Dona Ruth era a moradora mais idosa do nosso bairro, italiana forte, decidida, viúva com um casal de filhos. Ela nunca deixou a peteca cair, a última pioneira do lugar. Seus vizinhos e amigos, já deixaram este mundo há tempos. Dizia não ter medo da morte, logo esta palavra para ela não significava muita coisa, parecia não se assustar com facilidade, com idade avançada ainda queria viver muito.
Tinha uma saúde de ferro! Isso se diz para quem está saudável. Com oitenta anos fazia todos os serviços da casa, lidava no quintal, cuidava de suas galinhas, dos cachorros e um papagaio, os quais eram seus companheiros. Morava sozinha há tempo, seu marido já havia falecido a mais de quinze anos. De bem com a vida, estabilizada, vivia de aluguéis e com duas aposentadorias. Pacata, calma, não gostava de fazer visitas, muito caseira, adorava o filho e a filha. Os netos e netas eram seus tesouros, também vieram as bisnetas, suas jóias mais caras que dizia possuir.
De vez em quando seu humor mudava, ficava birrenta, teimosa, a razão era sempre sua. Modificar seus pensamentos? Dificilmente, alguém alterava o rumo das coisas, quando dizia sim, tinha que ser daquele jeito. Eu mesmo discuti várias vezes com dona Ruth, ganhar uma discussão era quase impossível. Mandona, exigente, na verdade turrona mesmo.
Fumante desde a infância. Sua família insistia para largar do cigarro, do maldito vicio, porém nunca escutou ninguém, mesmo sabendo que um dia poderia ter algum problema referente ao cigarro, seu uso prolongado favorece a doenças cancerígenas. Menos o filho, este também era um adorador do cigarro, outro suicida, sofria do mesmo problema que a sua mãe, viciado numa fumaça. Juntos tentaram algumas vezes abandonar o cigarro, sem determinação e força de vontade, não foram longe e retornaram para o perigo, fumar. Diziam para os familiares:
_ Tem gente morrendo e nunca fumou! Tem gente que sofre de câncer e nunca colocou um cigarro na boca...
Estes eram seus argumentos. Porém o mal estava a caminho, dona Ruth ao fazer um exame rotineiro deparou-se com o imprevisto. Um câncer de mama foi diagnosticado e a odisséia começou. O sofrimento também iniciou devido ao câncer que estava alastrando em seu organismo, pulmões, rosto, laringe.Uma luta incansável foi lançada contra a doença. Duas cirurgias na face, Dona Ruth suportou trinta e cinco seções de radioterapia na laringe. Os médicos extirparam o caroço da mama. Sucesso absoluto nestes três itens.
O sofrimento pessoal, o qual parecia incalculável começou, Dona Ruth perdeu trinta quilos em pouquíssimos meses. Agora quem estava pedindo socorro era o pulmão. Cirurgia, quimioterapia, impossível, sua saúde estava muito debilitada, a idade outro obstáculo no caminho daquela mulher. Agora ela estava sentindo o mal corrompendo suas forças, o efeito reativo de fumar estava em seus pulmões. A coitada sabia que a luta era interminável, a morte estava próxima, o medo aumentava, a vida estava correndo perigo. Ruth não deixou de lutar bravamente contra o câncer com os obstáculos que iam surgindo no caminho da esperançosa cura.
Num dia destes, eu fui fazer uma visita para Dona Ruth, perguntei como ela encarava a morte, e de muitas vezes que indaguei, desta vez a resposta foi diferente das outras. Disse:
_ Meu jovem....Hoje estou completamente amedrontada, apavorada, não queria morrer. Eu quero é viver! Quando estamos com saúde a gente esquece que existem momentos como esses, mas pode saber que este caminho é para todos. Você pode estar certo de uma coisa, enquanto tiver força vou lutar. Tenho fé que Deus não me deixara sofrer, já se foram dois anos e a minha vida continua boa. Não sinto dores, me alimento bem, durmo tranqüila. Nestes dias atrás falei, para meu genro que ainda vou festejar os quinze anos da minha bisneta Amanda.
Sabemos que será difícil, a menina tem dez anos. A coitada conversando com seu médico, Dr. Lauro, lastimava não conseguir comemorar os quinze anos da bisneta. Todavia, o medico foi categórico, dizendo:
_ Dona Ruth? Se a senhora não fumasse com certeza conseguiria comemorar esta data, uma bela festa com certeza. O vicio lhe roubou estes cinco anos, agora infelizmente é tarde. Mesmo assim a senhora é uma guerreira, uma lutadora, continue assim que a senhora viverá mais um bom tempo.
O que eu admirava nesta mulher era a força, a coragem, nunca reclamava de uma dor de cabeça se quer. Negava terminantemente que nunca sentiu dor alguma, dizia:
_ Não tenho esta doença que vocês falam tanto, estou bem graças a Deus!
