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Artigos-->Os Boatos - Além e Aquém da Notícia -- 24/04/2002 - 14:22 (Luiz Carlos Assis Iasbeck) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Os Boatos - Além e Aquém da Notícia

(versões não-autorizadas da realidade)





Luiz Carlos A. Iasbeck

Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP

Pesquisador Associado na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília



RESUMO



Os boatos, os rumores, os falatórios, enfim, as formas socialmente não-autorizadas de circulação da informação possuem ingredientes semióticos que as tornam tão sedutoras quanto desafiantes. O anonimato, a criação coletiva, o desregramento catártico a que estão sujeitas, transformam-nas em meta-signos necessários ao equilíbrio das formas oficiais da notícia.



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Não são muitos – tampouco originais – os estudos sobre esta que talvez seja uma das mídias mais antigas da comunicação humana, os boatos, os rumores. Seja pela fugacidade de sua ação, seja pela proibição que os tornam tão atraentes e perigosamente sedutores, boatos e rumores são fenômenos comunicativos que precedem, parodiam, subvertem e realimentam a novidade da notícia. Eles reacendem o interesse e a motivação que tendem a arrefecer-se quando revelado o mistério ou quando autorizada a versão oficial acerca de um fato esperado ou acontecido. O boato também cria fatos, o que o torna foco das atenções e da vigilância da ordem pública, principal suspeita e alvo preferido dessa forma sub-textual de realidade.



Localizado em tal panorama, seria bastante trabalhoso capturar o boato para estudá-lo em suas camaleônicas nuances. Por isso, reduzimos aqui o espectro de sua atuação a alguns espaços nos quais o imperativo da ordem recrudesce o arsenal sígnico do poder: as instituições nucleares da cultura tais como os poderes da República, o exército, a religião oficial, o mercado financeiro, a rede pública de educação.





O que são os boatos.



Boatos são ondas noticiosas disformes que circulam ao sabor das contribuições coletivas, segundo uma ética bem definida e uma estética bastante esgarçada, capaz de conter uma variada gama de produtores/fruidores. A metáfora das “ondas” nos leva à inclusão da “ressonância” nesta compreensão e à suposição de que o motivo inicial que lhe dá impulso tende a perder força na complexidade de suas conseqüências. Aquele motivo funciona como um motor, propagando ondas seqüenciais que confirmam as anteriores e criam expectativas de outras.



Motivações localizadas - mas dificilmente localizáveis - são responsáveis pelo acionamento desse “motor” e quando o fazem desejam reverter , inverter ou subverter a seqüência de fatos ou situações que conflitam com interesses específicos. A propagação do boato é essencial à realização desse objetivo, tornando-se, não sem propósito, sua razão de ser e manter-se como tal.



Não se pode falar de boatos confinados a grupos restritos, porque o “barulho” deve envolver maior número de pessoas, recebendo contribuições mais significativas das vizinhanças, enquanto atenua-se na direção da periferia.



Afinal, boatos e rumores são clamores que chamam a atenção de um número relativamente grande de pessoas e incomodam o fluxo rotineiro da comunicação ao atropelarem relações previsíveis ou desalojarem expectativas, instaurando inseguranças.



Contribui para isso a ausência de certezas. Num boato, qualquer que seja, não há espaços senão para a multiplicação de possibilidades. O único fator limitador é o próprio contexto, o território no qual o boato age e tende a produzir conseqüências.



Apesar de dirigir-se a situações concretas, que estão fora de seus arranjos retóricos, as ligações lógicas que o sustentam têm caráter fantasioso (estético), imaginativo, muitas vezes não comprováveis e, por isso mesmo, não capazes de serem confrontados com o fato que pretendem modificar. Assim, ao contrário dos demais textos da comunicação, o boato não tem condições de dialogar com outros ambientes, uma vez que ficaria exposto às demonstrações e aos jogos lógicos que retirariam dele a razão auto-referenciada. Mas como narrativa oral, constitui um texto da cultura, tal como o entendem os semioticistas russos da escola de Tartu, liderados por Yuri Lotman : todo boato tem expressão e estrutura peculiares, além de fronteiras bem delimitadas.



