Outras vezes, já escrevi sobre a Galeria de Arte da Embaixada do Brasil em Tokyo[i]. Os que leram meus artigos sabem que, por muitos anos, um dos maiores empecilhos para divulgação no Japão da produção de artistas brasileiros, era encontrar e reservar uma galeria, ter recursos para arcar com os custos ou negociar a inclusão de uma mostra no calendário de uma instituição interessada. As dificuldades eram também o saber com antecedência e com um mínimo de certeza o que em um determinado período estaria, realmente, à disposição. Estes problemas, em grande parte, eram devidos à não existência de uma programação anual antecipada por parte do Departamento Cultural do Itamaraty. O que podia acontecer era esse departamento, atendendo ao pedido e, até certo ponto, à pressão de um(a) artista conceituado(a) providenciar a remessa das obras via mala diplomática. Em Tokyo tivemos casos em que a exposição de arte ocorreu concomitantemente com uma mostra patrocinada pelo Setor de Promoção Comercial que arcava com todas as despesas.
Em 1974, quando de volta ao Japão, para, mais uma vez, cuidar do setor cultural, deixar de lado a frustração e não ficar na dependência das incertezas e viabilizar despretensiosas, mas válidas e gratificantes mostras, foi que, acreditando na possiblidade e conveniência de abrir um espaço dentro da Embaixada do Brasil para, fugindo dos aluguéis estratosféricos e das condições corporativistas, permitir, mais facilmente, divulgar a arte brasileira, foi que decidi concretizar a ideia da galeria em uma das salas da embaixada.
A idea ganhou apoio e, no início de 1976, “recursos para reparos” foram usados e as paredes da sala contígua à sala de espera ganhou forração especial e a mostra de inauguação estava programada. Em novembro do mesmo ano Kazuo Wakabayashi[ii] teve 24 gravuras de suas autoria, exibidas ao público.
No jornal Folha de São Paulo, de 15 de novembro de 1976, o jornalista-correspondente Osvaldo Peralva reconhecendo as dificuldades existentes em Tokyo para divulgação da arte brasileira, concluiu seu artigo afirmando que “A solução encontrada pela embaixada foi, portanto, a de montar sua própria galeria”.
Duas outras exposições foram realizadas: a com 32 desenhos de Lourdes Cedran, em março de 1977, e a Exposição de Música Contemporânea Brasileira[iii], em abril do mesmo ano.
Lourdes utilizou, como suporte, papel artesanal por ela produzido o que despertou o interesse do filósofo Fauré Harada e comentários da revista mensal Space Desing, nº 151, bem como de Barbara Thoren, na edição de 13 de março do jornal The Japan Times, sobre a formação da artista e sobre as obras exibidas. A outra exposição, em abril de 1977, contando com a colaboração direta dos copositores, disponibilizou ao público dezenas de partituras, impressas e manuscritas, para instrumentos solistas, para orquestra de câmera, para piano e voz, livros, discos, fitas cassete e uma brochura preparada com base nos catálogos de compositores brasileiros distribuídos pela Divisão de Difusão Cultural, por iniciativa do pianista Paulo Affonso de Moura Ferreira, presidente da Seção Brasileira da Sociedade Internacional de Música Contemporânea (SIMC) e consultor da citada divisão. À inauguração, com numeroso público, compareceram, entre outros, os compositores Sadao Bekker, Yoshino Irino e Toshi Ichiyanagi que, durante alum tempo, estudou com John Cage.
Tranferido do Japão para o Canadá, cheguei em Ottawa em agosto de 1977, levando comigo a esperança de que a recém-criada galeria continuaria a prestar seu serviço em prol das artes plásticas brasileiras. Ledo engano. Em outubro do mesmo ano, a efêmera história da Galeria de Arte da Embaixada do Brasil em Tokyo recebeu seu golpe de misericórdia, e dele só tomei conhecimento, meses depois, pela carta de 15 de outubro do amigo Antônio Campos Caridade dizendo:
“Notícia trágica:
Ante-ontem dia 13 de outubro de 1977, puzeram a baixo a galeria do segundo andar. Tiraram aquele foro de furinhos da parede e estão colocando tábuas comuns vão transformar em escritório”.
Pouco se conhece sobre Caridade, mas sei que era de Ribeirão Preto, SP; que tinha 43 anos de idade; que estudara japonês por conta própria; que, de profissão era “químico prático”; que decidira viajar para o Japão; que pediu dispensa do trabalho na firma onde trabalhava; que, com o dinheiro que recebera, comprou passagem de navio; que na viagem conheceu ao engenheiro Mario Andriatini, do qual veio a ser intérprete nos seus deslocamentos no Japão; que, em Tokyo, conseguira emprego no Escritório de Representação do Instituto Brasileiro do Café; que fazia trabalho extra como vigilante ocasional em casa de amigos brasileiros; que, desde fevereiro de 1969, trabalhou na embaixada como vigia noturno, e que, a partir de maio de 1971, trabalhou o dia todo; que em 1985 encontrou a Rumiko, a companheira que imaginava ter; que se casou em 1987; e que faleceu e foi sepultado na “terra dos meus sonhos”, como costumava dizer.