Lutou até o fim, Ruth não se entregava. Nas últimas quarenta e oito horas de vida que lhe restavam, começou a perder as forças. Notava-se uma tristeza em seu olhar, parecia estar desgostosa com alguma coisa. Acabou confessando para o genro que estava morrendo, apavorada e assustada, com muito medo da morte, comentou:
_ Minha hora está chegando, eu queria viver um pouco mais. Como eu disse certa vez, quando a minha família estivesse em paz, eu poderia partir. Eu estou contente porque tudo está acabando em harmonia como previ.
Ruth pediu um cigarro para fumar, não tinha condição para segurar o cigarro entre os dedos, deixando-o cair. Olhava firme para o filho e deu uma leve olhadela para a filha. Até pensamos que queria contar alguma coisa, parecia que queria desvendar algum segredo antes de partir.
Esse fato ocorreu numa quinta-feira. Na sexta-feira, no final da tarde, o filho liga para a irmã, pedindo para a mesma pernoitar com a mãe porque estavam com o receio que o final estivesse chegando. No amanhecer de sábado, Ruth já não conseguiu engolir os comprimidos que sempre tomava para manter sua pressão e diabete controlada. Suas palavras e atitudes estavam tão fracas que não podíamos ajudá-la a melhorar. Então foi um corre, corre desesperador. Após um telefonema, sua neta July chegou na casa da avó, vendo o desespero dos dois filhos, não perdeu tempo e concordou com a mãe para chamar a ambulância de pronto socorro do convênio médico de Dona Ruth. Num instante o socorro chegou, partiram rápido para o hospital.
Quando os netos presentes na porta do Hospital deram entrada ao internamento, Dona Ruth entrou perguntando dos familiares e o que os médicos disseram. Ao colocá-la na maca, balbuciou algumas palavras e adormeceu devido sua fraqueza. Trinta horas após o internamento, todos que a amavam estavam em sua volta. Ás quatorze horas e quarenta e cinco minutos daquela tarde despediu-se deste mundo, morreu.
No hospital fomos atendidos maravilhosamente. Não tínhamos a idéia da burocracia que iríamos tramitar, pois começou o pandemônio depois que fomos á funerária. Primeiro, escolhemos o ataúde. Percebemos que pelo caixão vem o achaque, os atendentes se aproveitam da fragilidade dos parentes, tentam vender tudo o que é mais caro. É de ficar abobado, atordoado, o perigo é comprar coisas desnecessárias e sem sentido. Depois, ainda houve a velha burocracia referente ao sorteio da funerária que vai transportar o corpo. Corre pra lá, corre pra cá, seis horas foi o tempo que nos enrolaram. Eu acompanhei o sofrimento dos familiares neste vai e vêm, realmente o aspecto as características do caixão servem para dar motivação as vendas ao atendente do ramo. Os vendedores não querem saber se a família tem grana ou não. Mas não acaba por aí, depois tem os por menores, coroas, flores, maquiagens, véu, castiçais, velas, entre outras coisas.
Infelizmente, o emocional está abalado, e nesta hora de tristeza e angústia, a gente concorda com tudo. Na hora de pagar é que vem o susto. Uma despesa de novecentos e vinte reais que não estava no orçamento. Indignados, perguntamos o que era o gasto a mais do valor do caixão, a resposta dos atendes foi rápida, nos disseram que uma drenagem seria feita na falecida. O genro, um neto e a neta mais velha ficaram perplexos, responderam:
_ Vocês estão brincando?? A nossa avó não tem o que drenar! Por favor, esta despesa é absurda! Não percebem que ela está pesando menos de sessenta quilos?
Assim mesmo os moços tentaram nos convencer da drenagem. Mas ninguém concordou com a atitude dos jovens. E a diferença foi abolida da nota. Antes de sair do recinto pedimos aos funcionários que fizessem uma maquiagem bem leve na dona Ruth. Por ter ficado apática demais, Ruth era uma mãe valente, avó, sogra, então não gostava de cores fortes, mas a família pensando num rosto mais suave, pediram o favor de uma levíssima maquiagem, e contemplaram a idéia:
_Vocês deixem ela com um rosto sereno como se estivesse dormindo. Cuidado com os retoques, principalmente batom de cor viva, no rosto um blash leve, nada escandaloso. Sombra mínima possível, Nós estamos pagando pelo serviço!
Nós combinamos o horário com a funerária a chegada do corpo na capela número quatro do Cemitério Municipal da Água Verde. Foi reservada a mesma capela que seu estimado esposo havia sido velado, era desejo de Dona Ruth. Os funcionários nos avisaram que as vinte e uma horas nós deveríamos estar á espera do carro fúnebre. Com este alerta, nós avisamos os parentes e amigos que o corpo chegaria somente naquele horário. Para evitar algum problema nos dirigimos para lá meia hora antes, calculando algum imprevisto. Realmente foi o que aconteceu, isto é de praxe aqui em nosso país, desculpa comum de pessoas irresponsáveis.
