Tínhamos os três uns 18, 19 ou 20 anos. Primeiro conheci o Márcio. Depois o Jair. O Márcio, o conheci numa livraria. O Jair, quando o Márcio me apresentou. E saíamos os três, ao Teatro de Arena, ao Barzinho Redondo, ao Ferro s... em São Paulo da pré-revolução.
E ela veio. A "Revolução". Márcio vendeu o Fusca, diplomou-se em engenharia, comprou uma motocicleta e foi trabalhar num circo. O Globo da Morte. O pai quase morreu do coração.
Jair, filho de maquinista de trem, foi ativista revolucionário. Convenceu Márcio. Os dois, montados na mesma motocicleta, entraram pelo globo das mortes. Percorriam os brasis, como correio dos subversivos .
Foram fisgados pela polícia. Caíram numa armadilha. Fiquei sem notícia de nenhum, por muitos anos.
Hoje eu soube: o Jair fora preso, torturado. Ao terminar a "Revolução", conseguiu voltar a estudar e se formou em Arquitetura.
Hoje eu soube: o Jair morreu de morte ridícula. Se existir morte ridícula. Uma pancada na cabeça, já tão torturada. Era alto, bateu a cabeça em algum lugar, perdeu a consciência, sei lá. O que importa. Ele morreu.
O Márcio fez papel de engenheiro por algum tempo. Depois, abandonou tudo, vive sozinho, esqueci o nome do lugar. Vive como sempre quis viver: tem um pedaço de terra, come do que planta ou do que vende. Constrói aviões de brinquedo, que levantam vóo,fazem piruetas e deslizam bonito ao aterrissar.
Encontrei-o por puro acaso, como da primeira vez, numa livraria. E como se passaram apenas 35 anos desde que nos vimos pela última vez, retomamos a conversa como se nada tivesse acontecido entre o ontem e o hoje. Mudamos um tanto, o Márcio perdeu um pouco do cabelo, engordou um pouquinho. Devo ter mudado, claro, mas ele me reconheceu pela voz, segundo me disse. Pedi uns livros para o livreiro, o Márcio me olhou firme. Ora, pensei, que maneira de olhar para uma dama! Chegou perto e disse: "Desculpe, mas você não é a ......?" Sou, respondi. E, antes que lhe perguntasse quem era, me disse, muito suavemente, "Sou amigo do Jair. Lembra?" ---
Faz falta o Jair. Ele que gostava tanto de nós. E nós, que gostávamos tanto dele. Que equação mais
falha. Por que o Jair teve de bater a cabeça?
Hoje eu soube: porque assim estava escrito. Maktub!, como diria o Malba. Aliás, apelido do Jair.