---- Como sucedeu a tantos outros impérios, estamos persuadidos de que o de Roma se extinguiu e, afinal, com outros subreptícios nomes e contornos, os impérios vão-se sucedendo pelo tempo adiante e só se dá por eles quando o raciocínio hodierno os coloca na história e lhes define a efectiva prática sobre o corpo vivo da humanidade.
---- Ocorre-me citar o de Nero, princípe adoptado por Cláudio, o tal que do ventre de Agripina veio para reinar em lícita paz, a conselho de seu filosofal mestre Séneca, com humana brandura sobre seus súbditos. Adiante porém, não perdeu tempo a revelar-se um imperial monstro de crueldade. Mandou assassinar Britânico, sua mãe e até sua própria mulher Octávia. Quando a sede de sangue lhe desceu dos neurónios até às mãos, ele mesmo apunhalou sua segunda esposa Popeia. Os historiadores da época atribuem-lhe o incêndio de Roma, a que terá assistido declamando versos que compudera. Em suplício horrendo fez padecer e morrer milhares de cristãos inocentes, aos quais acusou indistintamente do fantástico incêndio. Tarde o senado romano o considerou incapaz e o declarou inimigo público. Perdido, em acto de recurso extremo, suícidou-se.
---- Se contemplarmos, de bem ciente razão, as trágicas imagens que todos os dias se nos afloram aos olhos, se ouvirmos, com esclarecida avaliação, as notícias da fome e da guerra que nos chegam dos mais diversos cantos do mundo, a relacionação dos impérios transfere-se nítida para a existência actual. Outrossim, em todas as coisas do quotidiano, pormenor a pormenor, a violência vai-nos tomando a pele, o gesto e, sem por isso darmos sequer, cada um de nós vai também distribuindo as suas farpas pela cruel arena da vida. Só farpas e mais farpas... Até quando?!