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Artigos-->500 anos de Brasil, MUITOS MAIS DE PINDORAMA -- 11/05/2024 - 07:36 (LUIZ CARLOS LESSA VINHOLES) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

500 anos de Brasil

MUITOS MAIS DE PINDORAMA[i]

L. C. Vinholes

11.05.2024

 

O tardio dueto português

 

Pelo menos no Brasil, a quinta-feira, 25 de abril de 2024, doravante, será lembrada pela surpreendente e repentina declaração do presidente português Marcelo Rebelo de Sousa, assumindo os “crimes coloniais contra negros e indígenas” ao mesmo tempo em que se refere “ao papel do seu país durante o período escravocrata” responsável “pelos crimes da época colonial, como o tráfico de pessoas da África”. Esqueceu o arrependido português os males e as tragédias provocadas contra os nativos, suas terras, suas tradições, suas crenças, seus futuros. As caravelas que partiram do Tejo e aqui chegaram, não trousseram apenas marujos, nobres, missionários e serviçais, mas também e principalmente pinóquios portugueses que só, por milagre, não tiveram seus narizes crescidos no retorno a Portugal, apesar das mentiras e das fantasias que em suas cartas à corte contavam sobre seus feitos e que até hoje, enganando as novas gerações, figuram dos livros escolares.

 

Logicamente não tardou a aparecer o outro ator nessa suja tragédia dos “descobrimentos de Portugal”. No início de abril último, o recém-empossado primeiro ministro português Luis Montenegro declarou que “nada será pago”, que “ninguém será ressarcido”. Ele e seu presidente, num cenário de narrativas, como que mimetizando os reis de Portugal e Espanha, que, na passagem do século XIV para o século XV, mentiam descaradamente e escondiam os fatos um do outro para não verem frustradas suas perversas aventuras além-mar.

 

A verdade pode tardar, mas chega

 

Há muito esperava por algo parecido pois o pouco que se aprendeu nas escolas e o que se ouvia no dia a dia no Brasil não era nada parecido com o que se está descobrindo nos dias de hoje. Não dá mais para jogar a sujeira para debaixo do tapete. E isso também é verdade para com toda a colcha de retalhos da Europa contemporânea.

 

Mais do que antes, a nova sociedade brasileira e, espero, que também os países africanos da CPLP, passem a acreditar que, finalmente, vamos ver que, de fato, o Atlântico, por cima do qual passaram mais de 12 milhões de africanos, não nos separa, mas sim é um corpo único e indivisível que nos unia e nos une eternamente, além da triste verdade de ser o, para sempre, túmulo de milhares de negras e negros que não resistiram as viagens nos porões das caravelas.

 

 

Embora tenha vivido o suficiente para testemunhar avanços e recuos em diversos aspetos políticos e humanos da vida e do cotidiano do povo brasileiro, vejo que ainda não chegamos ao que mais se pode almejar: mais pretos e pretas e mais nativas e nativos em todos os lugares e posições que queiram ocupar, lado a lado, com brancos, asiáticos e todos os mestiços resultantes dessa miscigenação de cinco séculos. Que venham com seus cocares, adereços com plumas, cestarias, missangas, ojás, com seus tambores, danças, seus conhecimentos e saberes. Que surjam nova(o)s Joaquim Barbosa, Anielle Franco, Luciana Franco, Angela Kaxuyana, Edson do Nascimento, Romário Faria, Margareth Menezes, Daniel Munduruku, Marina Silva, Sônia Guajajara, Davi Kopenawa. Silvio Almeida, Francisco Piyãko, Glória Maria, Mãe Stella do Oxóssi, Raoni Metuktire, Flávio Dino, Vini Jr, Milton Santos, Maju Cotinho, Sileide Silva, Rui Costa, Daiara Tukano, Carlos Lupi, Waldez Góes, Joenia Wapichana, Paulo Paim, Daiane dos Santos e tanta(o)s outra(o)s.

 

Minhas lembranças

 

Embora os primeiros quinze anos de minha vida tenham sido vividos no interior do Rio Grande do Sul, as experiências nas cidades grandes como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Tokyo, Ottawa e Milão permitiram abrir meus olhos e entender a crueldade no choque de civilizações quando uma não respeita a outra, quando a mais forte luta para sufocar e neutralizar a outra.

 

Minhas lembranças são poucas, mas vou registrá-las, pois há décadas me acompanham.

 

> Desde criança guardo na memória a figura daquele índio alto e robusto, anônimo que, no amanhecer, aparecia nas ruas de Pelotas, que era preso pela polícia, que era encarcerado no segundo andar da delegacia e que de lá sumia sem que ninguém se desse conta. Por duas vezes pulou da janela da sala em que estava preso e voltou para sua aldeia.

 

> Não tinha dez anos e, quando nos finais das tardes nos brinquedos com os companheiros da vizinhança, sentia falta de Nei, o menino preto que morava no cortiço em frente nossa casa, filho do ativo senhor que, com sua carroça puxada por duas mulas, religiosamente recolhia o lixo da vizinhança do nosso bairro. Só com o tempo fiquei sabendo que, pela sua mãe, era “proibido de se juntar” com meninos e meninas da Argolo.

