Nada como voltar à boa forma, ao bom trabalho. Assim foi e assim deve ser e não deveria ser diferente comigo. Pelo menos eu acho. Então, estalo os dedos, ouço a música das esferas que giram soltas entre nossos planetas e o sol, cada qual cheio de cristais que geram a infinita melodia que só é audível a poucos( porque o atrito infinitesimal tem o ruído primordial semelhante ao velho om cósmico ou ao zumbido de fundo da voz do Deus que nos criou a todos...) e então, eu percebo que entre as notas existem espaços, oitavas, uma mais fina que a tessitura da outra, num progredir incansável e cristalino...e eu estendo meus olhos ao horizonte de nosso mundo plano e fosforescente. Sim, porque sei que, se for muito adiante com minha nau, cairei pelas bordas do mundo. Saberei então o que se esconde no horrível lado de lá, que é o infinito fim. Estalo os dedos e acendo mais uma vela, mais uma entre tantas que bruxuleiam em meu escritório pleno de livros e papiros antigos; uma delas tem cheiro de rosas, presente de uma amiga apaixonada de outrora, agora casada com um importante pároco de uma região distante, tal que não ouso me aproximar. Ela diz que essa história de planos, esferas de cristal, ruído cósmico, é tudo poeira. Ele concorda com ela, porque diante de tanta formosura, até estátuas de sal sairiam andando de novo ( foi o que ele me disse uma vez à beira de sua lareira enquanto ela preparava um porco assado recém-caçado na floresta do pântano). Eu, de minha parte, admito que o temo porque algo naqueles olhos não lhe sai bem, como flamas endiabradas; ele, no entanto, prega como poucos e nossa comunidade crê mais nele do que no que ele prega, de tal forma que todos assim evitam participar de rituais nada ortodoxos pelo menos quando visitam a modesta igreja que ele orgulhosamente ostenta. Ela também o respeita muito. Nada que ela faça lhe passa despercebido, diabo de pároco atrevido. E sigo vivendo esta vida simples de campônio mal ajambrado, solteiro por vocação e por falta de opção mais estável. Enfim, eu o digo, assim de peito aberto: Prefiro os meus livros. As mulheres nunca entenderiam as alturas que eu porventura atinjo. Muito embora eu admita que há reticências em tudo o que faço. Estalar os dedos é só uma parte do processo, eu assim consigo o prazer e a concentração que meu ofício exige.
Sou relojoeiro, se é que vocês podem imaginar. Ajusto as esferas do tempo ao tempo deles; coloco os tempos nas pausas adequadas e em meus relógios sempre ajusto as esferas de vidro mais precisas, geralmente cristais de rocha polidos até à exaustão. Minhas pequenas máquinas têm a amplidão do exato instante, os ponteiros mínimos circunvolucionam o tal plano terrestre, em plena sintonia com os cheiros dos pântanos das cercanias da pequena casa que habito, feita de pedras de tal resistência que está com nossa família há pelo menos uns trezentos anos. Há os que se benzem diante de meu terreno, dizendo que ali habitou uma família de aparentados a Mefisto, coisas de gente antiga e preguiçosa. Nunca houve tais premissas em ninguém de minha família, exceto um obscuro médico de aldeia que um dia se disse convencido que o mundo, ora essa, o mundo nunca se acabava; isto é, que ele era redondo tal qual uma esfera; provou isso ao atirar uma pedra tão fortemente( dizia ele) que ela lhe voltou à cabeça. Esta foi sua perdição, porque há relatos de que teria sido preso e, confessando o crime horrendo, de posse da pedra, haveria sido queimado até seu próprio derretimento. Fora isso, minha ascendência tinha requintes de cruel mediocridade. Enfim, todos a têm. Todos.
Vejam este pequeno relógio, um ajuste em sua pequena engrenagem, uma lupa poderosa me ajuda, um pequeno rubi e mais outro, ajusto aqui, remexo acolá, dou ao centro o impulso que a corda lhe permite e...Tic Tac. Eis que mais um coração pulsa, medindo os vãos do mundo, exaltando corações impacientes, tornando aflitas as mocinhas suspirosas e impertinentes aos moços mais afoitos. Ah, essa desfaçatez do tempo, construída e solidificada pelo homem à suas imagens e semelhanças...Não foi Deus quem fez o tempo, foi ele que o originou, o próprio tempo num fluxo eterno é o que se pode aviar ao soldado que olha o relógio e pensa que, em duas horas chega o trem ao destino e ele poderá beijar os lábios rubros de sua amada. Deus está nos detalhes, é o que sempre digo. E eu me pego pensando aqui, imaginando as beiradas dos planos do mundo, com o sol saindo de suas esquina e iluminando as plagas de minha aldeia, os porcos em suas pocilgas, o pároco e minha antiga amada; vejo e constato que passou o meu tempo, que ela a essa altura resfolega numa cama com um homem estranho e eu contraio minhas mãos em contralto, num stacatto súbito, como um maestro irritado e olho à parede onde os malditos relógios assustados me vêm assim com raiva de mim...
E todavia, apesar de mim, todos se movem.
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