(Artigo originalmente publicado no Observatório da Imprensa, em 29/6/2010)
Mesmo que passe por seguidas sessões de regressão, até se tornar embrião dentro de um ovo, Galvão nunca será uma ave, como algumas fontes tentaram explicar no caso do coro eletrônico mundial que deu a volta ao mundo com a mensagem "Cala a boca, Galvão", disseminada no twitter na abertura da Copa da África do Sul, que também foi matéria de capa da revista Veja (23/6/2010).
É verdade que, entre a complacência e a maldade, há muitas maneiras de interpretar a estrondosa hashtag do twitter. Mas há dois pontos inegáveis. Primeiro: aplauso, não é. Segundo: todos sabem que Galvão é um narrador esportivo, o mesmo que transmitia a abertura da Copa quando a mensagem foi lançada.
Mas, qualquer que seja a origem e o propósito do barulho, é preferível analisar fatos e ideias a alimentar discussões sobre pessoas ou ceder à velha tentação de questionar méritos do líder de audiência. Ainda que a leitura mais difundida prefira dizer que se trata de uma brincadeira inócua, é de se esperar que ações de emergência tivessem sido tomadas, dando-lhe uma interpretação branda, como a história da ave e outras versões. É uma estratégia que tem alguma eficácia.
Os movimentos da bola
Contudo, se a interpretação simplória é palatável, é a leitura atenta que pode ensinar. O que há por trás do estilo do narrador esportivo mais conhecido do Brasil e dos vícios de cobertura que alguns segmentos parecem desaprovar? Seguramente, existe uma gigantesca estrutura com a mais avançada tecnologia, grande quadro de excelentes profissionais, os mais altos índices de audiência e sólida história de liderança. Ninguém chega a tanto se não houver muita competência. Ou seja, sucesso de longa data em todos os sentidos. É o que todo grupo de comunicação deseja para si.
Logo, nada a reparar, certo? Talvez não seja bem assim. Em nossos dias, sucesso é tudo que se busca, mas não é solução para tudo. Acontece que o tempo é hábil em fazer do sucesso um indutor de desvios e descuidos. Acomodação é um dos primeiros a surgir e se ramificar, principalmente quando o sucesso é fácil. Outros sintomas típicos são menos visíveis: perpetuação de paradigmas, perda de foco, meios sobrepostos aos fins, hipertrofia de egos e sofismas infiltrados nas crenças e na cultura. A soma desses equívocos é campo minado. Armadilhas que amanhã trairão os vencedores de ontem.
Não fosse assim, Roma ou Grécia seria dona do mundo contemporâneo e a maior economia do planeta não teria cambaleado em 2008. Tampouco o melhor futebol do mundo teria passado por momentos tão ruins. Além disso, nenhuma tese conhecida garante que uma bola em jogo faça apenas movimentos ascendentes, mesmo que seja platinada e reluzente, como a logomarca da telinha.
O sucesso sustentável
Não há por que questionar o currículo ou a estatura profissional de Galvão nem a capacidade da Globo. Mas os fatos sugerem jogo mais duro pela frente. Basta ver as campanhas no twitter e os cartões amarelos na internet, como a mobilização a favor de Dunga depois do choque frontal entre ele e a Globo, a força com que foi lançada a proposta "um dia sem Globo" e as repetidas críticas ao Big Brother Brasil. São alguns dos sinais que pedem mais da competência global, já tão solicitada em outras frentes, como a crescente concorrência da internet e da TV paga. Em suma, a histórica convivência com vitórias não dispensa reposicionamentos e esforços contínuos, ainda mais nos novos tempos, em que as transformações no setor de comunicações são velozes e os ciclos de inovação e de sucesso são curtos.
Certamente, são questões delicadas, mas não tão complexas que não possam ser detalhadas e compreendidas em lições básicas de gestão, como aquelas sobre zona de conforto [Perigo na Zona de Conforto, de Judith M. Bardwick, Editora Cengage, antiga Editora Pioneira], ciclos das organizações [Os Ciclos de Vida das Organizações, de Ichak Adizes, Editora Pioneira] e gigantes em queda [Como as Gigantes Caem, de Jim Collins, Editora Elsevier-Campus].
Entre um gol e outro, quem sabe os craques da televisão reaqueçam essas ideias sem que, para isso, deixem de torcer. Pelo futebol, sim, mas, acima de tudo, torçam para que, em futuras reedições daquelas obras, nas páginas que mencionarem os impérios recentemente alquebrados sob os excessos do trono e o egocentrismo da coroa, os autores se limitem a citar bancos, seguradoras e montadoras de automóveis norte-americanas, deixando longe da lista a gigante da TV que fica mais ao sul.
Colecionar gols é bom, mas dominar o sucesso sustentável é melhor.