. Paul Zunthor, na introdução ao seu estudo da “literatura” oral da idade medieval, distingue três tipos de oralidade “correspondentes a três situações de cultura”. Segundo o nível de relação com a escritura, os modos da oralidade (primária, mista e segunda) se sofisticam ou se embrutecem: na relação primária, o oral não depende de uma escritura; na relação mista, a oralidade deriva da cultura escrita e na relação segunda, a oralidade se conecta a uma cultura letrada, “na qual toda expressão é marcada mais ou menos pela presença da escrita” (Zunthor, 1993:18-19). Os boatos são narrativas orais que não se escrevem, sob pena de perderem sua principal característica, a perecibilidade, mas isso não impede que estejam impregnados pelas marcas do texto escrito, condição que lhes assegura certa credibilidade em meio às incertezas de toda ordem.



A narrativa do boato está associada também a outro tipo de “escritura”: a linguagem cinematográfica e televisiva. Contados em seqüências editadas, segundo as contingências e exigências do narrador, os boatos ganham tons e vieses que podem, inclusive, modificar o curso das “cenas” seguintes, rearranjadas ou mesmo suprimidas para conter as modificações.



Também por esse motivo, os boatos são marcados pela indecisão e pela imprecisão dos elementos que o compõem. Não podem ser rígidos e impenetráveis, porque assim não teriam como receber as contribuições que os levarão adiante e não podem ser tão flexíveis que percam seu caráter textual, seu foco ou que se percam fora da zona de interesse.





De onde vêm os boatos?



Conforme nos mostra Jean-Noël Kapferer , um boato pode surgir como compensação a um desejo frustrado de alguém ou de um grupo social, da necessidade de tornar público alguma confidencialidade, de interesses perturbadores de uma ordem que não convém, das fantasias (ou fantasmas) que povoam as narrativas míticas de uma cultura, de mal entendidos, de interpretações distorcidas, etc...



Seja de onde vêm, o grande equívoco de quem se aventura a investigar um boato é descobrir-lhe a origem . Isto porque o boato só se torna um fenômeno depois que ganha circulação e, para tanto, é preciso estar desalojado de um hipotético lugar onde teria sido originado. Sua constituição é coletiva e difusa, na medida em que cresce e corre com contribuições individuais que se diluem nas narrativas subseqüentes, mas que “lubrificam” o canal de passagem.



Se nos é difícil – senão impossível – localizar a origem de um boato, é possível, sem grande esforço, pesquisar o ambiente no qual surgiu e para o qual produz efeitos.



Nenhum boato surge em lugares nos quais não possa despertar ou inflamar interesses, o que seguramente nos leva a consumi-lo como signo indicial, um sintoma de situações e/ou formas sociais que a ele se ligam por relações de afinidade. Tais relações podem estar tanto na cadeia de conexões sintagmáticas quanto em associações paradigmática, sugerindo-nos cartesianamente locais de encontros virtuais de interesses.



Porém, ainda que localizados os pontos de vinculação entre o boato e seus eventuais mentores, dificilmente se conseguirá identificar, sem grande margem de equívoco, este ou aquele indivíduo, este ou aquele grupo como mentores do boato. Por outro lado, se o mapeamento do processo de propagação de um boato pode nos levar a entender forças que movem os interesses de determinado grupo, insinuando certezas sobre o nascedouro, com certeza nos desvia da rota multiplicadora que faz com que ele venha a ganhar efeitos.



Portanto, o melhor caminho para pesquisar a origem e entender a força transgressora do boato não é retrospectivo. Talvez prospectivo, apoiado em amplos diagnósticos do tecido no qual ele se sustenta e se desenvolve. E, para tanto, é necessário compreender alguns elementos semióticos nos quais a comunicação se assenta.





