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Artigos-->Férias -- 02/01/2000 - 22:36 (Maria Abília de Andrade Pacheco) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Alma nenhuma ousa levantar razão naquele costume de anos. Seja este um engenho do demônio, na medida em que as coisas de Deus se fazem, ora bolas, para ser indagadas e perguntadas. Que graça um mundo sem explicação? Daí o homem ter lá sua cadeira cativa, seu lugar à mesa, suas regalias, que o elevam de proletário a rei. O dia começa e termina religiosamente no círculo mesmo de vinte e quatro horas em todos os lugares de todos os mundos. No tosco palácio, o nababo devolve todas as ordens a que lá fora se submete. O grito é o desse costume que não se furta a bater à porta tão logo sorriem as férias. O habitual costume: todo o mundo a passear, e "ele" restar só. Os filhos, nem tchum, pra que perguntar, pra que sequer pensar, deixasse o "autoridade" refestelado no ninho de imundície em que ficava a casa, num estado de esboços de idéias preteridas ao chão, garatujas a juncar o piso de cerâmica. Entrementes, todos lá longe, mais e mais felizes sem "ele", esse o ponto trabalhado no arabesco da colcha de crochê.

"Ele", de sua parte, fazia-se todas as vontades, num livre exercício de autocomiseração, de autoflagelação, de fazer-se gostos. Relembranças de antigos sestros ao espelho, a verdade afônica retumbada do inconsciente: ter um quarto escondido na casa, só d"ele", quarto de parede mágica aberta a uma ponta de dedo, como nesses filmes sessão da tarde. Esse quarto teria seu tesouro, sua ordem, sua desordem. E "ele" correria para lá em seus apertos, e seria só de si sua alma d"ele".

Quando todos estavam fora, não tomava banho nem comia em horários regulares. Aliás, fazia assim: criava leis malucas, códigos seus, tais quais comer numa semana batatas, noutra tomar sopas; servir-se do urinol para aliviar as leis do corpo, em vez de socorrer-se à privada; enfiar-se num pijama de listras cinza e não sair mais dele; calçar os pés num insólito par de chinelos pé-de-um-pé-de-outro, muitas vezes pé esquerdo no direito, todo o dia, sem se dar conta; plantar bananeira no meio da sala; fincar a unha na caspa. Que saudade da fiel companhia dos piolhos da infância! Bicho de pé também poderia fazer as vezes de propulsores do moto contínuo.

Trinta dias sem tomar banho nem pentear cabelos, vestindo o mesmo pijama sem trégua, à moda noves-fora-cuecas, lep-lepando os chinelos casa afora. Diversão à tripa forra ante a janela de vidro por onde as beldades desfilam pernas longuíssimas e magras (dois gambitos, rá-rá-rá!). Ao cabo de trinta dias, emerge o tenebroso monstro, pêlos na cara toda, pijama ensebado, chulé recendendo entre os dedos porcos, unhas enormes, hálito de fazer rolar pedras das mais alterosas montanhas. Nas vasilhas depostas na pia, o bolor floresceria nos restos de comida. Essa sujeira era uma delícia, mas já estava dando nos nervos. Tudo reza ocupar o seu lugar no espaço. Mas quer saber que a verdade, tanto mais verdadeira, tanto mais é uma grande piada?

Deste ano não passaria, construiria "ele" o seu abrigo. Mas, fique claro, só quando os "a seus cuidados" apeassem novamente de suas costas no meio do ano. Ora, não é que essa gente rompe os sonos dia a dia, roubando a "ele" o direito de errar ubíquo por sombras e cantos? Mas deste ano, isso "ele" garantia, deste ano não passaria! Nesse quarto secreto, erigiria um obelisco em honra ao homem-animal, ao ser sem outro ânimo que não a companhia de si mesmo.

Onde a disposição para arvorarem arroubos? Não é que toda volúpia é mesmo do capeta? Melhor viver à sombra, barriga para cima, catando mosquitos. A Terra há de interromper seus movimentos e quedar-se ao universo que a cerca. Nos dias obrigatórios de morte, morre-se bons dias mesmo, um que outro momento resistindo heróico na algibeira, esse o direito indistinto de todo o mundo. Neste entretempo, todo jejum é uma revelação. Estar de férias é curtir a entressafra. Venha o que vier, sem promissórias, sem aquele sentimento recorrente, tanto biltre quanto nobre, a tomar de assalto descomedidas horas! Férias essas de não ter arrependimento, de não pensar culpas, de não fazer planejamentos, de não se submeter aos ditames da sociedade que mata o sujeito para provar-lhe que está vivo. Vivo eu estou é no vazio de mim, essa a minha paz.

A tudo o que obriga, lá vai: sou o que posa atrás da imagem, coração batendo no peito do piloto de provas. Vocês se pirulitam de mim, e eu aqui, escarafunchando cavidades e orifícios à procura de líquidos e secreções, cravos, espinhas e suores. Dizer a verdade, nem caminhar caminho. Mas estou vivo, isso constato quando aliso a carne morta dos pés adormecidos e deparo com a sensação de ser outro o dono desse pé, assim como se tocasse outra pessoa, e o meu eu real remanescesse no limbo, eu cotó, pulando de casa a meio.

Como é que não sinto cócegas quando eu mesmo as provoco? Meu cérebro, meu algoz! Mas a catinga que o corpo exala é um afrodisíaco à prova de desodorante, seja de que marca for. Socorro, esgotada a data de validade!

A garota capa de revista bem que poderia ter a dignidade de sapatear sabão numa ilha deserta. Quantos dias sua beleza, grande trunfo, resistirá nesses ermos sem poções mágicas? Eu, que feio, feliz sou, que, de feio, nunca ficarei mais feio, e o castigo do bonito sentencia-o a intempérie. O espólio do belo não ultrapassa fotografias da juventude.

Ficar sozinho é muito bom, e melhor ainda é pensar que a turma acha que estou sofrendo aqui trancafiado, pobre dele, sozinho, nós aqui aproveitando, nadando, correndo, indo à praia de nossos sonhos, esticando-nos ao sol como lagartas, comendo frutos do mar e nos deliciando com os enfeites da natureza. Beócios! Eu giramundeio sala, cozinha, três quartos, banheiro, dependência completa de empregada, na mais que plena liberdade enclausurada. Socavões inexplorados de mim!

Nada que buscar no arroto inadvertido de meus silêncios.

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