Caridade tinha suas excentricidades
1) se comparava a morcegos. No final do texto no aerograma acima citado, disse “estar preocupado e com dó de vocês porque sendo aí um país frio não deve ter morcêgos (sic)”.
2) No P.S. da carta de novembro e 1972, informa que “Iniciei esta carta ontem e por estar pensando na mongolia justamente esta noite sonhei que houve aqui em Tóquio um desfile de mongóis com carros típicos e na frente várias moças bonitas. Várias vezes que tenho sonhado com eles”. Esta carta, datilografada, está assinada, com caneta Bic, Caridade e logo abaixo, entre parêntesis, O MORCÊGO.
3) No mesmo aerograma conta que realizou um sonho que tinha desde os 10 anos de idade, qual seja, ser o ajudante de maquinista de uma Maria Fumaça. Foi o que se concretizou na viagem de um hora e vinte de Kanaya a Shizuoka, no Japão, no trem antigo da linha Oigawa Railway, puxado por uma locomotiva a vapor e ele “ajudando a colocar carvão na fornalha”.
4) Além de o caçador de morcegos, ocasionalmente, se dava outros codinomes, tais como: o caçador de tornados, o arremessador de bumerangue, o piloto de planador, o lindo topa-tudo.
Caridade, o colaborador
Nos anos que Caridade e eu fomos contemporâneos nas lides na embaixada, sempre contei com a colaboração e a boa vontade de um funcionário subalterno exemplar, auxiliando no que fora necessário. Lembro da sua enorme satisfação no meio dos visitantes que frequentaram as exposições na galeria, orgulhoso por ter colaborado na montagem das mostras, mas o ponto alto da minha gratidão para com Caridade foi a viagem à Suzu, cidade na Península Noto, no Oeste do Japão.
Em julho de 1962 viajei para Suzu para encontrar, pela primeira vez, os alunos e professores da Escola Primária do Bairro Ohtani, de Suzu. O objetivo da viagem era conhecer o professor Haruo Kadoya, diretor da escola que, por intermédio do pintor Gagyu Ueda, encomendou o Hino Escolar da instituição de que era responsável. A letra foi a do poeta Shuzo Iwamoto e a música a duas vozes, a cappella, foi de minha autoria, primeiro hino escolar composto por um compositor estrangeiro. Na viagem, fiz-me acompanhar de Ueda que na II Guerra serviu em destacamento em Noto e conheceu Kadoya; do menino Bruno Guatimozin, credenciado como “o embaixador das crianças brasileiras”, filho do chefe da Comissão de Compras de Tokyo (CCT), da Usina Siderúrgica de Minas Gerais (USIMINAS); e pelo amigo Caridade, naquela ocasião, funcionário do IBC.
Os três viajantes, a esposa do diretor da escola e o
nonagenário jornalista, pai de Haruo Kadoya.
Quando chegamos a Suzu, lá encontramos as caixas que Caridade, com antecedência e por via férrea,, havia despachado de Tokyo com centenas de xicrinhas e pires, estes com a frase Café do Brasil em português, japonês, inglês e francês e elas estampadas com ramos de café e um grão enfeitando a alça; com colheres e açucareiros; bules e panelas, coadores de pano, sacos com 30 kg de café para consumo na festa; e, finalmente, centenas de saquinhos com 100 gramas de pó para farta distribuição aos participantes do evento, evento montado na rua em frente à escola, com mesas de cavaletes e tábuas forradas com toalhas coloridas. Depois da seção de ensaio do hino com meninada entusiasmada e de um farto almoço com pratos típicos e frutos do mar, Caridade, assessorado e prestigiado por membros do corpo docente e por mães e país, desempenhou-se com maestria e proporcionou a todos o que até então não conheciam: um café brasileiro preparado por quem, profissionalmente, sabia o que estava oferecendo.
Recepcionados pelo prefeito Riichiro Okamura e pelo vice-prefeito Saburo Kawahara, os jornais de Kanasawa, capital da Província de Ishikawa, com textos e fotos, deram a cobertura que repercutiu em toda a Península de Noto.
Concluindo este artigo que, sem dúvida, teve como objetivo, mas uma vez, tratar da Galeria de Arte da Embaixada do Brasil em Tokyo, mas, paralelamente, não quis que ficasse no esquecimento o fato de que um modesto funcionário foi autor de três importantes e históricas linhas, as únicas até o momento, registrando o final que foi dado àquela que, enquanto existiu, serviu religiosamente aos propósitos que todas as outras costumam ter.
Estou seguro de que Antônio Carlos Caridade sempre se sentiu plenamente gratificado pela sua conduta e pelo trabalho que realizava com seriedade e dedicação.
[i] Vide artigo Galeria de Arte da Embaixada do Brasil em Tokyo, publicado em maio de 2011, no site “.
[ii] Vide artigo Encontros com Kazuo Wakabayashi, publicado em janeiro de 2015, no site “.
[iii] Vide artigo Exposição de Música Brasileira em Tokyo, publicado em março de 2011, no site <www.usinadeletras.com.br>.