A frustração de um boato



A passagem do ano de 1999 para o ano 2000 foi marcada por grandes ansiedades e incertezas, anunciadas há muito tempo antes e estimuladas pela mídia sensacionalista, pelas previsões de seitas religiosas e esotéricas, pelas estórias que nos contaram os avós e pelas malfadadas previsões de Nostradamus, datadas do século XVI. Em meio às ancestrais catástrofes anunciadas do fim dos tempos, um fenômeno nada fantasioso ocupou mentes e braços de boa parte da população: o rearranjo de sistemas computadorizados para evitar a leitura equivocada do ano 2000 como ano 1900.



O previsível estrago desestabilizaria grande parte dos sistemas ordenadores da sociedade: os computadores do governo poderiam perder para sempre informações essenciais à manutenção das leis e da justiça; dados econômicos seriam invertidos, empresas públicas em setores essenciais da vida moderna deixariam de funcionar, prejudicando o fornecimento de água, luz, telecomunicações, haveria pane no sistema de distribuição de combustíveis e os aviões poderiam cair em pleno vôo enquanto embarcações encalhariam ou ficariam à deriva em alto mar.



Num ambiente da tamanha expectativa, qualquer boato encontraria campo fértil para germinar. E foram muitos. Um dos que mais chamou nossa atenção dizia respeito à inoperância dos bancos e conseqüente sumiço do dinheiro depositado. Todos os bancos se prepararam, capitaneados pelo Banco Central do Brasil, esperando um alto volume de saques nas contas. Afinal, fazia sentido: o mundo podia não acabar, mas o dinheiro poderia sumir!



O mundo não acabou, o dinheiro não sumiu e o prejuízo ficou restrito a alguns profissionais que não puderam passar as festas de fim de ano com os seus familiares, atentos que estavam em seus postos de trabalho para evitar que os boatos se consumassem em fatos.



Este fato se repetiu em várias partes do mundo. Nos Estados Unidos milhares de famílias abasteceram suas residências com gêneros alimentícios, baterias auxiliares para iluminação e houve até quem procurasse sofisticados abrigos anti-aéros, esperando o bombardeio de misséis detonados por algum computador avariado.



Os boatos que precederam a passagem para o ano 2000 não encontraram, nenhum deles, confirmação em fatos de realidade, após o dia 01 de janeiro. E nem por isso os boatos perderam a força e deixaram de existir.



Gerorges Duby, historiador francês falecido em 1996, adiantou muitos dos “temores” que possivelmente tomariam conta do mundo na passagem para o ano 2000, comparando tal passagem com a troca do calendário do ano 999 para o ano 1000. De sua pesquisa arqueológica sobre os medos medievais, Duby conclui pelo inevitável paralelo: os medos não mudaram. O medo da miséria, o medo do outro, o medo das epidemias, da violência e do desconhecido são medos ancestrais do ser humano, apenas acobertados pela ilusão de segurança criada pela ordem, pela rotinização, pela repetição confirmadora das certezas do dia-a-dia. Qualquer elemento que atropele e rompa a linearidade e a previsibilidade das expectativas será capaz de acionar toda uma cadeia de medos, temores e receios que restam entorpecidos por pequenas – mas eficientes - certezas criadas nos ritmos sociais. Evidentemente, a troca do calendário não poderia ser entendida como habitual, uma vez que nunca o mundo havia passado de 999 para 1000. De outra forma, mas com elementos estruturais muito próximos, a passagem para o ano 2000 prometia emocionar mais do que a passagem para o ano 2001, quando matematicamente estaremos no novo século.



