SEVERINO
Em 1978 cursava Ciências Contábeis na Faculdade de Ciências Contábeis e Administração Morais Júnior no Rio de Janeiro, entidade mantida pelo Conselho Nacional de Contabilidade que hoje integra o grupo Mackezie. Estava no terceiro ano da faculdade, na nossa escola, o sistema de créditos não era aplicado, e cada ano da faculdade contava com determinado número de cadeiras. Se você fosse reprovado em até duas cadeiras, poderia passar para o ano seguinte, mas teria obrigatoriamente cursar as cadeiras do ano anterior.
No terceiro ano da faculdade, Contabilidade Pública era uma das matérias do currículo. Quem ministrava a cadeira para nossa turma era o professor Alberto. Um senhor com seus sessenta anos ou um pouco menos. Bem folclórico, dadas suas colocações, maneiras de se portar e pelas inúmeras histórias a respeito da educação rígida que dava aos filhos, e como passara vários dias acampado na porta do Palácio Guanabara, quando Getúlio era presidente, para que a profissão de contador fosse reconhecida. Sempre se apresentava para dar aulas de paletó e gravata, não importava o dia, ainda que num sábado à tarde.
A Lei 4.320, de 17 de março de 1964, em seu artigo primeiro estabelece as normas gerais de direito financeiro para elaboração de controle dos orçamentos e balanços da União, dos estados e dos municípios. À mão, ele sempre trazia um livro didático com a lei citada, e os devidos comentários. Era sua bíblia. Claro, nós alunos obrigatoriamente tínhamos que assistir às aulas com o livro ao nosso alcance.
Nosso mestre, logo após a chamada, feita rigorosamente no início da aula, tinha por norma escolher um aluno e pedir para ele ler um trecho do livro e dizia para o aluno: “Por favor, abra seu livro na página tal e leia a partir do parágrafo que começa assim...” Ou ele sabia o livro de cor ou decorava o parágrafo ou parágrafos antes do início da aula. Quando o aluno ia iniciar a leitura, ele o interrompia e perguntava: “A propósito, como é seu nome?” Fulano de tal, respondia o interpelado. Por acaso o senhor sabe a origem de seu nome, perguntava-lhe novamente o professor.
Se o escolhido não soubesse, o professor passava meia hora dando um rala no aluno, verdadeira lição de moral pela falta de conhecimento. Dizia poucas e boas, que era uma ignorância muito grande se desconhecer a origem do próprio nome e outras coisas mais.
De início aquilo foi constrangedor para nós; mas com o passar do tempo, entretanto, virou folclore e ninguém se importava, tendo se tornado até mesmo um atrativo da aula e muitos alunos ficavam à esperada da chamada e da famosa pergunta da dar boas gargalhadas.
No curso, havia um conterrâneo nosso, cearense lá de Senador Pompeu, que há anos morava no Rio de Janeiro, muito espirituoso e engraçado: Adalberto Magalhães. Sempre nos dizia que planejava aprontar uma, se algum dia fosse escolhido pelo professor para a leitura habitual. O tempo passou e nada.
Já perto do fim do ano, Adalberto vendo que não seria chamado, começou a conversar no início da aula, antes da chamada para ter atenção do professor e ser inquerido. Não deu outra, depois da chamada o mestre olha para o Adalberto pede para ele ler o livro a partir da página tal; dá início à leitura e manda Adalberto continuar. Quando Adalberto inicia a leitura, vem a pergunta: ”A propósito, como é o seu nome? Severino, respondeu imediatamente, Adalberto. A turma já ficou ressabiada.
No Rio de Janeiro, todo nordestino é chamado paraíba, assim como em São Paulo é baiano; não importa de onde seja: Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Alagoas, Sergipe, Paraíba, Piauí, Maranhão e Bahia. Severino é um nome bem nordestino. Hoje os Severinos sumiram, foram substituídos pelos Diegos, Tiagos, Rodrigos, Rafaeis, com ph claro, Gael, em outros mais.
Qual a origem do seu nome, Severino? Perguntou o professor. Paraíba, respondeu de pronto Adalberto. Não prestou. Todos os alunos se conheciam e sabiam o nome que o nome dele não era Severino, e sim Adalberto e que ele somente queria gozar com a cara do professor. E foi o que aconteceu, a classe foi à loucura; caiu na gargalhada.
Não precisa dizer que naquele dia não houve mais aula. O professor desconfiou da resposta e viu que era uma brincadeira do aluno. Acho que examinou a lista de chamada e não encontrou nem um Severino. E deu uma bronca geral na turma. Lembro-me bem que ele dizia que estava dando aula para alunos de uma faculdade, de uma das faculdades mais conceituadas do Brasil em Contabilidade, que a faculdade era orgulho do Conselho Nacional de Contabilidade, que a faculdade havia aprovado vários alunos no concurso do Banco Central naquele ano e não sei mais quantos para a Receita Federal, que não estava dando aula para alunos do curso primário. Enfim, nós, alunos que sempre somos crianças em qualquer sala de aula, ouvimos tudo rindo, claro e o Adalberto lavou a alma com sua brincadeira. Saiu dali feliz.
Tempos bons! Quando as brincadeiras em sala de aula eram sadias, não se batia em professores e eles eram respeitados, sendo muitos deles nos ídolos, nosso espelho. Hoje, professor apanhar em sala de aula, é espancado, ridicularizado e se disse que o aluno é feio, vai processado. A saudade até hoje permanece. As lembranças de uma turma que nos trouxe muitas alegrias. Felicidades. Muitos daqueles, ou a sua totalidade, hoje estão por caminho desconhecidos. Apenas de dois deles ainda tenho notícias e contato permanente. Um na Bahia e outro no Rio de Janeiro.
No último dia de aula daquele curso maravilhoso, que me deu conhecimentos para ser o que sou hoje, numa tarde cinzenta de sábado de dezembro de 1980, no Centro do Rio de Janeiro, quando as ruas estão praticamente desertas, tivemos nosso último contato, depois de uma prova de Contabilidade Nacional, a turma se dissipou e nunca mais tivemos qualquer contato. As reminiscências me vêm à mente hoje com toda clareza daquela tarde, que permanece em mim e há de permanecer até meus últimos dias, pois mesmo diante das intempéries que se enfrentava na época, os dias eram melhores.
Mas é isso. A vida é um rio, cujas águas que por ele passam, renovavam-se a todo instante. Os amigos se vão, fica a saudade e as lembranças de um tempo que jamais voltará...
HENRIQUE CÉSAR PINHEIRO
FORTALEZA, SETEMBRO/2021
A todos os queridos colegas da Faculdade de Ciências Contábeis e Administrativas Morais Júnior, que durante o período de 1977 a 1980, comigo conviveram na mesma escola, quer em sala de aula, quer nas quadras de futebol, no Campo de Manguinhos, na quadra do São Cristóvão, no diretório acadêmico, dedico esta fugaz lembrança, esperando de alguma forma ter contribuído para trazer gratas recordações de um tempo em que a vida era mais pacata, mais tranquila e as pessoas podiam andar com tranquilidade na cidade do Rio de Janeiro.
|