertando sobre os desleixos que nos afundam. Porém, quem
pode decidir não se mexe, pois de alguma forma tem algo negro no passado que o outro sabe. Há quantos anos a mídia denuncia a evasão de renda nos estádios ? O que foi feito até
agora para solucionar o problema ? Será que só os roleteiros estão levando ?
( IV )
Os escândalos de papeletas coloridas e CPI’s de apitos e cornetas já foram esquecidos, assim como os : COMIND, mandioca, ferrovia do aço, bicicletas, SIVAM, precatórios, pasta
rosa (não a que serve para limpeza doméstica). Da mesma forma que os dirigentes da nação viajam acompanhados por 40 ou 60 “aspones”, os chefes de delegações esportivas também levam suas comitivas (as federações pagam as despesas), com o objetivo de distribuir a carga de produtos comprados no estrangeiro. Na volta, no aeroporto, faz-se de conta que cada 5 caixotes pertencem a um “aspone” diferente. Se o time volta campeão, passam por um portão lateral, sem fiscalização. Quem garante que dentro destes embrulhos não existem armas e drogas ?
Se o código de Justiça é convenientemente mantido obsoleto pela Côrte (para garantir a impunidade de filhos que queimam índios e atropelam trabalhadores em pontos de ônibus),
e´ claro que o código penal esportivo segue o mesmo modelo. O botinudo pode bater à vontade e o indisciplinado pode afrontar o juiz sem susto, pois o dirigente bonzinho vai dar um jeito de enquadrá-lo num artigo mais ameno para que a pena seja convertida em multa.
Numa época em que os salários estão estacionários, a maioria das empresas está optando pelo justo modelo da participação dos empregados nos lucros obtidos. Os empregados recebem um salário mensal e seus ganhos só podem aumentar se a empresa obtiver alguma lucratividade em função do aumento da produtividade decorrente do empenho e dedicação de cada sócio da empresa. De forma similar, cada jogador deveria ter um salário menos afrontoso em relação ao operário (este sim, herói brasileiro) e receber uma participação nos lucros do clube, conforme
gols marcados pelo time, vitórias obtidas e títulos conquistados. Nas derrotas, caso algum
jogador tivesse sido expulso (deve ter contribuído para a derrota) por reclamação junto ao árbitro, todo o time seria descontado devido às despesas feitas com advogado para defende-lo. O elemento expulso, ainda teria mais um desconto por cada jogo que ficasse suspenso. A partir daí, estaríamos realmente começando a praticar um futebol mais profissional, honesto e responsável.
( V )
Eventualmente (e ousadamente) comparamos 4 ou 5 clubes nossos aos melhores europeus, confundindo popularidade (em função dos ótimos jogadores que possuímos) com estrutura (retratada pela quantidade de sócios de cada agremiação de além-mar). Não é preciso ir lá para sabermos que um clube de 2a. linha de lá, dá de 5 x 0 (em administração) em qualquer um dos nossos que se rotulam como ilha de excelência. Como dizemos há mais de 50 anos, nosso futebol só serve de modelo, dentro das 4 linhas. Se bem que a evolução dos estrangeiros e a “máscara” de alguns atletas nossos, está nivelando os jogos.
Se o governo (?) nos cobra altos impostos e nos devolve ruas esburacadas, falta de segurança, escolas e hospitais, por que dirigentes esportivos fariam melhor (não devemos nos esquecer que muitos deles estão lá na Câmara dos Defuntados) ? Quem paga ingresso sente falta (em 95 % dos estádios) de higiene, fiscalização séria nos bares, acomodações adequadas, iluminação mínima, sistema de som audível, telefones públicos, socorro médico, placas de sinalização, horários adequados, transporte e outras dezenas de detalhes. Da mesma forma que a Côrte não efetua plebiscito junto à população para obter a opinião dos pagantes de impostos, as
federações nunca pesquisaram junto aos torcedores que tipo de competição eles desejam acompanhar, em que condições. Eventualmente, algumas emissoras de rádio ou jornais realizam pesquisas ligeiras, mas os resultados não são encaminhados a quem deveria se preocupar com o fato. Algumas regras estão obsoletas e não há movimento para melhora-las. Vejam como o futsal evoluiu ! Já o futebol, continua em passo de cágado. Em certos jogos, acontecem quase 100 faltas. A formação da barreira é lenta e não a mais de 7 metros do ponto onde a bola dorme.
Este é o cenário do País e do esporte em geral. Somente jovens (que ainda não perderam a esperança e estão cheios de vitalidade) e a imprensa honesta (com suas poderosas armas), poderão iniciar um trabalho lento e estafante para reformular este quadro. Passamos a maior parte do tempo ouvindo relatos sobre desmandos e apenas concordamos dizendo : “vamos ver se agora melhora”. Não temos de esperar até o próximo ano, pois o hábito vai nos dar a impressão que o fato errado parece normal. É a frase do cachimbo que entorta a boca. Lembra-se ?
Se o preço da carne está elevado e nossos resmungos não comovem aos gananciosos, deixemos de come-la por uma semana. Só que para isto, é preciso o apoio da imprensa, que contacta a todos (e molda opiniões) em minutos. Já que se fazem de surdos aos nossos apelos, vamos abrir mão de algumas mordomias (comida hoje em dia é mordomia ?) por algum tempo, e deixa-los apreensivos vendo seus cofres menos abarrotados. Parem de entrevistar dirigentes e políticos por duas semanas e eles vão perceber que sua bola está murcha.
( VI )
Se relatarmos todos os fatos do nosso cotidiano que refletem no esporte, este ensaio vai se transformar em livro. O que podemos esperar de um País onde o Povo aceita passivamente
que o governo(?) não cumpra as determinações judiciais e as leis são aplicadas aos faltosos
conforme sua classe social ? O que esperar de entidades públicas que pouco se importam
com seus usuários, obrigando-os a enfrentar filas na chuva e exigindo documentos diversos
para que a vítima obtenha um benefício que lhe é devido ? Se um turista estrangeiro chegar
ao Rio, no Galeão, às 7:00 de um sábado, vai urinar de rir, ao saber que o serviço de auxílio ao turista funciona em Copacabana de 2a. à 6a. entre 8:00 e 17:00. Mas vai gargalhar muito, ao ser informado que o regulamento de qualquer campeonato de futebol (normalmente disputado em 5 turnos com 4 fases em cada turno), permite que um time A, que conseguiu somar 90
pontos, seja campeão, ao invés do time B, que acumulou 120 pontos no mesmo período !
Neste resumo, temos material suficiente (por 3 meses) para debates que antecedem os jogos aos domingos. Mas debater apenas não resolve. Seria ótimo que após as conclusões (reforçadas pela participação dos leitores), algum material fosse editado e encaminhado a quem comanda (?) para que ficasse ciente (oficialmente) do que o público deseja.
As minas (florestas, peixes, metais, etc) se esgotam em progressão geométrica. Se os bons jornalistas esportivos de visão esclarecida não se juntarem para pressionar os dirigentes desde já, brevemente o mercado não será suficiente para novos profissionais. Muitos programas esportivos já foram eliminados da mídia ou tiveram seu tempo reduzido.
A força do esporte está baseada em 2 fatores principais :
a) a beleza do espetáculo proporcionado pelos artistas nas arenas (piscinas, quadras, campos);
b) a coreografia sem ensaio de apaixonados torcedores, dentro de um clima respeitoso de competição, criado pela Imprensa sadia, longe da ganância dos empresários.
Haroldo P. Barboza - V. Isabel - ago/96 – Matemático, APD e Poeta.