Edgard Morin escreveu em 1971 um livro sobre um dos boatos mais famosos já acontecidos na França, o boato de Orleáns. Mulheres que freqüentavam butiques famosas da cidade estavam sendo seqüestradas no gabinete de prova enquanto experimentavam roupas. Drogadas e mantidas prisioneiras, eram ao final da noite deportadas, por submarinos que as pegavam no rio Loire e as levavam para “um destino pior que a morte” Alguns meses depois o boato se sofisticou e depurou-se tanto em detalhes que afirmava-se que 28 mulheres jovens tinham desaparecido naquela estranha situação. Chamada a intervir, a polícia concluiu que nenhuma mulher havia desaparecido na cidade em qualquer circunstância estranha, mas os boatos continuaram e só cessaram após as eleições, quando “ a imprensa., cidadãos privados e organizações cívicas” uniram-se contra o anti-semitismo. Investigando o boato, a equipe de sociólogos liderada por Morin concluiu que as lojas nas quais supostamente as mulheres desapareciam vendiam um tipo de mini-saia que a mentalidade provinciana compreendia como estímulo ao erotismo e, portanto, condenavam-na. O outro fator que contribuiu para que o boato vingasse foi o anti-semitismo que imperava na região, responsável pela fantasias requintadas na descrição do assassinato ritual a que eram submetidas as mulheres que ousavam usar a saia erótica.



Comentando este fato, Paul Watzlavick afirma que as autoridades policiais descuidaram-se do fato de que “o importante não é a verdade que possa haver por detrás do boato mas sim o próprio boato”.



Vemos, portanto, que nos dois casos citados os boatos foram suficientemente motivados para exercerem uma força motivadora e mobilizadora que beirou o pânico. No primeiro caso, a ameaça de quebra da rotina se esparramou para todos os setores que devem ser absolutamente rotineiros (porque essenciais à segurança) e no segundo interesses localizados precisavam agir em defesa da preservação de seus usos e costumes, agredidos por elementos de fora da cultura (a mini-saia norte americana e os judeus).



Nos dois casos, a resolução que fez cessar o boato foi a notícia oficial: de que grupos vencedores nas eleições condenavam o anti-semitismo e de que nada de anormal havia acontecido na passagem para o ano 2000.



A notícia aparece então como a não-novidade na medida em que confirma tudo o que as pessoas esperavam ver confirmadas: as suas certezas. Jean-Noël Kapferer, discutindo o caráter inusitado que toda notícia deve ter para constituir-se como tal, observa que a notícia verdadeira é aquela que origina o boato e que o boato é a melhor notícia porque se agita na expectativa do que possa vir. A melhor notícia é, portanto, o inesperado, o que “transgride a ordem natural das coisas” . O que explica o caráter sensacionalista da imprensa de modo geral e atribui à “vocação pela surpresa” a responsabilidade pelo alto teor dramático das notícias que ganham manchetes nos jornais.





A Desconfiança Originária



O comunicador alemão Harry Pross, analisando as estruturas simbólicas do poder , nos fala de uma confiança originária que se desenvolve na primeira infância com a aquisição da linguagem. Essa confiança é adquirida a partir do momento em que a criança ganha competência para operar com os signos. E operar com signos só é possível quando acreditamos que o signo é algo que se coloca no lugar de algo que não se apresenta, mas apenas se representa.



Sabemos que a criança necessita confiar que deve existir algo além das paredes de seu quarto, porque constata que as pessoas aparecem e desaparecem, que algo que está dentro, posteriormente pode não estar. Para onde foi? Deve existir, pois, algo fora que não é do conhecimento de quem está dentro. O antropólogo alemão Dietmar Wyss nos fala que a confiança no mundo nasce ainda antes desses momentos perceptivos, no instante mesmo do nascimento:



La relación primaria, fundamental del recién nacido con el mundo circundante es la confianza de que aquí, después de haber pasado por la estrechez y oscuridad de los órganos que posibilitan el nacimiento, se da “algo”. El mundo circundante responde sencillamente con su existencia a esta absoluta confianza sobre “nada”, ya que el recién nacido no trae todavía consigo experiencia alguna del mundo pero esta orientado hacia el mismo. (Wyss, apud Pross 1980:17)



