Aparecida Teixeira de FÁTIMA PARAGUSSÚ, acadêmica, historiadora, pesquisadora, escritora, poetisa, cantora, compositora, musicista, folclorista, dicionarista, em suma, multitalentosa, natural de Santa Cruz de Goiás, GO.
RCC: A senhora teve uma infância difícil, marcada pela pobreza. Quando foi seu primeiro contato com os livros?
Fátima: Aos seis anos de idade, quando aprendi, com meu irmão, ler e escrever.
RCC: Como era a sua vida na Rua de Baixo, em Santa Cruz de Goiás?
Fátima: Era só alegria! A não ser, quando passava boiada; morríamos de medo do estouro! Ou à noite quando era necessário sair e passar frente ao Beco da Venda Grande: local de desova dos ¹[1]banguês.
Éramos seis irmãos (três homens, três mulheres); eu era a caçula das mulheres e Antonio, o caçula geral.Tínhamos tarefas diárias: ajudar mamãe fazer farinha, polvilho; buscar lenha para o fogão caipira e água da ²biquinha para beber; cuidar dos afazeres domésticos e levar comida para os peões que ajudavam papai a limpar a roça de arroz...Tudo isso depois da escola.
Com onze anos, eu já ensinava os meus colegas de classe e ia à fazenda de Noêmia - mais ou menos um km; a pé- três vezes por semana, ensinar sua filha a ler e escrever.
Com sete anos de idade fui para escola e também aprendi a cozinhar. Subia em uma cadeira, não alcançava as panelas no fogão. Era movimentada a minha casa! Um fazendeiro deixava ovos caipiras, empalhados; frango, queijo para mamãe vender. Tínhamos uma boa freguesia! Aos sábados, areávamos as panelas com bucha feita de palha de milho esgarçada com garfo e areia fina; trocávamos os forros da prateleira. Ficava lindo! Tudo brilhando! Varríamos o terreiro da rua (assim chamávamos a frente da casa). Os vizinhos também varriam os seus; longo trecho, limpo e acolhedor, emendado. Depois do trabalho, as brincadeiras de roda, pique - pega, finca, baliza...; aos domingos, boneca de pano e cozinhadinha.
Não me lembro das dificuldades. O que permeia minha memória é a música Moendo Café, de Poly E Seu Conjunto; És Tu, Balalaica – folclore alemão; Poeira e tantas outras, tocadas na imponente radiola, acomodada em uma mesa, o único móvel de nossa sala de estar. Lembro o som do carro de boi: ralentava o canto para deixar em casa, jacás e jacás de mandioca para fazer farinha e polvilho. Lembro - me com emoção o guizo dos cavalos da cavalhada, no quintal da pensão da Donana. Minha casa ficava ao fundo desta pensão. Ali se preparavam para apresentarem. De repente ouvia a valsa Quinze Encontros, dobrados, canções executadas pela Banda Lira Oito de Dezembro, anunciando a festa que acontecia na rua de cima.
Nosso primeiro fogão a gás, vermelho, para combinar com a geladeira. A primeira televisão, preto e branco. Chuviscava tanto! Imagem horrível! Para fazer de conta colocávamos plástico colorido.
Aos 16 anos, terminei o ginásio; não tinha idade para fazer magistério em Catalão. Minhas irmãs foram; eu fiquei. Queria estudar, ganhar o meu dinheiro; fugir da torração de farinha que acabava com os olhos pelo excesso de fumaça. Passei a ministrar aulas em dois turnos, na minha casa. Atendia alunos do grupo escolar e do ginásio municipal. De manha, alunos que estudavam no período vespertino; à tarde, do matutino. Passavam umas quatro horas estudando – reforço escolar- Mamãe preparava beiju casado, tapioca ou mexido feito com a sobra do almoço para a turma lanchar. Era uma festa! Tornou-se meu ganho, até eu passar no concurso dos correios, aos 18 anos.
RCC: Sua mãe foi alfabetizada na idade adulta, pois trabalhava lavando e passando roupa e fazendo polvilho e farinha de mandioca para ajudar no sustento da família. Partiu dela o incentivo para estudar?
