“Se os alemães tocassem tambores, os mesmos rufariam na solenidade macabra que prenunciou o genocídio africano em 1885. Em tudo pensou o Velho Mundo: um crime premeditado, com data e época marcada para se consumar. Aguarda-se, pois, o velório e o enterro. Onde o corpo-continente será velado, não se sabe, mas, dizem as más línguas, todos os caminhos levam a Berlim. Afinal, o caixão é irmão do berço. E, vez por vez, clichê por clichê, tudo acaba onde começou, mas, supremo paradoxo, os menos responsáveis pela barbárie secular são, quem diria, os próprios alemães.”
Reza o ditado popular a máxima de que “o caixão é irmão do berço.”. Uma vez que tal assertiva logra veracidade, concluir-se-á que o continente africano é o estandarte-mor da glória seguida pela desgraça, da plenitude sucedida pelo ocaso. Alcunhas diversas recebeu a Mãe Africa; de mãe, porém, passou a filha bastarda. Do ente vil e maniqueísta intitulado Imperialismo.
Os livros de Christian Jacq retratam uma Antigüidade áurea, os documentários do Discovery Channel revelam um continente exoticamente sedutor e o secretário-geral da ONU, o ganense Kofi Annan, atribui-se o inglório propósito de transmitir ao Ocidente a imagem de uma África menos malograda do que de fato é. Vãs tentativas que se esvaem sem significado algum quando um cinegrafista independente capta furos ao filmar uma tropa de rebeldes da FRU (Frente Revolucionária Unida) leonense perpetrando mais uma das ordinárias rodadas de carnificina “infundada” e arqueada pelo ódio ensandecido. O espectador, muito embora esteja perplexo e horrorizado, propõe-se, involuntariamente, à uma reflexão histórica na qual tentará engendrar na contemporaneidade resquícios passados de uma desgraça que, de tão precisa e bem planejada, teve ano e lugar de consumação - Berlim, 1885-1886.
À Conferência de Berlim, realizada nos anos de 1885 e 1886, confere-se o mérito de ter retalhado a então Mãe Solteira em setores de controle e exploração deliberada. Ocorre que, em meados do século XIX, a África já se encontrava rechaçada pela dinâmica imperalista, cujos baluartes eram majoritariamente anglo-franceses. A nova partilha conferiu benefícios territoriais-econômicos às potências insurgentes, tais como Alemanha e Itália. Numa primeira análise, afigurar-se-ia muito sensato e plausível conferir a estas duas últimas o ônus da secular desgraça africana. Todavia, uma vez criteriosamente analisada a dinâmica econômico-produtiva das potências imperalistas, concluir-se-á – ah, falaciosa História! – que tanto a Alemanha quanto a Itália foram, veja você, as potências a quem menos se deve atribuir a responsabilidade do malogro africano. Contemplemos as razões.
Serra Leoa era sítio de escravos libertos e converteu-se, forçosamente, em laboratório político-econômico sob os auspícios do governo de Londres. A Argélia foi a porção setentrional do quintal francês no continente africano, de modo que o Congo afigurou-se, ao longo de mais de um século, como a despensa do hoje tranqüilo e próspero Reino da Bélgica. Sem embargo, Lisboa conspurcou e incitou tanto quanto pode as disputas e rivalidades internas do destroçado território angolano. Bem como britânicos e holandeses resolveram sair nos tapas lá pelas bandas da província de Orange.
O Velho Mundo arrombou as peculiaridades históricas do continente africano para depois jactar-se diante da desgraça consumada. A situação adquire feições prático-reais quando se contempla o Conselho de Segurança da ONU – constituído, entre outros Estados, por França e Reino Unido – deliberar acerca do futuro de Serra Leoa, Guiné ou Somália. Sem quaisquer adstrições ou escrúpulos, despacham suspeitas “missões de paz” para “restaurar a ordem” nos rincões de probreza embebidos no sangue do ódio incitado pelas mesmas potências que hoje tentam falaciosamente “amenizar” o cenário caótico.
Não foge à ironia. A inconseqüente e lastimável atitude de se agregar dentro da mesma marca territorial povos cujas rivalidades tribais jamais foram sanadas configurou-se como a espoleta detonadora dos eternos e encarniçados embates intra-regionais do continente africano. Em terminologia laica e vulgar, faz-se a desordem para, posteriormente – e em vão –, tentar corrigi-la.