A confirmação de não há nada e sim algo é suficientemente redundante e persistente durante toda a vida, para que possamos esperar, a todo o momento, surpresas que interrompam ou nos façam duvidar de nossas expectativas. A aquisição das palavras só é possível mediante tal confiança e todo o repertório sígnico adquirido a partir da primeira infância está condicionado à confiança originária. É ela também que possibilita a faculdade de designar, nomeando. É Pross quem afirma:



Por banal que pueda sonar, esto entraña por lo menos la certeza de que se dan, aparte de la conciencia interpretante, estos dos “algo”. La teoría de los signos trabaja con este presupuesto. Y en este punto llega a sus limites, se apropie la facultad designadora de la imaginación, con Kant, o bien emplee la metáfora, con Engels y Lenin, del “reflejo” de la realidad, o asuma, más bien, con Sapir y Whorf, un principio de relatividad lingüística. La relaciones entre conocer y designar, pensar y hablar se forman junto al “algo” que se dé y en su referencia a otro algo; referencia que se interpreta no en la “nada”, sino al contrario, en el algo perceptible. (Pross, 1980:16)



Não há boato sem motivação, ou seja, sem algum fundamento. Podemos encontrar confirmação para essa asserção no próprio acervo cultural: um conhecido dito popular afirma que “todo boato tem um pouco de verdade”. A crença nesse fundamento e a desconfiança quanto ao lugar dessa “pouca verdade” é que parecem conferir ao texto “boato” - qualquer que ele seja - lugar no imaginário das pessoas. Além disso, o mistério e a opaca certeza quanto à revelação daquilo que nele se oculta, aliados ao sentimento de transgressão que advém de sua circulação não autorizada, são ingredientes capazes de torná-lo ainda mais sedutor e passivamente desafiador.



Como versões não-autorizadas, quase espontâneas, da realidade os boatos sinalizam, sem oferecerem qualquer garantia de certeza, que algo que deve existir quando ele (o boato) se faz presente. São, portanto, aglomerados sígnicos ou textos que veiculam – de forma igualmente sígnica – possibilidades interpretantes acerca de objetos, “verdades” e “realidades” que não estão neles, mas que intentam representar para alguém e, principalmente, por alguém.



Aqui, aproximamo-nos bastante de um dos mais complexos e elucidadores conceitos que Charles Peirce nos fornece do signo:



[Signo é] algo que representa algo para alguém em algum aspecto ou capacidade. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez mais desenvolvido. A esse signo que ele cria, dou o nome de interpretante do primeiro signo. O signo representa algo, seu objeto. (CP.2228)



O boato dirige-se a alguém porque possui motivação suficiente para chegar ao público que pretende atingir. Cria na mente da pessoa que o recebe uma outra versão equivalente ou mais desenvolvida, que seguirá em frente alterada, adulterada e adensada pelas contribuições dos interpretantes anteriores. O objeto de cada versão do boato é, então, não mais seu hipotético objeto inicial, mas a sua versão imediatamente anterior, o que nos leva a concluir que o boato é um meta-signo, pois não pretende mais levar o interpretante ao seu objeto, senão às múltiplas possibilidades interpretantes que incorpora a cada transmissão.



Por isso, podemos afirmar que o boato não representa seu objeto (sígnico e de matéria interpretante) apenas para alguém, mas principalmente por alguém. Há uma voz anônima que não se compromete na narrativa e que não escreve o que afirma: apenas insinua e pontua modulações reticentes, verdadeiros convites à participação do interlocutor na cadeia transmissiva.



É nesse sentido que podemos igualmente afirmar que ao ciclo do boato não interessam as certezas ou as confianças: ele se move em meio às desconfianças de que deve haver muito mais verdades onde poderia haver (ou há) apenas uma versão autorizada, não contestada.



A mágica do boato de Orleáns e as catástrofes anunciadas da passagem para o ano 2000 foram capazes de acolher múltiplas e complexas redes interpretantes as quais a “realidade” não se daria conta ou não seria capaz de suportar.





