Dom Casmurro
Machado de Assis
CAPÍTULO PRIMEIRO / DO TÍTULO
Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei num trem da Central um rapaz
aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim,
falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser
que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos
três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.
-- Continue, disse eu acordando.
-- Já acabei, murmurou ele.
-- São muito bonitos.
Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No
dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os
vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal
pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça,
chamam-me assim, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, domingo vou jantar com você."--"Vou
para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renania; vê se deixas essa caverna do
Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo."--"Meu caro Dom Casmurro, não cuide que
o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-
lhe cama; só não lhe dou moça."
Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs
o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de
fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração - se não
tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não
lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há
livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.
CAPÍTULO II/ DO LIVRO
Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que
me põem a pena na mão.
Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um
desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia. há bastantes anos, lembrou-me
reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o
mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as
indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as
mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do tecto e das paredes é mais ou menos igual,
umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as tomam nos blocos, de espaço a espaço.
Nos quatro cantos do tecto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de César,
Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Não alcanço a razão de tais personagens.
Quando fomos para a casa de Mata-cavalos, já ela estava assim decorada; vinha do decênio anterior.
Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clássico e figuras antigas em pinturas americanas. O
mais é também análogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e
lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste
da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa.
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois,
senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é
diferente. Se só me faltassem os outros, vá um homem consola-se mais ou menos das pessoas que
perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à
pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas
autópsias; o interno não agüenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia
enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam
são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às
amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas crêem na mocidade. Duas
ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os
dicionários, e tal freqüência é cansativa.
Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior, é outra cousa a certos respeitos, aquela vida
antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito
espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira. Em
verdade, pouco apareço e menos falo. Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar
e ler; como bem e não durmo mal.
Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-me
escrever um livro. Jurisprudência. filosofia e política acudiram-me, mas não me acudiram as forças
necessárias. Depois, pensei em fazer uma "História dos Subúrbios" menos seca que as memórias do
Padre Luís Gonçalves dos Santos relativas à cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e
datas como preliminares, tudo árido e longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram
a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos,
pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem
perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas
sombras?...
Fiquei tão alegre com esta idéia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim, Nero, Augusto,
Massinissa, e tu, grande César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o
conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que
vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos a evocação por uma
célebre tarde de novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas
aquela nunca se me apagou do espírito. É o que vais entender, lendo.
CAPÍTULO III/ A DENÚNCIA
Ia entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me atrás da porta. A casa
era a da Rua de Mata-cavalos, o mês novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de
trocar as datas à minha vida só para agradar às pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de
1857.
--D. Glória, a senhora persiste na idéia de meter o nosso Bentinho no seminário? É mais que tempo,
e já agora pode haver uma dificuldade.
--Que dificuldade?
--Uma grande dificuldade.
Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes de concentração, veio ver se
havia alguém no corredor; não deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade
estava na casa ao pé, a gente do Pádua.
--A gente do Pádua?
--Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso
Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles
pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los.
--Não acho. Metidos nos cantos?
--É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase que não sai de lá. A pequena
|