Vinte horas e trinta minutos nós chegamos (eu, o genro, a filha, duas netas e uma bisneta) no recinto, naquele momento tinham poucas pessoas no local. O carro fúnebre acabava de chegar, tivemos que fazer uma força extra para levar o caixão até o suporte da mesa da capela. A família não havia gostado do horário alterado, adiantado, isto gerou complicações administrativas do cemitério. O horário deve e tem que ser obedecido rigorosamente, principalmente num momento de muita angústia e tristeza. Mas isso não era o único detalhe, o pior estava por vir. Os rapazes da funerária não agüentavam com o peso, e os poucos familiares que ali estavam ajudaram a colocar o caixão encima daquela mesa de pedra. Descarregando todos os acessórios para o funeral, colocaram e ajeitaram tudo em seus devidos lugares. Agora faltava eles abrirem a tampa do caixão.
Todos os presentes sabiam que aquele instante da abertura do caixão é impactante. Era lógico que nós estávamos apreensivos, tristes, aguardando o momento de desabar em lágrimas, ao ver pela primeira vez dona Ruth dentro daquela caixa de madeira. A filha estava presente, a neta preocupada abraça a mãe para que não haja um desmaio ou mal estar. Tal qual foi a nossa surpresa e susto, ao ver a maquiagem em seu rosto, um impacto terrível, assustador. Aquela sensação de gritos e choros sufocados a serem expressos no momento da abertura do caixão, ficou no ar apenas. Houve um choque, paralisando os poucos familiares que estavam ao lado da avó falecida. Parecia que um deboche, uma sátira. As duas netas, filha, genro, todos nós ficamos revoltados, viramos num capeta com os rapazes da funerária depois do que víamos. Graças a Deus, havia poucas pessoas ainda no recinto. As lágrimas que viriam a brotar viraram estática, seguida de fúria. Os rapazes da funerária olharam o rosto da falecida e começaram a afirmar que limpariam o rosto de Ruth e que refariam a maquiagem suave. Os coitados não foram chutados por pouco, ninguém conseguiu chorar naquele momento, o bafafá foi feio, a dona Ruth teve seu rosto restabelecido daquela aberração, eu mesmo tive a impressão que maquiagem não foi feita por profissionais, uma criança de três anos com tinta guache teria feito melhor.
A neta mais nova virou no capeta, não pensou em nada e começou a expulsar os moços da funerária. A vontade na hora era de fazer os rapazes retornarem com a falecida para a funerária para retirar a maquiagem. O cabelo de Ruth estava molhado e nem penteado havia. Não foi fácil acalmar a moça não, se fosse com a sua mãe o que você faria no lugar dela? Pediria a devolução do dinheiro ou processaria a funerária? Mas nem havia tempo para isso!
O genro revoltado com a cena disse:
_ Vocês estão pensando que minha sogra saiu de um bordel barato??? a coitada nunca usou um batom desta cor! Nem pinturas deste naipe! Por misericórdia, preste atenção na idade dela! Olhem o rosto desta senhora, parece que levou um soco no olho, de um pugilista sem luvas. Isto é, uma afronta para nós, os parentes e amigos! A sombra parece com uma argola que foi lambuzada de graxa e colocada em seus olhos, depois tirando e ficando as seqüelas, uma verdadeira piada de mau gosto.
Uma piada! A face da dona Ruth ficou pintada como se fosse dar um espetáculo num circo de tão extravagante. O batom cor de rosa choque nos lábios foi aberração. Até o buço entrou nesta verdadeira palhaçada, lambuzaram ao máximo, quem fez este trabalho merecia levar uma camada de pau, uma surra. Encheram sua boca com algodão para deixarem suas bochechas sobressaltadas. Ruth tinha lábios avantajados de uma italiana típica, porém com a pressão do algodão na face, deixou a boca mais esticada do que a de um sapo. Larga e ridícula, uma coisa esdrúxula, parecia boca do inimigo do Batman, o Coringa. Naquela hora lembrei-me de um personagem do famoso Chico Anísio, o Nazareno, a mulher que ele mandava ficar calada. Além da boca a maquiagem muito mais do que brega. Dona Ruth ficou parecida com a Generosa do comediante.
Foi a maquiagem mais cara que pagamos, um trabalho da pior espécie, ordinário, e de má qualidade. Não sei se os rapazes do carro fúnebre tiveram alguma culpa, mas ouviram o que não queriam, saíram de cabeça baixa pedindo mil e uma desculpas dizendo que não eram culpados e que o dever deles era transladar a falecida e nada mais. A neta acabou fechando a capela, e sobrou o problema para resolver. A filha segurou o estojo de maquiagem particular, a neta encarnou a maquiadora profissional, arrancando aquele algodão, usando base aplicada direto sobre o colorido, o cabelo penteado para trás com grampos que surgiram da bolsa de um dos presentes. A maquiagem acabou ficando ótima.
Coitada da dona Ruth até que enfim ficou no seu estado normal. Apesar de todos os transtornos, o ódio foi embora, a raiva foi ficando para trás. Todos acabaram percebendo que a pessoa que amávamos foi embora e a saudade foi crescendo. Mas mesmo partindo para sempre, Dona Ruth acabou nos pregando uma peça sem querer, até no seu velório por causa de sua maquiagem espalhafatosa e repugnante, deixou mais um ato para a gente não esquecer dela! Ela deve estar dando gargalhadas de nossas caras lá do céu, e comentando:
_ Eu usando maquiagem?? Que decepção!!