A notícia do boato



Os boatos correm e ganham peso, cor textura e riqueza de detalhes, revelando não apenas a potencialidade criativa do grupo que o dissemina como também os elementos ativos do imaginário coletivo desse mesmo grupo.



E por que correm os boatos? Segundo Kapferer, os boatos correm porque são notícias, porque trazem novidades, mesmo que a novidade não esteja no fato narrado mas – como não raras vezes acontece – na forma de como é narrado. Além disso, a mídia do boato é informal, tal como ocorria antes da invenção da imprensa: o boato corre de ouvido a ouvido, criando um elo de cumplicidade e confirmando laços de confiança.



Nesse sentido, o boato é fator de coesão social. Na medida em que é comungado por um grupo, passa a ser o conhecimento oficial: ganha notoriedade, frequenta as rodas de conversa, torna-se o assunto principal em torno do qual cada integrante do grupo se pronuncia e se posiciona. A cada repetição, confirma-se, ganhando, assim, enorme poder de convencimento e, por referir-se normalmente a situações de interesse do grupo que o sustenta, não pode ficar confinado: passá-lo para frente, acrescido das próprias contribuições, significa libertar-se de um peso e sentir-se incluído no rol dos que partilham o boato.



A velocidade com que correm é outro aspecto que os aproxima das notícias da mídia. Os boatos se espalham tal como as notícias se espalhavam nas civilizações orais, com a sensível diferença de que se antes as notícias eram condições de sobrevivência, aqui os boatos são atestados de convivência.



As notícias, quando divulgadas, tendem a fechar possibilidades. Elas afirmam alguma coisa a respeito de outra ou de alguém, deixando de fora as demais possibilidades que não figuram na afirmação. O efeito da notícia é, portanto, redutor, tal como reconhecem Hanno Beth e Harry Pross , porque ao afirmar algo a mensagem se reduz a confirmar muito menos aspectos do que exclui. Ao noticiar, por exemplo, que nenhuma mulher havia desaparecido em Orleáns, a imprensa local, devidamente escorada pelas investigações policiais, extinguiu toda e qualquer possibilidade de o boato prosperar. E ninguém duvida de que o boato era mais rico e surpreende do que a notícia que o aniquilou.



Se a notícia é redutora e excludente, o boato é complexo e includente. Por isso, ambas as formas trabalham em sentidos radicalmente diferentes: enquanto o boato tende a se alastrar, a notícia tende a murchar, atrofiando as possibilidades interpretantes do ambiente ao qual se reporta.





Oralidade, memória e imaginação



A tradição oral, tantas vezes lembrada em oposição à civilização da escritura, convive produtivamente com a escrita, atuando de foram auxiliar ou mesmo participando dela com autonomia e descaso.



O boato, uma das poucas formas de comunicação social que não se entregou à escritura, está apoiado na necessidade de falar e no desejo de ouvir. A praticidade da fala, que confere velocidade e oportunidade à expressão do pensamento, aliada à riqueza expressiva que ela permite na associação às demais linguagens do corpo que fala (os olhares, gestos, compleições faciais, modulações de voz, timbres e ritmos) resultam em ganhos significativos para a compreensão e a impregnação da mensagem. Ao lado desses importantes recursos persuasivos, a fala requer da memória uma vivacidade denunciativa, além de constituir uma forma de ampliar a memória não escrita de um grupo, conforme nos fala o biofísico Henri Atlan, num de seus trabalhos sobre a relação entre a linguagem e a memória:



Falar(...) é sinônimo de “emergir na consciência”, pois esse querer normalmente inconsciente e essas coisas que se fazem, via de regra, de uma maneira oculta, anônima, quando interferem com os processos da memória manifestada, não podem deixar de utilizar os materiais dessa memória; ora, entre estes e a linguagem, existe um elo muito estreito, pois a utilização de uma linguagem falada e, depois escrita, constitui, na verdade, uma extensão enorme das possibilidades de armazenamento de nossa memória que, graças a isso pode sair dos limites físicos do nosso corpo para se depositar em outras pessoas ou em bibliotecas. (Atlan, 1978:118-119)