Fátima: Sim. Aprendeu pela TV (Telecurso). Já em voga o Ensino a Distância. Assistia às aulas e fazia as tarefas até aprender. Tinha sabedoria e participava de nossa vida em tempo integral. Quando ficamos sabendo que estudava de madrugada, já estava lendo e escrevendo. Fez tudo em surdina. Certo dia nos chamou para uma surpresa; leu uma carta que acabara de receber. Ficamos encantados com ela!
RCC: Seu pai era agricultor, encanador e músico. Foi ele quem despertou seu interesse pela música?
Fátima: Em parte, sim. A família dele era de músicos. Mesmo não os conhecendo, ouvia falar muito deles. Gostava de ver a banda local tocar; imaginava, como podia, alguém olhar aquelas bolinhas e transformar em musica! O papai gostava de ouvir música e isso lembro bem.
RCC: A senhora fez parte da primeira turma do Curso Ginasial de Santa Cruz de Goiás. O que isso significou?
Fátima: Realização do sonho de estudar. Foi a partir daí que as portas começaram a se abrir. Oito alunos formados, dançando valsa! Tenho, até hoje, o dicionário que ganhamos do padrinho da turma. Tivemos ótimos professores e foram eles quem me incentivaram a ensinar. Diziam que eu tinha o perfil de professora. Quando terminei o ginasial, novamente a frustração de não continuar os estudos.
RCC: A senhora concluiu o Curso Ginasial no período em que ele equivalia ao Magistério e habilitava os formando a ministrar aulas?
Fátima: Sim. Só que fiz contabilidade. Queria ser contadora e advogada.
RCC: Quando a senhora começou a trabalhar na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos?
Fátima: Não lembro o ano. Sei que trabalhei 4 anos.
RCC: Chegou a trabalhar na agência de Pires do Rio, GO, para fazer o Segundo Grau?
Fátima: Trabalhava nos correios de Santa Cruz. Ia para aula em Pires do Rio em uma Kombi, chamada Cacilda. Pagava mensalmente o transporte.
RCC: A conclusão do Segundo Grau foi em Goiânia, GO?
Fátima: Sim.
RCC: O que a motivou largar os Correios e montar um salão de beleza?
Fátima: Não deu certo nos correios. O salão me deixava mais livre para viajar.
RCC: Naquele período a senhora já estudava música?
Fátima: Comecei a tocar violão vendo outras pessoas tocarem; repetia os movimentos e aprendia os ritmos. As primeiras noções de partitura foi pelo Instituto Universal Brasileiro, quando trabalhava nos correios em Santa Cruz, aproveitava para estudar a distância; não tinha professor presencial. Quando saí dos correios e montei salão de beleza, em Goiânia, comecei a estudar música, de fato.
RCC: A senhora fez vestibular para Relações Públicas, porém, graduou-se em História. Essa guinada se deu pelo fato de Santa Cruz de Goiás ter sido uma das primeiras povoações do Estado?
Fátima: Não só por ter sido uma das primeiras povoações, mas por ser a minha Terra Natal. A mola mestra para a mudança de rumo foi compreender as várias Histórias que Santa Cruz de Goiás carrega.
RCC: Como foi a sua experiência na política?
Fátima: Aprendi muito, porém, era “pequena em política”. Não sabia como tudo se dava nos bastidores. A sigla partidária é quem decide as ações. À época eu sofri com isso; acreditava que conseguiria mudar algumas situações. Infelizmente, não consegui.. Fui a primeira mulher vereadora e presidente da Câmara. Bem votada! Hoje, tento devolver com trabalho, a confiança em mim depositada.
RCC: A senhora liderou o movimento que resultou na eleição de Santa Cruz de Goiás como uma das Sete Maravilhas do Estado de Goiás. Como foi que isso aconteceu?
Fátima: Recebi o telefonema de um amigo falando do concurso. De imediato disse que deveríamos inscrever Santa Cruz pela sua História; por outros atrativos iam aparecer muitos concorrentes. Assim, fizemos. Ligamos, passamos emails; fizemos uma campanha acirrada mostrando como votar, como indicar. As redes sociais ajudaram muito. Sugerimos visita ao site www.santacruzdegoias.net para quem não conhecia a cidade. Visitamos os postos de venda do jornal O Popular para confrontar as pessoas que ali frequentavam e pedir votos.