 

 

 

Índio maká e minha mãe

 

> Certa vez, tive o prazer de tirar foto de minha mãe em frente ao Hotel Central de Assunção ao lado do cacique da tribo maká que vivia no Município de Mariano Roque Alonso, nas proximidades da capital paraguaia. Isso só foi possível porque, inúmeras vezes, visitei sua aldeia, passando tardes apreciando o movimento de sua gente e usufruindo da sua despretensiosa atenção, assim, ganhando sua confiança e amizade.

 

> Com meus 14 anos, por volta do entardecer, ficava sentado nos degraus da porta de nossa casa esperando, na volta à casa, a passagem do sargento Pedro, preto alto, robusto e alegre, regente da Banda da Brigada Militar e clarinetista da orquestra da Sociedade Orquestral de Pelotas, reconhecido pela sua postura e apreciado pelos seus colegas de farda e de atividade musical. Pronto a corresponder, esperava sempre o Boa tarde de quem era um ícone em toda a vizinhança.

 

> Na volta para casa depois do expediente no Consulado-Geral de Assunção, ao lado da porta de entrada do Hotel Central, encontrava sentada em uma banqueta uma jovem índia, esbelta e discreta, engraxate de sapatos à espera dos seus fregueses. Com o tempo descobri que Margarita Sánchez Mirella (seu nome, por incrível que pareça) era exímia xilogravurista que havia tomado aulas com Livio Abramo (1903-1992) um dos papas da gravura brasileira, professor do Centro de Estudos Basileiros de Assunção. Interessei-me e colaborei na venda de gravuras de Margarita e uma delas que me foi dada de presente, desde abril de 2012, faz parte do acervo do Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo de Pelotas.

 

> Em muitos finais de semana, saindo de Pedro Juan Caballero na companhia de dona Délia e Ramon Gil Sanches, parceiro de pescarias e contraparte Cônsul do Paraguai em Ponta Porã, MS, rumávamos para o Rio Ypané, passando por uma minúscula aldeia de índios guaranis às margens do Arroio Tranquerita, no interior do Departamento de Amambai. Em uma das viagens, com um deles, troquei uma caixa de dez balas para espingarda por uma pedra para afiar facas, arrancada do fundo de um remanso das águas cristalinas do dito arroio. Estou seguro de que as poucas balas foram bem aproveitadas na caça que alimentava aos caçadores e nos últimos cinquenta anos, cada vez que afio facas, me lembro com saudades daquele encontro fortuito.

 

> Me alegrava quando, no bagageiro da bicicleta Dunlop, saía com papai para pescar traíras e jundiás que viviam nos banhados das imensas planícies entre o Quartel do 9º Regimento de Cavalaria e do complexo industrial da Olaria dos Caruccio. O que mais me interessava neste passeio era o momento em que, antes de pescar, passávamos pela casa do pescador amigo seu Antônio, nas barrancas dos banhados, para pegar isca fresca, e, quase sempre, recebia de dona Maria uma xicara de café com leite engrossado com fina farinha de mandioca. Era a casa de pretos idosos que eu mais gostava de ir.

 

> Mais recentemente, quase não acreditei que mereceria a distinção de ver membros das aldeias de nativos que vivem às margens da rodovia BR116, ligando Pelotas a Porto Alegre, fazendo música aleatória utilizando os cartões da minha Instrução 61, para quatro instrumentos quaisquer. Esse marcante evento foi proeza do professor Mario de Souza Maia, do Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas, que, a meu pedido, gentilmente o descreveu como segue:

 

 “A Instrução 61 foi executada em 2003, nas comemorações de 25 anos do Museu de Antropologia do Rio Grande do Sul, realizadas no Memorial do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Na ocasião havia uma exposição do acervo, e parte dela dizia respeito as etnias Guarany e Kaigang. Na performance da Instrução participaram crianças das duas etnias, e se divertiram muito! Foi uma experiência incrível para todos nós! Fizemos duas versões”.

 

Do artesanato kaigang por eles produzido, até hoje tenho um cesto cilíndrico de juncos coloridos que é motivo de admiração para quem com ele tem contato pela primeira vez.

 

> Em Pelotas com quatorze anos, entusiasmado com as letras e músicas dos blocos do Carnaval, tive minha atenção focada no refrão daquela que cantava a figura da “nêga de cabelo duro”[ii]. Não demorei em criar a paródia festejando a “nêga da perna dura” logo aceita e cantada pelos integrantes do bloco patrocinado por Rocinha, o empresário de recicláveis, com sede na esquina das ruas Argolo com Barão de Santa Tecla. Lado a lado os dois refrãos, vistos como “crítica bem-humorada às normas sociais”, disputaram a aceitação dos carnavalescos:

 

     Nega do cabelo duro                                    Nega da perna dura

     Qual é o pente que te penteia?                     Qual é a muleta que te segura?