Como bem se conclui, o ônus de lacrar o caixão compete majoritariamente aos governos de Londres, Paris, Bruxelas, e, em parte, Washington. Não haveria de lograr sensatez a subtração da responsabilidade ianque no processo de intensificação das guerras intra-regionais da África. A Berlim, muito imerecidamente, atribui-se, entre algumas parcas intrigas irrelevantes dos anos de nacional-socialismo, tão-somente a malograda decisão de sediar a solenidade da barbárie.
Far-se-á passível de análise uma distinção entre as duas vertentes de colonização empreendidas pelas potências européias no final do século XIX e no início do século XX. Tomemos, a título de exemplo primário, o caso da Namíbia. A antiga colônia alemã, muito embora não desfrute de um status vivendi muito melhor do que o de seus vizinhos, foi, enquanto teve Berlim como metrópole, submetida à um método colonizador peculiar. Não se soergueu no sudoeste africano um modelo colonizador-explorador nos moldes dos binômios Cairo-Londres ou Argel-Paris. Colônias alemãs foram estruturadas e uma dinâmica produtiva voltada para o equilíbrio entre mercado externo e mercado interno logrou sucesso até que o II Reich submergisse na humilhação de Versailles. Todavia, uma vez submetida aos auspícios das “potências do mundo livre”, a Namíbia fitou seu bojo socio-estrutural desmoronar diante de uma Europa famigerada pela reestruturação às custas do que fosse necessário subjugar, desmontar, violar, desrespeitar e destruir.
Não se averigua aqui a exegese das diferenças entre as concepções políticas alemã e britânica. Tampouco se procura discorrer sobre a rivalidade de ambos os povos na aurora do século que há pouco se findou. Ver-se-á, entretanto, alguns dos aspectos benéficos que poderiam ter sido desenvolvidos e melhor estruturados caso os alemães tivessem logrado êxito na aventura militar de 1914-1918. Com efeito, o nacional-socialismo não teria espaço e propicialidade resvalados para seu alicerce prático-teórico enquanto ideário das massas, bem como o mundo não teria se entregado de corpo, alma e canhões à barbárie de 1939-1945.
Sem mais delongas nas análises histórico-conceituais. Atenhamo-nos, pois, à medíocre e revoltante contemporaneidade. Contemplemos – passivos e de acordo – aos acessos de menina rica e mimada que a Grã-Bretanha se dá ao luxo de ter quando envia os soldados de Sua Majestade para salvar meia dúzia de súditos encrencados com rebeldes da FRU (Frente Revolucionária Unida) nos arredores de Freetown. E batamos palmas, ora essa! Os Estados Unidos querem uma base aérea na Somália? O governo central não permite? Mísseis nos somalis! A Organização da União Africana resolveu deliberar a favor da contenção do tráfico de diamantes? A indústria diamantífera belga irá falir! Que há de se fazer? Descer o braço nos leonenses! É dando – autoritarismo – que se recebe – complacência. Gente malograda e de pouca fé; horda de subdesenvolvidos mesquinhos e incultos. Ah, Mãe África! És filha bastarda!
Atribuir-se-á a culpa a alguma entidade ou Estado. A Deus não cabe, e tampouco à opulenta Europa. Mas...e Berlim? A culpa é deles sim! Sim, dos alemães! Os alemães, os sagazes alemães, não seguiram a cartilha imperialista à risca e bagunçaram o playground do Velho Mundo. Nazistas inconseqüentes! É tudo culpa da campanha no Norte da África! Foram os Afrikakorps1 ! Sim, foram eles quem desenvolveram o vírus HIV e disseminaram-no no continente! Londres, Paris, Bruxelas, Washington? Guardiões da paz e do bem-estar. Deles mesmos, of course.
Ao epílogo, um vislumbre que não faria feio ante os marcos prodigalizados por Zaratustra: berço que foi, esplêndido na aurora, apodreceu e contemplou a própria textura vergastada pelas mazelas imperialistas. Ah, Mãe África! Tornaste-te um caixão rubro de ódio e fétido de carne pútrida! És, pois, o sucessor do berço. Da plenitude ao ocaso. E onde será o enterro? Não se sabe, mas, dizem as más línguas, todos os caminhos levam a Berlim...