Tarde de Domingo. Ligue a televisão em qualquer canal . Eis que adentra na tela o ser bestial oxigenado, trajando uma tapa-sex e nada mais. Subitamente, a criatura começa a rebolar e se aproxima de uma garrafa. A botelha, frágil e desprotegida, sofre então um verdadeiro estupro: o pervertido monstro posiciona-se no gargalo do frasco, iniciando uma série de contrações vaginais, dignas de figurar em um manual de puntuarismo; insaciável, o animal não para, e a pobre garrafa vê-se envolvida em um jogo dantesco, vulgar e deprimente. O ser bestial, pasmem, era uma mulher (?!), chamada Carla Perez, um dos ícones (!!!) da nova safra de “dançarinas” brasileiras, aclamada pela massa; e dizem que isso – seja lá o que for- é arte...
Como se pode perceber, o conceito de arte é, sem duvida, bastante controverso, mas passível de uma afirmação: “o em si da obra de arte não é uma imanência, é uma projeção” com diz J. Coli. Ela não está no objeto, mas na leitura feita dele – daí sua imortalidade. Como, então, falar que a cerâmica, as pinturas rupestres e toda cultura produzida pelo homem primitivo não são, também, formas de arte? Se hoje elas parecem simplórias, talvez devam ter sido carregas de significação a outros olhos. Quem classifica os hominídios de animais, irracionais e incapazes, bem... é melhor ligar a TV e dar uma olhada nas “pós-modernas” popozudas e suas danças de acasalamento – puro feromônio!
Os homens primitivos, dentro de suas limitações sociais – aqui falando em complexidade cultural – produziram maciçamente formas de expressão, e porque não artísticas. Partindo da concepção “titaneana” – acredite, os Titãs já pensaram...- de que “agente quer comida, diversão e arte (...)”, ou melhor, o homem tem por necessidade a produção artística, pode-se concluir que os paleolíticos e neolíticos faziam, sim, arte, –naturalmente, todavia, adequada às suas necessidades; magia propiciatória, dança... essas eram suas expressões.
Na verdade, a arte primitiva é muito mais desenvolvida do que se possa imaginar. De certa forma, ela por si só já foi uma revolução social. Se os homens pré-históricos tinham tempo para dedicar-se à escultura, pintura, é coerente afirmar serem eles possuidores de algum desenvolvimento, ou como iriam entregar-se ao ócio criativo? Até em vista da função social da arte nesse período: ela era a magia da caça, o modo de registrar às gerações futuras o conhecimento. Quem sabe, inclusive, a classe dos artistas – bem diferente de hoje- fosse a mais respeitada, pois eles eram dispensados da coleta de mantimentos para dedicar-se aos seus trabalhos. Seria a primeira especialização da divisão do trabalho?
Com o tempo, a arte foi evoluindo de uma “quase mera funcionalidade” até invadir o campo da expressão existencial propriamente dita. Subdividiu-se em profana e sagrada, e passou a ter um estilo bem definido. O gado e a agricultura davam ao homem a oportunidade de fazer uma arte comunal, pois não mais era preciso caçar e coletar – neolítico. O homem passa dos simples gestos à manipulação de ferramentas, descobre seu poder de interferência no meio e como comandar os mecanismos da fala; ele percebe como trocar informações, comunicar ( para transmitir tecnologias como a do fogo) o que talvez os gestos não conseguissem. Não afirmando aqui a linguagem como inerente ao homem, mas sim sua capacidade de produzí-la. O sujeito como construtor de sua realidade.
Em conjunto, o cérebro e corpo humano mostraram-se como a mais surpreendente ferramenta já vista, capaz de possibilitar a própria condição de ser humano, de trabalhar, de criar. Discutir “a arte como da ‘essência’” sujeito talvez seja falar do “sexo dos anjos”, mas certamente se ela não era uma necessidade vital, acabou por configurar-se como tal – não só do ponto de vista pragmático, senão principalmente do deleite estético, do prazer, do hedonismo.
Da idéia de que a arte é aquilo que causa estranhamento, uma inquietação, condutora à transcendência, os homens primitivos, talvez, fossem melhores artistas que nós, patéticos “adoradores de garrafas”. A concepção clássica de que “o ócio é mais importante que o negócio”, a qual segundo Sérgio Buarque de Holanda era arraigada pelos ibéricos e até pelos tupiniquins, se perdeu em meio a mercantilização do mundo. Quem sabe, devamos abandonar nosso mundo tecnocrata super-desenvolvido e aprender um pouco com nossos primitivos ancestrais. Monga por monga, é melhor ficar com a original...