     Qual é o pente que te penteia?                      Qual é a muleta que te segura?

     Qual é o pente que te penteia?                      Qual é a muleta que te segura?

     Ondulado, permanente                                  Quando tu entras na roda

     Teu cabelo é de sereia                                   A tua perna bamboleia

     E a pergunta que não sai da mente                 Nega desta perna dura

     Qual é o pente que te penteia ó néga?            Qual é a muleta que te segura, ó néga?

 

 

> Doutor Peni que morava a uma quadra da nossa casa era médico de família, atendia no consultório da Farmácia Estrela onde algumas vezes eu era levado para consultas. Era um preto de certa idade, de cabelos brancos da cor do seu jaleco, conhecido por, no final das consultas, regalar seus pacientes mirins, nada mais nada menos do que uma bala de mel. Nunca esqueci que dele ganhei algumas e experimentei a primeira bala de hortelã.

 

> Nos anos que vivi no Canadá, uma das figuras que mais me impactou foi Doug Kakekagumick, artista da etnia cree, que me impressionou pela simplicidade de suas obras e pelo vigor das mensagens espirituais em favor e pelo reconhecimento da cultura de seu povo, expressões patentes nas suas obras. Sobre ele é o artigo que publiquei em 3 de novembro de 2012 no site www.usinadeletras.com.br. Hoje, serigrafias que dele adquiri e que dele ganhei foram gratuitamente entregues ao Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo de Pelotas, significativamente enriquecendo seu acervo.

 

 

 

Doug Kakekagumick e serigrafia de 1988

 

E a história continua

 

Enquanto Marcelo Rabelo fazia seu mea culpa, em Brasília centenas de etnias de povos tradicionais, com faixas e cartazes reenvindicavam a conclusão dos processos de demarcação dos seus territórios e a garantia dos direitos constitucionais de acesso à saúde e a educação de qualidade. Nos canais de televisão, pretas e pretos exibiam seus penteados e suas vestes coloridas, índias e índios mostravam suas pinturas corpóreas e seus coloridos cocares. As universidades diplomavam aos que se valiam das cotas reparadoras para abraçar suas sonhadas carreiras. Nas TVs, nos comerciais, nas novelas, nos noticiários, o que não se via antes ou quando se via era muito pouco, agora a divisão do tempo e dos espaços é compartilhada de maneira cada vez mais de acordo com os novos tempos.

 

Credite-se à Agência de Notícias Indígenas as sérias e bem pensadas palavras do escritor e ativista Ailton Krenak aos colegas da Academia Brasileira de Letras, por ocasião de sua posse como primeiro indígena a nela ser empossado:

 

“A gente não pode concordar que civilização é a coisa que os europeus inventaram, senão a gente está homologando este papo furado de que a Europa inventou a civilização e foi iluminar o resto do mundo: a Ásia, a África e as Américas.

 

Agora, cada vez mais está se revelando o escândalo que foi está civilização, quando eles chagaram em alguns territórios e aniquilavam o povo originário de lá para pegar petróleo, para pegar diamante, para pegar madeira, isto não é civilização, isto é um assalto. Tanto mais longe a gente conseguir manter as crianças deste lugar, melhor para a vida do planeta. Longe desse lugar eurocentrico.”

 

Epílogo

 

Tudo que ficou acima se é que se justifica, é só para contar que, às vésperas do ano 2.000, quando de várias formas, oficiais ou não, eram providenciados os preparativos para as comemorações da passagem do chamado Descobrimento do Brasil, eu estava lotado no Consulado-Geral do Brasil em Milão, como Chefe do Setor Cultural, de Cooperação e Divulgação e, por discordar veementemente da forma de qualificar a chegada dos portugueses como descobrimento, sabendo da minha impotência em manifestar contrariedade ao que se impunha, contentei-me em apor, no canto superior esquerdo de toda a correspondência por mim assinada, a minúscula sentença contrariando a história da nossa história com Portugal:

 

500 anos de Brasil

Muitos mais de Pindorama

 

No presente, aplaudo e festejo o Brasil dos nativos, dos pretos, dos brancos e os de outras origens que aqui estão e o dos que para aqui vieram e ainda vêm fugindo das mazelas e perseguições reinantes em suas pátrias.

 

[i] Em língua tupí-guaraní, Pindorama significa Terra das Palmeiras ou, mais exatamente em toponímia semântica, Lugar/Região das Palmeiras.

[ii] Esta canção, com cinco estrofes, foi objeto do artigo TRÊS VEZES NÊGA DO CABELO DURO: UMA NOVA VERSÃO PARA UMA VELHA CANÇÃO, assinado por Maria do Socorro Pereira, para obtenção o título de especialista do Programa de Pós-Graduação do Curso de Especialização em Educação para as Relações Étnico-Raciais da Rede Nacional de Formação Continuada da UFCG/SECADI/MEC, defendido em 13.06.2019.

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