“”Tu me viste antes de eu ter nascido, os dias que tinham sido criados para mim foram todos escritos no teu livro, quando ainda nenhum deles existia”.(Sl 139.16)
No Egito antigo, o faraó deu ordem às parteiras para matarem todos os hebreuzinhos do sexo masculino que viessem à luz sob aquele sol. Ele pretendia enfraquecer e reduzir a raça hebreia radicada no país. Raça, aliás, já então submetida à escravidão, além de sofrer outros ultrajes do gênero. As parteiras, por temor ao Deus de Israel, esquivaram-se de fazer a matança, argumentando, para se justificarem perante faraó, que as mulheres israelitas eram vigorosas e, por isso, tinham partos rápidos e de forma independente.
Nessa época, Moisés - hebreu de sangue e, depois, “de carteirinha”- precisou dum artifício familiar para ter garantida sua sobrevivência. Aos três meses de idade, sua mãe o colocou num cesto e, sob a vigilância da Irmã, ele foi “esquecido”, aparentemente só, à margem do rio (Nilo) - em local e horário em que a filha do soberano costumava banhar-se Esta, ao encontrar, choroso, o “menor abandonado”, acolheu-o comovida e decidiu mantê-lo e educá-lo com regalias de filho. 80 anos mais tarde, Moisés libertaria seu povo do jugo faraônico, levando-o – via deserto - em direção à terra prometida. .
Séculos depois, no raiar da era cristã, o rei Herodes mandou exterminar o contingente masculino com até 2 anos de idade e residência na cidade de Belém e cercanias. Intentava, operando no atacado, cortar pela raiz um certo rebento que, segundo magos e profetas, teria nascido naquelas plagas, com a predestinação de ser “o novo rei dos judeus”. O verdadeiro alvo de Herodes escapou milagrosamente da foice, porque um anjo instruiu seus pais a fugirem com Ele para o Egito. O sobrevivente da “faxina” infanticida é Jesus Cristo - o Deus filho, para os cristãos, e potencial salvador de toda humanidade.
FARAÓ E HERODES ATACAM NOVAMENTE
Agora, no século XXI, Faraó e Herodes estão de volta, com ameaças semelhantes. E desta vez eles contam com o apoio das parteiras e de uma grande legião de “anjos”. O Conselho Federal de Medicina – ironicamente, ele! - e diversos grupos militantes, sob os mais variados sofismas, pleiteiam o direito legal de se fazer o que eufemisticamente chamam de “interromper a gravidez”. Um direito, aliás, que, noutra vertente da língua portuguesa, significa de fato permissão para ceifar vidas humanas já formadas, com até 12 semanas de gestação.
Advogam os doutos defensores que a “descriminalização do aborto” (outro eufemismo) evitará que inúmeras mulheres férteis continuem expondo suas vidas, ao recorrerem com frequência a aborteiros e outros operadores clandestinos, para extirparem seus fetos indesejados. Defendem essa tese com toda a veemência, como se os atos e fatos a que se referem tivessem suas causas na saúde dos fetos e não na índole das mães.
Na verdade, os tais grupos - que, na prática, revindicam o poder divino de decidir sobre quem pode ou não pode viver - pretendem inverter os polos de uma milenar relação ético-jurídica, transformando réus em vítimas e vítimas em réus. Em outros termos, pregam liberdade e segurança para “mães arrependidas” matarem seus fetos, sem correrem o risco de morrer.
UM ABISMO CHAMA OUTRO ABISMO
Ora, os direitos e conquistas da sociedade são dinâmicos e surgem, dia após dia, em escala ascendente. Legalizado agora o aborto, não nos espantemos se a próxima “liberalidade” conquistada pela militância for a inclusão no cardápio de descriminalizações um salvo-conduto para aquelas mães que perderam o tempo do aborto, mas não o desejo de livrar-se de seus bebês “importunos”. E, então, poderemos vê-las, à luz do dia e da lei, sob o pretexto de uma depressão pós-parto, por exemplo, jogarem, sem culpa, seus recém-nascidos em córregos e lagoas, ou os “esquecerem” em alguma lata de lixo.
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*Gilson Chagas é Professor universitário e escritor.