RCC: Poderia comentar sobre o seu trabalho na promoção das culturas populares?
Fátima: Esse olhar para as culturas populares surgiu da convivência e participação em conferências, fóruns e, principalmente, por presenciar atores exibidos em telões de seminários, congressos; sendo, apenas, objeto de estudo de doutores, mestres..., e nunca convidados a participarem dos eventos que eram exibidos. Jamais falaram por eles mesmos. A minha defesa é por políticas públicas com recorte para esse segmento; empoderamento e valoração de uma cultura legitima. Hoje, estou mediadora suplente do Colegiado Nacional de Culturas Populares do CNPC.
RCC: O que vem a ser a Escola do Sintipismo da qual a senhora é seguidora?
Fátima: Fernando Oliveira, pai do poema sintipo, composto, de um titulo, mais duas quadras e um verso para arrematar, que deve rimar com o titulo, além de um verso solto no centro, sem rima, mas em concordância com o tema. As duas quadras devem rimar: a primeira em decrescendo e a segunda em crescendo, e os versos rimados devem ter a mesma energia fônica, de preferência com rimas ricas.
Meu primeiro sintipo “Azul e Vermelho” em homenagem a Guajará Mirim/RO, fronteira com Bolívia, quando fui jurada do Festival Bumba Meu Boi - azul do boi Malhadinho e vermelho do Boi Flor do Campo - Azul e Vermelho inundaram a cidade,; além, das “voadeiras” que transitavam no rio Mamoré levando e trazendo pessoas da Bolívia.
AZUL E VERMELHO
O bailar das águas umedece a fronteira,
Emociona mesmo quem não queira.
A aragem refrescante do rio,
O glamour das voadeiras... arrepio.
As folhas dançam... pululam serenamente.
Lágrimas, alegoria, estandarte, toada,
Sol, lua, estrela, noite... madrugada.
O destino seu rumo segue, em remoinhos,
Pássaros em revoadas, procuram seus ninhos.
A imagem da cidade refletida no espelho
.RCC: Como é o seu trabalho de assistência espiritual em hospitais?
Fátima: Um trabalho desenvolvido anos a fio no HC junto a duas ex-alunas de violão ( enfermeira e fonoaudióloga do hospital) Cantávamos pelos corredores, nos quartos, UTI... Tínhamos um coral da Hemodiálise, toda quarta-feira à noite. Todos os segmentos religiosos trabalham: Dois dias da semana para católicos, dois para evangélicos e dois para espíritas. Uma vez ao ano reúnem-se para confraternização.
Os assistentes espirituais são capacitados para atender o doente sem impor dogmas.
RCC: Como foi a emoção de tornar-se membro fundador da Academia de Letras do Brasil, Seccional Distrito Federal?
Fátima: Não acreditei! Quando recebi o convite da escritora e humanista Vânia Diniz, perguntei a ela: ‘Por que eu? O que eu fiz para merecer tudo isso?´. Imortalizar-me! Ao discursar durante a posse, não me esqueci de reverenciar os mestres das culturas populares. Meu Patrono, Mário de Andrade, cantou comigo naquele momento!
RCC: Quais os projetos para 2013 da Seccional Santa Cruz de Goiás da Academia de Letras do Brasil, presidida pela senhora?
Fátima: Estamos organizando o Ponto de Leitura Viva e Reviva Santa Cruz que fica na sede da Associação dos Amigos de Santa Cruz. São projetos correlatos Por enquanto estamos, junto ao Departamento Municipal de Cultura, implantando o Sistema Municipal de Cultura e seus complementos. Essa é a prioridade para esse ano. Ação que favorecerá a Academia.
[1] Redes usadas para transportar defuntos da zona rural para sepultamento na cidade
² Mina de água natural; servia água potável à população. Situada em uma fazenda dentro da cidade.
(Publicado na Revista Cerrado Cultural, www.revistacerradocultural.blogspot.com), edição de setembro de 2013.