Imaginemos a seguinte situação: um sujeito casado e com dois filhos, forma-se em Medicina. Mas o selvagem mercado de trabalho criado, lhe acena com uma modesta colocação num posto de saúde, recebendo R$ 1.200,00 por mês. Dentro do cenário de miséria que nos envolve, alguns consideram um bom salário inicial, esquecendo que um gari chega a ter salário em torno de R$ 800,00 sem ter investido madrugadas debruçado sobre livros durante cinco anos, perda de festas e provas exigentes. Mas a alegria de poder ajudar (e às vezes salvar) algumas vidas dá forças aquele sujeito em não renegar sua bela profissão.
Num determinado instante, um laboratório (conhecedor do ótimo currículo do nosso sujeito) convida este médico a assinar um contrato por dois anos para exercer a função de auxiliar de enfermagem recebendo R$ 30.000,00 por mês. Apesar da indignação que possa lhe aflorar num primeiro instante, o sujeito esbraveja, mas acaba aceitando a oferta baseado em dois fatores: dar boas condições à família e a possibilidade de juntar um capital que lhe permita abrir seu consultório dentro de dois anos e aí sim, poder desenvolver as habilidades paras as quais foi treinado sem depender de oprimir sua vocação.
Uma situação similar: um piloto de corridas de carros, com potencial para estar entre os cinco melhores do mundo, aceita um contrato de dois anos recebendo R$ 15.000.000,00 para ajudar ao companheiro de equipe a ficar sempre em melhor posição que a sua. Ele engole em seco, mas aceita, pois este valor certamente lhe permitirá desenvolver algum projeto no futuro, que não conhecemos (pode ser uma fundação para ajudar menores carentes ou algo similar). Os torcedores que pagaram caro pelo ingresso para assistirem a uma disputa honesta entre os competidores, esperando ver o melhor vencendo, com justiça podem reclamar de tal composição, que levou Barrichelo a ceder a vitória para o piloto Schumacher na corrida da Áustria. Só não entendemos alguns antigos pilotos esbravejando contra o fato. Imagino que na verdade estão lamentando que em sua época não ocorreu uma oportunidade destas em suas vidas. Pior são os conchavos armados nas federações de futebol para definir os vencedores de algumas partidas deste jogo, que só são reveladas após descuido (ou revolta) de algum participante do esquema.
Tal fato pode parecer falta de ética se considerarmos os ensinamentos que absorvemos até os anos 50. Depois do advento da "globalização", os valores foram desvirtuados e a impunidade passou a ser sinônimo de liberdade. No entanto o acordo entre os pilotos era público antes da corrida. Além do mais, os torcedores podem tomar medidas para demonstrar insatisfação com este formato que dá brechas a se redigir um contrato deste teor. Basta não comparecer às corridas seguintes. Assim como nós poderíamos deixar de comprar produtos que aumentam além do lógico. Como poderíamos deixar de votar nos corruptos que estão há mais de 30 anos no poder fazendo promessas vazias e aumentando o patrimônio particular além do que seus vencimentos permitem.
Mas o ser humano parece gostar de sofrer. Os torcedores "indignados" voltarão a ficar sentados sob sol quente talvez nem torcendo pelo resultado final que pode ser alterado a 100 metros da linha final. Talvez sintam mais prazer em ver carros se colidindo e voando sobre as muretas de proteção. O padrão de exigência de qualidade de vida está tão baixo, que diversas pessoas estão ansiosas pela 2a. edição do programa Big Brother Brasil, mostrando o comportamento de uma dezena de pessoas confinadas numa casa por quase um mês, torcendo para que fulana durma com fulano e beltrano. Estes expectadores ainda não perceberam que a queda de nível da programação da tv aberta é dirigida no sentido de nos conduzir a contratar as caras imagens por cabo. É a mesma política adotada nas empresas estatais para reduzir seu preço antes do leilão-doação. Notemos que na Petrobras, dotada de profissionais de alto gabarito, das mais modernas técnicas de trabalho e de aparelhagem de última geração, conseguiram provocar dezenas de acidentes (até com mortes) nos últimos cinco anos, superando em quantidade e volume todos os acidentes acumulados ao longo dos 45 anos iniciais de vida desta gloriosa empresa.
Haroldo P. Barboza – Matemático, Analista de computador e Poeta – Maio / 2002
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