O que Atlan afirma pode confirmar um dos aspectos que Kapferer realça ao esmiuçar a anatomia dos boatos é a atuação ambivalente da memória: se, por um lado o boato sobrevive e se prolifera incluindo contribuições mais recentes e descartando outras redundantes e mais antigas, ele se incorpora na memória oral da coletividade em que acontece, povoando estórias e incrementando narrativas míticas as mais diversas. As narrativas bíblicas estão recheadas de boatos que acometeram multidões orais fascinadas pelo poder da escritura; não são poucos os helenistas que afirmam serem as epopéias clássicas - Ilíada e Odisséia - um amontoado de narrativas que se propagavam de boca em boca até ganharem na memória coletiva a força da escritura.



A associação entre oralidade e memória, apesar de nos auxiliarem a entender a lógica dos boatos, não é capaz de nos levar a compreender a motivação que os faz propagar. Também não permite, por si só, que venhamos a entender o mecanismo pelo qual um boato é estancado. Se não falham a memória ou a competência da fala, podem falhar a imaginação, pode faltar assunto.



A capacidade de projetar situações e de operar por situações possíveis em torno de algo pontual, factível, comprovável, é talvez o grande segredo da eficiência dos boatos. Eles assumem, assim o caráter textual que Ivan Bystrina designa como “criativo imaginativo”



Esses textos, construídos para resolverem problemas que não podem ser solucionados pelos demais textos - que Bystrina denomina instrumentais e racionais - estabelecem nexos criativos e relações impossíveis, ampliando o espectro de sedução da trama narrativa, não permitindo, assim, que ela se reduza e empobreça.



Neste sentido, os boatos aproximam-se da natureza dos textos artísticos, performáticos e de criação coletiva, beirando o folclore. Não é por outro motivo que o folclore político é recheado de anedotários e narrativas de boatos que se tornaram célebres, destruindo ou enaltecendo personalidades que os protagonizaram.





Novos nichos semióticos: o boato virtual



Afora os boatos clássicos a que nos referimos e que, embora pouco estudados, recheiam os ambientes profissionais, políticos, acadêmicos, burocráticos das mais diversas áreas do fazer humano, uma nova tecnologia desponta como terreno fértil para a criação e propagação de boatos: a rede mundial de computadores, a Internet.



A troca rápida de correspondências eletrônicas e a possibilidade de, ao mesmo tempo, uma pessoa comunicar-se com milhares, geograficamente dispersas, acelera em muito o tempo de propagação de um boato. Porém, se há, na economia de tempo, um ganho de eficiência na disseminação, há também considerável perda de qualidade quando verificamos que a ausência do contato físico, da proximidade que a transmissão oral proporciona, compromete a credibilidade e, por conseqüência, frustra a continuidade da divulgação do boato.



Outra questão que parece inaugurar um novo tempo na linguagem da comunicação informal é a tendência de a escritura despojar-se da rigidez sintática das gramáticas das línguas naturais e ganhar maior flexibilidade com a introdução de elementos gráficos que beiram a linguagem ideográfica dos orientais.



Tais inovações, nascidas mesmo da necessidade de libertar a linguagem das opressões estilísticas e levá-las a superar sua precariedade expressiva, tendem a criar novas modalidades de comunicação informal. O boato, herdado da tradição oral, tende a ganhar novas formas, sem perder sua área de atuação já consagrada: os espaços proibidos da transgressão e da subversão da ordem constituída. Esses espaços, que sempre foram virtuais, não sofreram – como não sofrem – nenhum tipo de estranhamento diante das novas tecnologias da comunicação. De certa forma, não é totalmente descabido afirmar que já esperam por eles.







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